Diário de Classe

Transformar a cracolândia em um comercial da Doriana funciona?

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1 de julho de 2017, 8h00

Talvez você se recorde: os comerciais da margarina “Doriana” suscitavam o imaginário da família perfeita, limpa, feliz, com 32 dentes, no melhor imaginário burguês americanizado. Terminavam com o jingle: “Os elogios são para você”. Confira:

Spacca
Agradavam o público. Tanto assim que embalavam as famílias na construção de um imaginário que justifica a ação: queremos ser iguais. A iniciativa higienista do prefeito de São Paulo, João Dória (PSDB), quer transformar o centro da cidade em um local aprazível aos olhos e, quem sabe, comercialmente viável, simplesmente varrendo a questão social para baixo do tapete e, também, valendo-se do discurso medicamentoso-higienista da salvação dos desviados, impondo tratamento compulsório. Tudo isso em nome do “bem”, e, claro, ao arrepio das construções democráticas[1].

As cenas da destruição da casa (sim, casa, porque moram na rua) das pessoas, iguais a você e a nós, lembra-nos as cenas do filme MadMax, a saber, hordas de gente “feia”, “sem cuidados”, vivendo na “barbárie”, lutando por sobrevivência, que saiu correndo para fugir da cruzada do bem, da salvação, na ampla inversão do discurso dos Direitos Humanos. A desocupação (como cinicamente dizem) foi assistida por telespectadores estáticos, fascinados pelo sofrimento transmitido ao vivo, enquanto tomavam o café da manhã de domingo, mas com manteiga.

O dito fundamento humanitário se manifesta pela pasteurização, pela neutralidade dos discursos de Direitos Humanos, a qual funciona como mecanismo da ideologia intervencionista, com interesses utilitaristas latentes na varredura que se espetacularizou e, por básico, diversos do discurso manifesto.

O discurso manifesto é o de ajuda humanitária. Mas é o fundamento de uma intervenção capaz de imaginariamente aplacar a culpa e justificar a opressão com a qual, no fundo, se compactua[2]. As intervenções ditas humanitárias escondem os interesses econômicos silenciados no discurso manifesto, como no caso da cracolândia, em que o populismo, a campanha para presidência, o mercado imobiliário e o bom-mocismo é bem mais importante do que a pretensa implementação de qualidade de vida para pessoas que precisam de ajuda de saúde pública e não penal. Foram enxotados e não acolhidos; foram presos e não encaminhados.

A política humanitária é o lema que faz caminhar o povo composto de almas belas no caminho de uma finalidade mal-dita, do qual se fazem instrumento. Congrega, sob a mesma bandeira, desde religiosos pseudo-assépticos ideologicamente até desiludidos agnósticos, fascistas de direita e revolucionários de esquerda, em nome da causa humanitária.

Este engajamento em nome dos Direitos Humanos, todavia, cobra um preço pouco percebido pela maioria jogada na inautenticidade, para usar a gramática heideggeriana, porque desconsidera o sujeito em seu estado constitutivo. Este movimento humanitário invoca a necessidade de salvação, suspendendo os limites democráticos. Serve de instrumento alienado da opressão de um modelo de cidade, de “cidadão de bem” que não quer engajar o sujeito, mas excluir mediante tratamento compulsório. Se você acha que é bom e está tudo certo, deveria compreender os desafios da luta contra instituições totais. Mas pode ser pedir demais, porque sedado pelo discurso do bem, muitos embarcam no discurso da morte[3] — de agentes econômicos nulos. Afinal, são corpos que se pode tocar, em que o limite da dignidade não é mais reconhecido.

Políticas públicas sérias não se fazem com transmissão ao vivo da pseudo limpeza dos “lixos humanos” como os partidários da intervenção havida se referem ao povo que por diversas razões, atira-se nas drogas proibidas, enquanto boa parte acordou e tomou seus remédios (ansiolíticos, analgésicos, enfim, tarja preta) para dar conta da realidade. A diferença é que os perseguidos não têm o dinheiro necessário para fingir uma vida Doriana, típica dos comerciais que, como tais, são da ordem do imaginário e da ficção. O cinismo do bem rompeu os limites do ético. Aniquilar gente tem outro nome na história.

P.S. Confira o vídeo apresentado pelas alunas de Criminologia do Curso de Direito da UFSC: Heloísa Luz das Neves e Juliana Patricia Meyer.


[1] WINTER, Gustavo Schlupp. Internação Compulsória de Dependentes de Drogas. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[2] ZIZEK, Slavoj. Elogio da Intolerância. Lisboa: Relógio D’Água, 2006, p. 14
[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre; AMARAL, Augusto Jobim do. Cultura da Punição: a ostentação do horror. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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