Academia de Polícia

Controle externo não é controle ideológico do delegado de polícia

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

31 de janeiro de 2017, 7h10

Spacca
A atividade do delegado de polícia, além de gerir administrativamente os recursos de uma delegacia de polícia e coordenar atividades de natureza policial, necessariamente também é jurídica. Todas por razões óbvias, porém esta última sofre algumas resistências punitivistas e corporativistas, seja da própria administração superior, por outros colegas delegados, ou de outros membros que compõem o sistema de Justiça criminal, como Ministério Público e magistratura.

Já expliquei na obra Investigação Criminal pela Polícia Judiciária[1] que o delegado de polícia efetiva direito no caso concreto, ou seja, aplica o Direito Penal, Processo Penal e, muitas vezes, buscando em ouros ramos do Direito, como o Civil e o Processo Civil, o conhecimento necessário para se analisar o caso penal.

Para ilustrar, em determinada ocasião, chegou ao meu conhecimento, por meio de petição protocolizada na delegacia em que estava lotado, narrativa de fato em que se pleiteava instauração de inquérito policial por crime contra o patrimônio.

Por esse exemplo o leitor irá perceber, seja ou não do Direito, uma hipótese típica de análise jurídica de um caso concreto, em particular, fato na qual o delegado de polícia, não vislumbrando fato típico, decide pelo indeferimento da instauração de inquérito policial. E isso é possível? É óbvio que sim. A delegacia de polícia é órgão de persecução criminal e não de persecução civil, portanto, não se instaura inquérito policial de fato atípico.

Tenho defendido que esta análise técnica-jurídica que enseja óbice na instauração de inquérito policial se trata de uma decisão e não, como sois a ser denominado na praxe, como um despacho. Sobre a natureza decisória de provimentos emanados do Delegado de Polícia, basta conferir o artigo que escrevi publicado na Revista Juris Síntese[2].

Voltando ao caso, narrava o noticiante um negócio jurídico de natureza locatícia no qual ele, como locador, informa um inadimplemento contratual, razão pela qual iniciou processo de execução por título executivo extrajudicial distribuído na 16ª Vara Cível da Comarca da capital, sob o número “X”.

Nesse diapasão, noticia que nos autos do processo de execução supramencionado o noticiado estaria utilizando de artifício e ardil para se eximir do adimplemento contratual dificultando o cumprimento de atos jurisdicionais na forma do artigo 14, parágrafo único e 600, ambos do CPC, atualmente artigo 77, parágrafos 1º e 2º c/c artigo 774, respectivamente, todos do novo CPC, juntando, aos autos da notitia criminis, ficha cadastral e certidões de diversos órgãos estatais e privados, no afã de comprovar a má-fé da imputada (noticiado/suspeito).

Nesse sentido, requereu o noticiante instauração de inquérito policial por um fato ilícito penal sem dizer qual. As informações se aproximavam da tipicidade do delito de estelionato ou fraude processual, no entanto, para a configuração desses delitos mister tipicidade subjetiva e objetiva do injusto, o que não ocorreu no caso.

Tratava-se, como analisei, de um ilícito civil, e não ilícito penal, pois se verificou a existência de uma ficha cadastral indiciária da existência de um contrato, tendo em vista o ajuizamento de uma execução por título extrajudicial, conforme informado, com declarações fiéis aos demonstrados pelo contratante nos documentos juntados pelo comunicante, bem como uma escritura pública, portanto, com efeitos erga omnes, de que a residência do imputado se tratava de uma posse de boa-fé por força de uma cessão de direitos de uso sobre um imóvel arrematado em outra execução, cedido pelos arrematantes, que diante desses fatos descaracterizou o elemento fraude e o dolo de obter vantagem ilícita ab initio, bem como de inovar ou induzir a erro o magistrado ardilosamente.

Assim, trata-se de ato jurídico lícito, porém com violação de uma obrigação, que resultou em uma inexecução contratual, demonstrando o noticiante que não teve o dever objetivo de cuidado de pesquisar devidamente se o sujeito passivo do negócio possuiria meios suficientes para arcar com eventual inadimplemento contratual, o que denota se tratar de uma questão a ser resolvida na esfera civil, e não penal, por força, em tese de uma violação à boa-fé objetiva e princípio da solidariedade nos contratos.

Diante do narrado na petição que se denomina notitia crimins, na verdade se tratava de uma notitia civilis[3], na qual não dá ensejo a instauração de inquérito policial, que mereceu seu devido indeferimento, da qual caberia recurso ao chefe de polícia, conforme artigo 5º, parágrafo 2º do CPP.

Poderia esse noticiante se socorrer do Judiciário? É cediço que a esfera administrativa não impede que aquele que se sentir prejudicado se socorra do Judiciário, diante do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, esculpido no artigo 5º, XXXV da CR.

No entanto, é vedado ao juiz a se enveredar ativamente na persecução penal, em especial no inquérito policial, determinando diligências e fazendo controle das atividades investigatórias do delegado, mesmo que previsto no Código de Processo Penal, pois denota afronta ao sistema acusatório, não tendo sido considerado recepcionado pela constituição o artig 5º, II e o artigo 13, II, ambos do CPP, que permitiriam essa atividade jurisdicional.

Sob esse tema trago à baila o escólio de Paulo Rangel (RANGEL, 2013, p. 60)[4], que, em síntese, ao comentar esses dois dispositivos em sua obra, aduz:

“A Constituição foi clara no art. 129, VIII, pois este inciso, em harmonia com o inciso I (privatividade da ação penal pública), dá bem ideia do afastamento do juiz nesta fase. Portanto, o art. 13, II, do CPP não foi recepcionado pela Constituição Federal, que adotou o sistema acusatório”.

Verifica-se com isso que o artigo 5º, XXXV não se aplica ipsis literis, sob pena de se afrontar a própria democraticidade do Estado de Direito no âmbito do sistema acusatório.

Em outras palavras, a inafastabilidade é aplicada em hipótese de violação de garantias fundamentais do investigado ou réu em circunstâncias tais, que permita a lei, atos do delegado de polícia, na investigação criminal, que possa ensejar violações por ato administrativo deste, devendo, então, o Judiciário se insurgir contra, o que não engendra conclusão de que possa a magistratura exercer atividade de iniciativa ou gestão da prova, consequentemente de atos de investigação criminal fora da reserva absoluta da jurisdição (CANOTILHO, 2003, p. 584)[5].

Resta-nos uma indagação: poderia o noticiante, por via oblíqua, se socorrer do Ministério Público, sob a alegação de exercer controle externo da atividade fim da polícia judiciária requisitar, mano militari, a instauração de inquérito policial?

A resposta que se impõe é negativa.

Por uma razão muito simples, o próprio artigo 129, VIII da CR exige que as manifestações emanadas do respeitável órgão do Ministério Público sejam fundamentadas.

A “requisição” ministerial não é um cheque em branco a ensejar relação de hierarquização entre os órgãos. Antes de tudo, são funções que não se confundem, pois não há subordinação entre elas, apesar de guardar relação de escalonamento. Não há sequer relação de meio e fim entre suas funções, mas relação de progressividade funcional.

Outrossim, controle externo não implica em controle ideológico ou controle técnico-jurídico do delegado de polícia.

Há, portanto, entre os órgãos características eminentemente de freios e contrapesos, razão pela qual afirma Tourinho (TOURINHO, 1999, p. 34)[6] que a autoridade policial não estará obrigada a cumprir se a requisição for “bisonha e absurda, sem o mínimo de informe que possibilite ao menos um início de investigação”.

A necessidade de fundamentação da requisição é repetida por André Nicolitt (2014, p. 193)[7], nos lembrando posicionamento do STF no mesmo sentido:

“De qualquer forma, a requisição de instauração do inquérito policial deve ser fundamentada, e, na hipótese de a requisição apresentar manifesta ilegalidade, a autoridade policial poderá recusar-se a instaurá-lo, como já decidiu o STF no RE 205.473/AL, rel. Min. Carlos Velloso, 15.12.1998”.

Por fim, o Supremo Tribunal Federal, apesar de ainda não publicar o voto com a balizas sobre a investigação subsidiária do Ministério Público, por intermédios do procedimento de investigação criminal (PIC), é cediço que já exteriorizou o pretório excelso que uma das hipóteses é a negativa de a polícia de investigar.

Essa hipótese poderia engendrar um mecanismo de freios e contrapesos e resguardar a autonomia funcional do delegado de polícia perante o sistema acusatório e da Lei 12.830/13, posto que autoriza o parquet, acaso discorde da decisão do delegado, instaurar procedimento próprio, se não fosse o equívoco epistemológico de que a acusação da forma que é regulamentada no Brasil não poderia acumular a função de investigar, porém essa ressaltava não cabe ser desenvolvida nesta oportunidade.

E, no caso aventado acima, acaso o Ministério Público insistisse em instaurar um procedimento investigatório em desfavor do noticiado, este poderia buscar no Judiciário mecanismo de impugnação, por meio de Habeas Corpus, para trancar a investigação por flagrante atipicidade ou até mesmo por ser destoante em um ordenamento democrático, que um órgão que acuse seja também um investigador sem limites e sem controle externo.

Em outras palavras, o controle jurisdicional poderá se dar sempre e sem que se avilte a independência funcional de todos os órgãos que atuam na persecução penal, inclusive sem controle ideológico dos atos do delegado de polícia.

Poderá haver controle jurídico, o que significa discordância da ilação jurídica emanada em razão da própria natureza divergente que há em muitos casos sobre a tese jurídica aplicável ao caso concreto.

O controle ideológico é retaliação autoritária e política, típica do decisionismo, um golpe no exercício pleno da função jurídica e imanente de interpretar a norma e aplicar a lei ao caso concreto.


[1] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Função de Decisão e de Cautelaridade da Prova do Delegado de Polícia. CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano [et all]. In: Investigação Criminal pela Polícia Judiciária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016, p. 43 e 44.
[2] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre: Síntese, v.13, nº 74, jun./jul. 2012, p. 10 a 17.
[3] Termo nosso.
[4] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 21ªEd. São Paulo: Atlas.
[5] CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. edição, Almedina. "Esta garantia de justiça tanto pode ser reclamada em casos de lesão ou violação de direitos e interesses particulares por medidas e decisões de outros poderes e autoridades públicas (monopólio da última palavra contra actos do Estado) como em casos de litígios particulares e, por isso, carecidos de uma decisão definitiva e imparcial juridicamente vinculativa (monopólio da última palavra em litígios jurídicos-privados)" (grifo nosso).
[6] FILHO, Fernando da Costa Tourinho. Código de Processo Penal Comentado, 5ª ed. São Paulo: Saraiva. vol. 1.
[7] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 5ª Ed., São Paulo: Revista dos Tribunais.

Autores

  • Brave

    é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

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