Análise Constitucional

Espanha mostra que posições morais são insuficientes para não nomear magistrado

Autor

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

29 de janeiro de 2017, 7h01

Spacca
“Somos muitos os que consideramos que a vida de um ser humano inocente e indefeso é conteúdo inegociável do mínimo êxito de uma sociedade que mereça o nome de humana. É necessário mudar em suas raízes uma sociedade que, para manter sua lógica, vê-se obrigada a permitir, e inclusive a promover, que as mães deixem destroçar seus filhos antes do nascimento”.[1] “Falar em matrimônio homossexual não faz sentido algum em termos jurídicos, é algo inconcebível. Está sendo imposta, a partir do poder, uma opção moral e com tal medida somente se aspira que a sociedade deixe de considerar determinadas condutas íntimas – despidas de qualquer relevância jurídica – como imorais”.[2]

Essas declarações, proferidas por um professor de Filosofia do Direito com vasta experiência na vida pública e membro da prelazia católica Opus Dei, foram amplamente divulgadas quando de sua indicação para compor o Tribunal Constitucional espanhol. Em julho de 2012, o Congresso dos Deputados, sob a condução do governo de Mariano Rajoy, elegeu Andrés Ollero Tassara para o cargo de magistrado da corte constitucional, o que desencadeou uma grande discussão acerca da compatibilidade de suas crenças religiosas com o exercício de tão relevante função numa sociedade moderna.

Em síntese, a polêmica – que foi agora retomada com a possibilidade da eleição de Ollero para a presidência do Tribunal Constitucional – dizia com isenção do novo juiz para os julgamentos de questões tuteladas pela doutrina moral católica, os quais seriam orientados não por critérios políticos, mas sim religiosos, de modo incompatível com a laicidade do Estado espanhol. A discussão tornou-se mais acalorada pois Ollero, ao entrar no tribunal, assumiu a relatoria do recurso de inconstitucionalidade contra a legislação que aumentava o prazo para abortos.[3]

A resposta de Andrés Ollero a tais críticas foi de ordem jurídica e pragmática, demonstrando a inconsistência dos temores levantados pelos diferentes grupos de pressão que se manifestaram contra sua escolha para o Tribunal Constitucional.

Inicialmente, sublinhou que a Constituição espanhola de 1978 – um dos documentos inspiradores dos constituintes brasileiros de 1988 – garante a liberdade religiosa e proíbe qualquer discriminação em função de crença. O texto constitucional da Espanha impede “qualquer atitude inquisitorial que derivaria inevitavelmente em exclusões discriminatórias”.[4] Assim, vetar o nome de alguém para o exercício de uma função pública por bases religiosas seria conduta manifestamente inconstitucional.

Ademais, tal postura indicaria, na compreensão de Ollero, uma mostra de irracionalidade política. Ao invés de agregar os pontos de vista diferentes ao debate político-institucional, havia, por parte dos críticos, simplesmente a desqualificação liminar de quem pensa de modo diverso, tachando as ideias do oponente como “pre-constitucionais”, o que no contexto espanhol significa associar o adversário ao autoritário passado franquista e a uma postura de desrespeito aos direitos fundamentais conquistados com a redemocratização.

Especificamente sobre a atuação no Tribunal Constitucional, o magistrado enfatizou a distinta lógica que informa os juízos jurídicos e os ditames morais:

“É bem conhecida minha recente eleição como magistrado do Tribunal Constitucional, com a que me honraram duzentos e sessenta membros do Congresso dos Deputados. Como tal, jurei dedicar-me à função própria dessa alta instituição, respeitando uma estrita metodologia jurídico-constitucional, distinta da que é típica de polêmicas morais ou debates políticos. Isso não implica relativismo, nem teoria da dupla verdade, mas admitir que a racionalidade exige deslindar a metodologia e a argumentação aceitável num âmbito e noutro”.[5]

Por fim, a própria função institucional do Tribunal Constitucional e seu modo de funcionamento deveriam ser levados em consideração:

“O que os meios de comunicação transmitem, assim como aqueles que oportunistamente os secundam, pode desorientar os cidadãos acerca da função do Tribunal Constitucional e de seus magistrados. Não é sua função pronunciar a última palavra que encerre um debate político ou moral, mas garantir que tenham sido respeitados os limites constitucionais.

Não faz sentido, pois, imaginar que os magistrados cheguem ao tribunal com receitas prontas; não é o mesmo que expressar com liberdade o que a alguém parece moralmente mais valioso ou politicamente mais desejável, mas sim definir, com objetiva imparcialidade, se foram respeitadas as mínimas exigências constitucionais em uma determinada resolução, seja qual for o grau em que se possa, subjetivamente, considerá-la valiosa ou desejável”.[6]

No que toca ao funcionamento, no Tribunal Constitucional espanhol, como em qualquer órgão colegiado, a cada magistrado corresponde um voto, de modo que é da deliberação do conjunto, e não das crenças pessoais de um determinado membro, que decorrem as decisões, influenciadas inclusive pela manifestação de atores externos à própria corte.

As considerações de Andrés Ollero na polêmica envolvendo sua escolha para o Tribunal Constitucional da Espanha reforçam argumento já exposto nesta coluna da ConJur[7], em março de 2015: etnia, religião, naturalidade ou gênero não são fatores determinantes na formação das maiorias na jurisdição constitucional, uma vez que para elas contribuem aspectos muito mais específicos e técnicos, tais como a compreensão que tem o juiz de seu papel institucional, da função do ordenamento jurídico na sociedade, do modo como a constituição deva ser interpretada, etc.

A experiência mostra que esses são os critérios com base nos quais as decisões da jurisdição constitucional podem ser classificadas e não por referenciais de gênero, etnia ou religião. Exemplos comprobatórios desse argumento podem ser retirados da experiência jurisdicional da Suprema Corte americana:

“Em 1991, quando pela primeira vez se considerou seriamente a possibilidade de a Suprema Corte rever o precedente do caso Roe v. Wade, por meio do qual se reconheceu, em 1973, o direito de as mulheres fazerem abortos, essa revisão foi evitada pelo voto do justice Anthony Kennedy, um católico indicado por Ronald Reagan.

Ao julgar o caso Planned Parenthood v. Casey, Kennedy, apesar do magistério da Igreja Católica, formou com outros quatro juízes (todos eles WASPs, sigla em inglês para brancos, anglo-saxões e protestantes) uma maioria que reafirmou o direito ao aborto, ainda que admitindo regulações pela legislação dos Estados. (…)

Em outro tema polêmico, o reconhecimento de direitos dos homossexuais, novamente o critério religioso não orientou a decisão da Corte. Inicialmente, em 2003, a Suprema Corte considerou, julgando Lawrence v. Texas, inconstitucional a criminalização de relações sexuais entre homens. Mais uma vez, o voto fundamental para a formação da maioria foi o do católico Kennedy, responsável inclusive pela redação da decisão.

Também é de Kennedy a decisão que, em 2013, considerou inconstitucional a definição legal de casamento como a união entre um homem e uma mulher, no julgamento do caso United States v. Windsor, abrindo espaço para o reconhecimento pleno dos casamentos entre pessoas do mesmo sexo.

Por fim, para concluir os exemplos, é possível ainda citar a posição do justice Antonin Scalia, católico praticante indicado por Reagan, que é um dos mais fortes defensores da pena de morte nos Estados Unidos. Seu entendimento favorável à execução de criminosos pode ser depreendido dos incisivos votos dissidentes proferidos nos casos Atkins v. Virginia (2002) e Roper v. Simmons (2005), em que a Suprema Corte considerou inconstitucional a aplicação da pena capital a deficientes mentais e a menores de idade”.[8]

Essa aparente incongruência na atuação de Scalia foi relembrada pela imprensa quando de sua morte, em fevereiro de 2016. Não foram poucos  os veículos que o acusaram de incoerência e, pasmem, de relativizar a doutrina católica para justificar suas posições na Corte.[9]

De qualquer modo, a visão majoritária foi a de que Scalia, para além de ser católico, era sim um ferrenho originalista e um defensor constante da ideia de que as questões morais não deveriam ser objeto de decisão nos tribunais, mas sim pelas vias democráticas.[10] E, por mais que se possa criticar seu entendimento em relação à pena de morte, é certo que o magistério eclesiástico em nada influiu na formação de suas decisões.[11]

Nesse contexto, defender, em nome de suposta diversidade, a nomeação de um magistrado com base em critérios étnicos, religiosos ou de gênero, ou, por outro lado, vetar uma candidatura por força desses mesmos critérios, é fator de confusão no importante debate em torno da formação dos órgãos responsáveis pela jurisdição constitucional.

A discussão a partir desses “rótulos” simplifica de modo deletério a complexa equação de composição de um tribunal constitucional, afastando os órgãos de poder responsáveis pela seleção do novo magistrado – e também a população, que deveria efetuar um controle social desse processo – dos aspectos verdadeiramente essenciais, componentes daquilo que os norte-americanos genericamente chamam de “filosofia judicial”.

A discussão sobre a escolha de Andrés Ollero para o Tribunal Constitucional espanhol e sua isenta atuação no colegiado demonstram quão graves e injustas podem ser as repercussões da sobrevalorização desses critérios étnicos, religiosos e de gênero nas indicações para o exercício da jurisdição constitucional. Em especial quando, em nome da preservação das estruturas de defesa da Constituição, adotam-se argumentos contrários a garantias constitucionais, como a liberdade religiosa e de consciência, bem como a laicidade do Estado, que, ao não ter uma religião oficial, não pode discriminar o indivíduo por suas crenças, vetando seu acesso a esta ou àquela função pública.


[1] Andrés Ollero.“Despotismo moral”. Ya, Madrid, edição de 18 de março de 1987.

[2] “‘Hablar de matrimonio homosexual no tiene sentido en términos jurídicos’, señala un experto”, Notícias, Universidade de Navarra, 10.05.2005, disponível em: http://www.unav.es/noticias/130505-03.html

[3] El País. “Un magistrado antiabortista ‘hereda’ el recurso del aborto en el Constitucional”, edição de 13 de agosto de 2012, disponível em: http://politica.elpais.com/politica/2012/08/13/actualidad/1344890870_966302.html

[4] Andrés Ollero. “Religiones razonables”. ABC, edição de 16 de agosto de 2012, p. 3, disponível em: http://hemeroteca.abc.es/nav/Navigate.exe/hemeroteca/madrid/abc/2012/08/16/003.html

[5] Idem.

[6] Idem.

[7] Carlos Bastide Horbach. “Que critérios devem orientar as escolhas para a Suprema Corte americana?” ConJur, edição de 21 de março de 2015, disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mar-21/observatorio-constitucional-criterios-orientar-escolhas-suprema-corte-eua

[8] Idem.

[9] Essa crítica já era comum antes mesmo da morte do magistrado, como demonstra o seguinte artigo de Lisa Miller: “Justice Scalia speaks for himself on death penalty, not the Catholic Church”. The Washington Post, edição de 27 de outubro de 2011, disponível em: https://www.washingtonpost.com/national/on-faith/justice-scalia-speaks-for-himself-on-death-penalty-not-the-catholic-church/2011/10/26/gIQAXkueLM_story.html?utm_term=.a4d16ee25202. Interessantes são os seguintes trechos do artigo: “In 2007, Benedict [XVI] sent a letter through an emissary pleading for clemency in the Georgia capital case of Troy Davis. On Sept. 21, the U.S. Supreme Court denied Davis’s petition for a stay of execution and Davis was killed by injection. One doesn’t know how Scalia voted. But in any case, that justice’s professional and democratic obligations overrode the express wishes of his pope that night.

(…)

I don’t want a justice sitting on the Supreme Court who submits blindly to religious authority or who holds his religion above the laws of the land. So keep your job, Justice Scalia. Just don’t pretend your church approves of the death penalty. Or that you aren’t like most people of faith, cherry-picking the teachings of your church that suit you best”.

[10] Emma Green. “What the death of Justice Scalia means for religious liberty”. The Atlantic, edição de 14 de fevereiro de 2016, disponível em: http://www.theatlantic.com/politics/archive/2016/02/what-scalias-death-could-mean-for-religious-liberty/462759/. “His Roman Catholic faith often seemed to lurk in the background of his opinions, especially in cases involving abortion and homosexuality. But above all, he was committed to a literal, originalist interpretation of the Constitution, along with strict attention to the texts of federal and state laws. His views didn’t always align with those of the Church, and he didn’t always side with people making religious-freedom claims”.

[11] Confrontado com um pedido dos bispos americanos para que, no julgamento do chamado Obamacare, a Suprema Corte definisse uma exceção para as instituições católicas, de modo a acomodar a nova lei a suas crenças, Scalia respondeu: “Se os bispos querem uma exceção na lei, eles deveriam tentar obtê-la pelo processo democrático (…) Os americanos são muito generosos na acomodação das crenças religiosas, preferindo essa acomodação a obtê-las das cortes” (cf. John L. Allen Jr. “Scalia faith a defining element of his life”. Crux, edição de 13 de fevereiro de 2016, disponível em: https://cruxnow.com/life/2016/02/13/scalias-faith-was-a-defining-element-of-his-life/

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