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Entrada do Brasil na OCDE exige amadurecimento fiscal

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5 de julho de 2017, 8h00

“Se o poder vem dos que estão em cima,
a confiança vem dos que estão embaixo.”

(Abade Sieyès)

Na data de publicação desta coluna, 5 de julho de 2017, completam-se 35 anos da maior tristeza futebolística que vivi: a eliminação do Brasil pela Itália na Copa do Mundo da Espanha de 1982. Lembro-me perfeitamente. Era o dia do aniversário de minha avó Maria. Almoço em casa, família reunida, animação geral, Voa canarinho, voa tocando na vitrola, os adultos no aquecimento etílico, esperando mais uma exibição de gala do Brasil rumo ao tetra e vieram Paolo Rossi com seus três gols, o pênalti não marcado no Zico, a defesa na linha do Zoff e as lambanças do Serginho, entre tantos outros lances daquela tarde trágica no Estádio Sarriá, palco do fim de um sonho que parecia tão real. E lá se foi pela janela o meu álbum de figurinhas dos jogadores da Copa do chiclete Ping-Pong, lágrimas escorriam em um choro verdadeiramente sentido de quem sofria a primeira grande decepção.

No Brasil de 1982, respirava-se política; intensificava-se o processo de abertura — “lenta, gradual e segura” — com eleições diretas para governadores e de renovação da Câmara e do Senado Federal em 15 de novembro. Concorreriam quatro partidos de oposição (PMDB, PTB, PDT e PT), pondo fim ao bipartidarismo (Arena/MDB) que marcou o regime militar. Lembro-me dessa ebulição política, das diferentes opiniões na família e nas ruas, mas dos mesmos anseios de redemocratização.

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Belo Horizonte, 8 de julho de 2014. Há quase que exatos três anos o Brasil era impiedosamente massacrado pela Alemanha. Inapeláveis 7 x 1, sendo cinco gols no primeiro tempo. Estava lá, com meu filho, ambos atônitos. Saímos frios, sem trauma, sem tristeza, mas com muita vergonha e frustração pelo tempo e dinheiro investidos na ilusão da Copa do Mundo.

No Brasil de 2014, respirava-se o mau cheiro da roubalheira de dinheiro público, do superfaturamento de obras e da corrupção escancarada. A Copa foi uma de muitas oportunidades de negócios e negociatas que o governo incentivava como fonte inesgotável de recursos para financiar um projeto de perpetuação no poder. Avizinhava-se uma eleição que teria um número recorde de partidos coligados, transformados em mercadorias num verdadeiro bazar, onde o único e exclusivo interesse era vender o apoio pelo melhor preço. Não representavam anseios dos eleitores, mas os interesses privados de seus apaniguados e financiadores.

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As madeleines futebolísticas ajudam a reviver momentos de dor e frustração pela perda de ilusões, pela dureza de encarar a realidade da derrota, tanto quando éramos os que jogavam mais bonito, mas também quando não jogávamos nada.

O Brasil, no plano tributário, joga bonito em matéria de garantias constitucionais. Tem uma Constituição que assegura direitos fundamentais aos particulares e impõe importantes limites ao poder de tributar, consagrando a legalidade estrita como direito e garantia individual, incondicional e inarredável, verdadeira cláusula pétrea.

O Brasil joga muito feio, e vem perdendo de goleada, pela overdose de tributos, especialmente no que diz respeito à tributação do consumo. Há absoluto consenso de que já passa da hora de adotar um regime de tributação racionalizado e simplificado, mediante a criação de um único tributo sobre o valor acrescentado, um IVA nacional. Não é possível mais tolerar um sistema que sobrepõe competências, onerando o consumo de mercadorias e serviços de uma forma avassaladora, com uma miríade de tributos municipais, estaduais e federais que são fonte permanente de contencioso das empresas e dos particulares com as administrações públicas que, por sua vez, dispendem recursos materiais e humanos que poderiam estar alocados em outras funções de estado mais proveitosas ao cidadão do que a burocracia tributária.

O ambiente de negócios no Brasil é dramaticamente prejudicado também pelo altíssimo grau de litigiosidade no campo tributário. Litigiosidade que mais se avoluma, ao menos em cifras, quando se está diante de reiterados autos de infração que sistematicamente vem desconsiderando a validade de operações de reorganização societária por supostamente lhes faltar “propósito negocial”. Acusações de simulação, fraude, abusos de direito, falta de substância são flechas disparadas indiscriminadamente contra os particulares que, em algum momento, possam ter obtido economia fiscal. A tributação à margem da lei, pela analogia, é prática constante que só aprofunda a insegurança jurídica e a incerteza do particular.

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Neste ano, realizou-se em Miami, de 14 a 16 de junho, o 10º congresso sobre tributação – Estados Unidos e América Latina, organizado em conjunto pela International Bar Association (IBA), pela American Bar Association (ABA), pela filial norte-americana da International Fiscal Asssociation (IFA) e pelo Tax Executives Institute (TEI).

Há dez anos frequento esse evento em que forjei grandes amizades e aprendi muito sobre nossos parceiros regionais. Há muitas semelhanças entre nossos países, mas o gigantismo e a complexidade brasileiros impressionam e são únicos.

No painel que participei sob a tenaz liderança da tributarista canadense Elinore Richardson, uma das idealizadoras do congresso, examinamos como se tem manifestado em nossas jurisdições os conceitos mais em voga atualmente no campo do Direito Tributário, especialmente os de fairness/unfairness e de partiality/impartiality.

Sobre os temas, trouxemos como exemplos do Brasil, quanto ao primeiro, o uso exacerbado de um impróprio voto de qualidade na CSRF, em sentido contrário ao in dubio pro contribuinte, e, quanto ao segundo, a questão das bonificações dos servidores da Receita Federal vinculada à arrecadação de multas tributárias e aduaneiras, matérias amplamente discutidas aqui na ConJur.

No que concerne ao voto de qualidade, a Ordem dos Advogados do Brasil propôs ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.731), em tramitação no STF, cuja lúcida petição inicial pode ser obtida na matéria publicada na ConJur[1]; no que concerne à questão da bonificação, em boa hora o Congresso Nacional suprimiu o dispositivo da lei de conversão da MP 765, o que, nas felizes considerações do colega de coluna Igor Mauler Santiago, representou “uma vitória da moralidade pública sobre o corporativismo”[2].

Ambas as providências são muito bem-vindas e representam uma reação dos contribuintes que estão embaixo contra os desmandos do poder daqueles que estão em cima. A perda de confiança em um julgamento justo na esfera administrativa, seja porque na dúvida do empate prevalece a “qualidade” do voto do Fisco, seja porque há interesse patrimonial na manutenção da sanção, não é admissível em um Estado Democrático de Direito.

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O grande momento do congresso de Miami neste ano foi a fala de Robert B. Stack, ex-secretário-assistente para assuntos fiscais internacionais do Departamento do Tesouro norte-americano, key note speaker do almoço de sexta-feira.

O palestrante nos brindou com uma típica fala norte-americana, sem rodeios e adjetivos, direta ao ponto, chamando a atenção para a necessidade de os países latino-americanos articularem uma agenda própria no âmbito da OCDE, hoje totalmente dominada pelos interesses da comunidade europeia.

Além de Chile e México, que já fazem parte da organização, Brasil[3], Colômbia e Argentina estão pleiteando a admissão no grupo. O ingresso tem prós e contras[4], mas no plano do Direito Tributário exigirá redobrada atenção, notadamente no que diz respeito à adoção das ações do Plano Beps.

Para Stack, o Plano Beps, lançado pelo G-20 e em execução pela OCDE, representa uma reação da Europa às multinacionais norte-americanas, especialmente contra aquelas que se valiam de leis mais benéficas fiscalmente em certos países-membros da comunidade europeia, como Irlanda, Holanda e Luxemburgo, além de outros Estados do continente, como a Suíça.

O palestrante sustentou que a defesa do “interesse europeu” seguirá sendo a principal direção da OCDE. Cabe ao Brasil, juntamente com seus parceiros regionais, trabalhar para produzir um consenso em relação às medidas adequadas para simultaneamente incentivar o desenvolvimento regional e proteger os interesses de arrecadação do Estado, necessários ao financiamento de suas ações.

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O pleito de entrada do Brasil na OCDE, formalizado em maio deste ano, exigirá profundas mudanças estruturais e comportamentais no plano tributário. A reforma da tributação do consumo, com a extinção de uma pluralidade desnecessária de tributos, a simplificação das exigências tributárias, a redução da litigiosidade fiscal, que passa pela necessidade de uma produção normativa equilibrada e com um viés favorável aos interesses da cidadania e não sempre em prol do Estado arrecadador.

O caminho será longo e deve se tomar muito cuidado com a adoção apressada das medidas propostas pelo Plano Beps, eis que a pura e simples importação, sem qualquer filtro prévio de compatibilidade constitucional e legal, já se revelou inadequada, como foi o exemplo da fatídica MP 685/15[5], em boa hora rejeitada pelo Congresso.

A discussão aprofundada desses temas será realizada aqui no Brasil, no Rio de Janeiro, em menos de dois meses, mais precisamente entre os dias 27 de agosto e 1º de setembro, no 71º Congresso Anual da International Fiscal Association, do qual participarão as maiores autoridades científicas em tributação internacional[6].

Trata-se de um evento único, que deverá mobilizar quase 2 mil congressistas, de diversos países do mundo. Uma comunidade de tributaristas internacionais em busca da compreensão do futuro do Direito Tributário no mundo globalizado.

Esperamos que o Brasil se faça bem representado e que suas autoridades políticas e os membros da administração pública compreendam que a adesão à OCDE exige um alto grau de maturidade institucional e fiscal, pois os contribuintes só confiarão em quem lhes transmitir confiança.

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