Big Brother Penal

"Quebrar sigilo de comunicação em investigações virou fetiche de autoridades"

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29 de janeiro de 2017, 6h01

Spacca
Os reiterados pedidos do Ministério Público e da Polícia Federal para quebrar o sigilo de conversas por aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram são um subterfúgio para acobertar o problema real: as autoridades brasileiras não sabem mais investigar de outra maneira. A opinião é do advogado criminalista Leonardo Sica, que é ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.

“Quebrar sigilo de comunicação em investigações virou fetiche das autoridades brasileiras. Eles escolhem esse meio, muitas vezes, sem esgotar outros”, diz Sica. O advogado ressalta a importância dessa linha de investigação, mas pondera que ela não pode prevalecer sobre outras.

“A quebra de sigilo da comunicação sempre afeta direitos importantes do investigado. Esses direitos são afastados durante a investigação, mas sempre são afetados direitos de terceiros. Uma comunicação sempre é multilateral, o investigado sempre fala com várias pessoas”, detalha o criminalista.

Sica afirma ainda que o Brasil é o país ocidental com maior número de solicitações de quebra de sigilo em relação aos aplicativos de mensagens. Nessa discussão é preciso ser destacado que essas medidas invasivas devem ser solicitadas por meio do acordo bilateral de troca de informações criminais que o Brasil tem com os Estados Unidos, pois é no país anglo-saxão que estão sediadas as empresas que oferecem esses serviços.

O advogado conta que nos EUA há uma preocupação muito maior com a proteção da intimidade. “Temos que aprender em alguma medida a também dialogar com as autoridades dos EUA, e tentar entender como eles analisam a questão do sigilo de dados, até porque as autoridades norte-americanas não são levianas em relação a isso, porque eles têm problemas de segurança nacional muito maiores que os nossos.”

Outro subterfúgio usado pelas autoridades brasileiras, segundo Sica, são as decisões em relação à política carcerária. Ele opina ainda que as medidas adotadas nada mais são do que meios para agradar a população, que aplaude a barbárie e o encarceramento em massa para afogar suas próprias frustrações.

“A prisão permite a canalização de uma série de frustrações sociais. Ela satisfaz uma necessidade psicossocial de castigo […] Diversas angústias da população que o poder político não consegue responder são aplacadas pelo oferecimento de uma resposta ilusória, o porrete penal”, crítica.

Leia a entrevista:

ConJur – Por que a Justiça brasileira insiste tanto em obrigar o fornecimento de dados do WhatsApp e de outros aplicativos de mensagem por decisão judicial, mas não usam o acordo bilateral que o Brasil tem com os EUA?
Leonardo Sica –
Existe um excesso muito grande de determinações judiciais para interceptar comunicações ou troca de dados pela internet no Brasil. O Brasil, sem dúvida nenhuma, é o país do Ocidente em que há mais determinações judiciais e policiais de requisição de dados e interceptação de comunicação telefônica ou de internet dos cidadãos. Isso cria uma tensão natural entre o Poder Público e as empresas de comunicação. Todo excesso leva a outros. Como existe uma política desenfreada de quebra de sigilos de comunicação e de internet, o que vai acontecendo em um país do tamanho do Brasil é que vão se disseminando práticas das mais diversas.

ConJur – Como assim?
Leonardo Sica –
Juízes, delegados e promotores vão adotando procedimentos próprios de pedidos de dados, de quebra de sigilo e é contra isso que a advocacia e as empresas vêm se insurgindo, mais para buscar uma padronização que se adeque ao panorama jurídico internacional. É um pouco obsoleto acreditar, numa sociedade globalizada, que as comunicações possam se governar apenas por leis locais. Claro, eles têm que seguir as leis locais, evidente, seguir as leis locais, a Constituição e a lei de cada país, mas essas têm que estar no mínimo sintonizadas com normativas internacionais, até porque as comunicações são transacionais hoje em dia.

ConJur – E como resolver isso?
Leonardo Sica –
Existem instrumentos de cooperação que funcionam muito bem, nem sempre funcionam com a mesma agilidade de outros mecanismos, mas justamente para buscar essa adequação de uma realidade que é transnacional. Nos últimos anos houve um ajuste maior entre as autoridades e as empresas, hoje temos muito menos conflitos em relação à resistência às ordens judiciais de fornecimento de dados porque o marco civil da internet permitiu um avanço justamente para padronizar certos conceitos: o que é um dado cadastral, o que é uma comunicação. Porque a realidade da internet é dificilmente capturável por textos legais, porque ela muda muito rápido. Temos que ter padrões, molduras legais. E, dentro dessa moldura, temos que nos adequar, por meio da dialética do processo. As partes (juízes e Estado) devem dialogar para se adequar à uma realidade que ainda é muito fluída, para citar o (Zygmunt) Bauman, muito líquida para nós do Direito. Quando falamos de dados na nuvem, estão em um país, estão em outro, ou estão em nação alguma, são dilemas que só podem ser compreendidos por meio do diálogo.

ConJur – O que falta à magistratura nesse diálogo?
Leonardo Sica –
Os magistrados precisam entender que algumas ordens judiciais não serão cumpridas em algumas ocasiões, ou não serão imediatamente cumpridas, porque existe incompreensão. Muitas vezes estamos procurando na internet algo que a gente nem sabe como procurar direito, por quais caminhos procurar. É uma realidade muito veloz, muito dinâmica, que nos surpreende todo dia. Mas já houve um avanço em relação às empresas internacionais. Todos os grandes provedores de conexão da internet estão nos Estados Unidos, não adianta lutarmos contra isso. Temos que aprender em alguma medida a também dialogar com as autoridades dos EUA, e tentar entender como eles analisam a questão do sigilo de dados, até porque as autoridades norte-americanas não são levianas em relação a isso, porque eles têm problemas de segurança nacional muito maiores que os nossos.

ConJur – Essa liquidez é o maior desafio do Direito hoje? Leonardo Sica – Alguns temas demandam uma legislação transnacional. Nas trocas de dados pela internet, evidentemente, é preciso caminhar para marcos jurídicos transnacionais. Porque a legislação precisa ser um recorte da realidade.

ConJur – O que explica essa pressão das autoridades brasileiras para acessar os dados?
Leonardo Sica –
Quebrar sigilo de comunicação em investigações virou fetiche das autoridades brasileiras. Eles escolhem esse meio, muitas vezes, sem esgotar outros. Temos investigações que se dão única e exclusivamente pela quebra de sigilo de comunicação. Claro, é um meio de investigação importante, mas não pode ser tão prevalente. A quebra de sigilo da comunicação sempre afeta direitos importantes do investigado. Esses direitos são afastados durante a investigação, mas sempre são afetados direitos de terceiros. Uma comunicação sempre é multilateral, o investigado sempre fala com várias pessoas. Há, por exemplo, em legislações como a dos Estados Unidos e de outros países, uma preocupação maior com a proteção da intimidade, da privacidade, e um equilíbrio entre a intimidade, privacidade e o poder de polícia do Estado que precisa ser efetivado.

ConJur – A ideia dos bloqueadores de celular em presídios é outro subterfúgio?
Leonardo Sica –
Há uma ausência de política em relação à questão carcerária e a questão do celular mostra isso de forma  bem clara. Poderíamos optar por uma política extremamente limitativa, que é a atual, ou a poderíamos disciplinar o uso de telefones fixos dentro dos presídios, instalar linhas em que os presos teriam acesso limitado a um número de horas por semana e mediante a apresentação de uma lista de contatos. O preso poderia falar com as pessoas listadas por esse telefone fixo. Isso permitiria um controle muito maior das autoridades e impediria que uma grande massa que apenas deseja falar com seu advogado ou com a sua família fosse cooptada pelas facções criminosas que aproveitam essa proibição para franquear o uso de telefones celulares, que somente entram no presídio por meio de corrupção.

ConJur – Não existe outro meio de burlar a fiscalização?
Leonardo Sica –
Não. Para um celular entrar no presídio precisa de um meio de corrupção. Eu que sou advogado vou ao presídio conversar com meus clientes e não consigo nem passar uma folha de procuração sem antes entregá-la a um agente penitenciário que o repassa ao cliente. Então, evidentemente, se eu quisesse entregar um celular, eu só conseguiria entregar pelo mesmo meio que eu entrego a procuração.

ConJur – Essa afirmação do ministro da Justiça de monitorar conversas entre advogados e seus clientes na prisões é outro subterfúgio?
Leonardo Sica –
A afirmação do ministro da Justiça é, do ponto de vista do Direito Constitucional, descabida. Surpreende que ele seja um constitucionalista, porque é absolutamente descabido  grampear indistintamente a conversa entre advogados e clientes, que é o que ele propõe. Essa ideia não toca, nem de perto, o núcleo dos problemas carcerários no Brasil. Mesmo que a proposta do ministro fosse levada adiante, ela não traria nenhum benefício para o sistema penitenciário, não melhoraria a situação de caos que nós vivemos. As causas são variadas.

ConJur – Quais são?
Leonardo Sica –
Uma delas é a reiterada negligência de governos estaduais e federais. Há décadas não cuidam do problema. Outra, que é curiosa, é que talvez não exista essa negligência. Os governos são guiados pela opinião pública, e, talvez, eles tratem o sistema carcerário dessa maneira porque isso atende a boa parte da opinião pública, se não a maioria. A sociedade, lamentavelmente, aplaude essa cerimônia degradante de enjaularmos cada vez mais seres humanos. Enjaular, tratar mal, e devolvê-los à sociedade de uma maneira irresponsável, porque quem é tratado como animal só pode reagir como animal. Tenho notado que o discurso da prisão organiza os piores sentimentos dos seres humanos. Todos os que falam a favor da prisão e das violências na prisão encontram nesse discurso um lugar para veicular sentimentos como raiva, frustração, intolerância, racismo, exclusão, segregação.

ConJur – Um lugar de fuga?
Leonardo Sica –
Um lugar até para se esconder, porque só isso justifica o imenso imenso apoio popular à barbárie que estamos vendo. Qualquer um que propõe uma medida civilizatória no sistema carcerário vira vidraça. São reações pessoalmente raivosas, porque o discurso da prisão oferece um lugar para os sentimentos que listei. E temos que enfrentar isso, porque não é razoável que o sistema de punição pública e legal dê vazão a sentimentos de vingança, de exclusão, de ausência de autoridade.

ConJur – A política carcerária brasileira agrada parte da população. Isso não é uma canalização, errada, de todo o ressentimento com a corrupção endêmica do nosso país?
Leonardo Sica –
A prisão permite a canalização de uma série de frustrações sociais. Ela satisfaz uma necessidade psicossocial de castigo. Existe uma antropóloga brasileira que está radicada nos Estados Unidos que chama Teresa Caldeira, ela tem um estudo chamado "Cidade de Muros" que mostra que até angústias como desemprego e crises econômicas são de certa forma anestesiadas por meio do discurso do crime, da prisão, e como muitas vezes o poder político usa isso. Diversas angústias da população que o poder político não consegue responder são aplacadas pelo oferecimento de uma resposta ilusória, o porrete penal. Se nós seguirmos tratando pessoas como animais, não teremos uma nação civilizada.

ConJur – E esse “animal” sai da jaula e te morde…
Leonardo Sica –
Pois é, e sei qual é a resposta que o leitor enfurecido: "Por isso que os matamos na prisão". E assim vamos mergulhando de vez na barbárie, é aceitar viver na Idade Média. Para esses que querem viver na Idade Média eu sugiro o seguinte: renuncie a todas as benesses da Idade Moderna, coloque uma espada embaixo do braço e saia na rua como era na Idade Média. As pessoas aceitam que a Idade Média exista, mas somente em lugares circunscritos.

ConJur – A advocacia está tão punitivista quanto o resto da sociedade?
Leonardo Sica –
A advocacia está absorvendo essa cultura encarcerante, essa conduta punitiva da sociedade. E o está fazendo mais do que há 20 anos. A advocacia não é uma célula isolada da sociedade, mas falta, nesse momento, coragem e lucidez para remar contra a maré. Buscamos lucidez nos estudos, na academia. Precisamos ouvir um pouco mais quem estuda sobre prisão, que talvez seja uma das instituições mais estudadas pela academia, por gente séria, que não é advogado, que não defende bandido, que está lá pensando em ideias que insistimos em negligenciar. A advocacia, em grande parte, cansou de resistir a um impulso irracional muito forte. E é nesse momento que precisamos recobrar a nossa força e ter a tranquilidade de retomar a coragem e a lucidez de tentar colocar o tema em termos racionais. Não estou falando de direitos humanos ou apelando a sentimentos humanitários, quero ser pragmático: não funciona o sistema penitenciário, não funciona a política de prender mais e mais pessoas, não vai funcionar construir mais vagas. Construir mais vagas é uma condenação do nosso futuro.

ConJur – Há relação entre essa falta de gente remando contra a maré e o ensino de Direito?
Leonardo Sica –
A formação jurídica mais forte, que tínhamos há 20 anos, quando o ensino jurídico era mais bem estruturado, dava aos profissionais do Direito o discurso necessário para responder a esses anseios da sociedade. O que falta atualmente aos profissionais do Direito é o discurso. Como não temos mais o discurso, há uma grande adesão ao senso comum do "prende e mata". A faculdade não está formando esse discurso, sem dúvida nenhuma.

ConJur – A política de drogas contribuiu muito para a nossa crise penitenciária de hoje?
Leonardo Sica –
A política de drogas fornece dois elementos essenciais para a crise. O primeiro é a mão de obra gratuita ao crime organizado, porque joga no sistema penitenciário milhares de jovens que são consumidores, usuários ou pequenos comerciantes, e, dentro dos presídios, eles não têm outra alternativa à sobrevivência que não aderir às facções. O segundo elemento é que a política de drogas cria um mercado negro rentável. Existe uma tendência mundial que o Brasil ainda se recusa a discutir que é a descriminalização. Muitos estados dos EUA, que é o maior incentivador da guerra às drogas, que já descriminalizaram o uso de várias drogas leves. Temos o Uruguai que descriminalizou. Lembro que anos atrás as pessoas falavam: "Olha o que vai virar o Uruguai", e o que virou? Na pior das hipóteses está igual, vivendo com os mesmos problemas.

ConJur – As taxas de homicídio já caíram.
Leonardo Sica –
Sim. Estive lá, vi lojas vendendo maconha na rua, passei com meu filho, de 11 anos, por algumas lojas, e não foi nada chocante, era algo integrado ao comércio da cidade, e isso tira a força do comércio ilegal. Se descriminalizar a maconha, ela sai da economia da droga ilícita. Têm estudos há décadas dizendo isso. O Direito está perdendo o caráter científico, cada vez mais sendo dominado pelo senso comum.

ConJur – Qual o cenário atual do Direito Penal? O direito de defesa está sendo negligenciado?
Leonardo Sica –
O cenário no Brasil é desanimador. O Direito Penal virou um instrumento de vontade. Ele é governado conforme vontades do juiz, do tribunal, esteja ela ou não em conformidade com a lei. Basta ver o que o Supremo Tribunal Federal fez com o artigo 283 do Código do Processo Penal. O Supremo entendeu que a prisão apenas após trânsito em julgado seria disfuncional, discussão com a qual até concordo, acho que ela tem que ser levada adiante mesmo, poderíamos, por exemplo, aprimorar o sistema de cumprimento da pena. Mas, num julgamento que foi num ato simplesmente de vontade, o STF falou: "Olha, o artigo 283 do Código do Processo Penal diz que a pessoa só pode ser presa depois do trânsito em julgado, esse dispositivo é constitucional". Foi um ato de vontade, o Supremo teve vontade de dizer que aquela lei não funciona mais. Quando uma lei não funciona, temos dois caminhos: ela pode ser declarada inconstitucional, que nem é o caso, ou se vai ao parlamento e abre-se a discussão.

ConJur – Alguns magistrados dizem que a decisão do Supremo foi correta porque o texto constitucional fala em trânsito em julgado da sentença penal condenatória. No STF, o argumento foi o de que depois da 1ª e da 2ª instâncias, todas as provas já teriam sido analisadas e que as cortes superiores só analisariam questões processuais e técnicas e se houve o devido processo legal.
Leonardo Sica –
Isso é um artifício retórico. As questões processuais, podem levar à anulação do processo, e aí temos a pior das situações, que é anular o processo de uma pessoa que está presa. Como reparar isso? É irreparável. Não é verdade que a decisão não pode ser revista. Ela não pode ser revista do ponto de vista do mérito das provas, mas pode ser revista por muitos aspectos, o principal deles é quando a condenação está em desacordo com a jurisprudência do STJ e do STF, e temos inúmeros casos em que a condenação decidiu algo que está em desacordo com a jurisprudência das cortes superiores. Nesses casos é sabido que as cortes superiores vão reverter aquela decisão.

ConJur – O brasileiro está mais conservador atualmente ou o período de bonança que tivemos na última década fez com que todos deixassem os problemas de lado?
Leonardo Sica –
As duas coisas. Os cientistas políticos têm dito que o mundo está passando por uma virada conservadora, e isso tem relação com o bem-estar. Quando as pessoas têm um nível de bem-estar maior, e mesmo que esse bem-estar venha da esfera econômica, elas tendem a ter uma visão mais liberal do mundo. O discurso da prisão tem a ver com isso. Os políticos o oferecem  para dar uma sensação ilusória de bem-estar para as pessoas.

ConJur – O Ministério Público Federal surfou nessa onda conservadora e usou a opinião pública?
Leonardo Sica –
O discurso da acusação no processo penal toca os valores médios da sociedade. É um discurso muito fácil, e o Ministério Público é o acusador no processo penal, então num aspecto ele cumpre o papel social dele. Mas o que vimos é um passo além desse papel social, é o Ministério Público se tornando um agente político propriamente dito, ao ponto de procuradores da República irem ao Parlamento e ameaçarem renunciar às suas funções públicas se o Parlamento não tomar determinada atitude. Isso é política pura, mesquinha e antidemocrática. É uma expressão máxima de desapreço à democracia. Alguns membros do MPF se encantaram com essa atuação política e resolveram militar em outros cantos, especialmente pressionando o Congresso Nacional a agir de tal maneira. Pressionar o Congresso a votar as leis faz parte do jogo democrático, mas usar processos judiciais em que você é parte foge à prática democrática.

ConJur – É uma espécie de ideologia doutrinária?
Leonardo Sica –
Alguns membros do Ministério Público perceberam esse panorama social. Ao ler alguns artigos doutrinários de alguns agentes públicos federais, eles dizem claramente que quando a Justiça não funciona é preciso valer-se da opinião pública para a sociedade pensar na Justiça. Isso está escrito, então não sou eu quem está dizendo. É parte de uma doutrina de acuar os poderes constituídos por meio da manipulação da opinião pública. É uma doutrina que está escrita.

ConJur – Muitos creditam a celeridade da "lava jato" ao treinamento dados nos EUA aos procuradores que atuam no caso…
Leonardo Sica –
Profissionais de Direito não foram preparados para trabalhar como agentes de mídia. Alguns procuradores da República foram colocados nessa posição, não sei se pela instituição ou por eles próprios, e tiveram dificuldade em lidar com isso. Aprendi na faculdade que a denúncia criminal é uma peça muito importante, pois é ela que dá início ao processo penal. O promotor faz a denúncia e entrega para o juiz, e não a faz e coloca no PowerPoint. Isso é um  evidente excesso midiático.

ConJur – Outro que é aplaudido pela celeridade é o juiz Sergio Moro.
Leonardo Sica –
Primeiro precisamos reconhecer que o juiz Sergio Moro é extremamente trabalhador. Esse é o exemplo a ser seguido nas varas judiciais do Brasil, que elas podem funcionar quando há empenho dos servidores públicos. Mas a figura do juiz herói não é saudável a nenhuma democracia, assim como a figura do juiz herói não era considerada saudável na época do ministro Joaquim Barbosa. Um país que precisa de um juiz ou de juízes como heróis vai mal, porque coloca no colo do juiz uma atribuição que não é deles.

ConJur – Essas atitudes podem influenciar outros magistrados? Principalmente os que estão começando agora?
Leonardo Sica –
Tenho receio que isso aconteça, pois esse exemplo está se espalhando. O juiz é um ser humano que vive em sociedade como todos nós, e tem um papel social muito difícil: que é julgar os outros, que é decidir a vida dos outros. Louvo as pessoas que escolhem essa carreira, mas, nesse momento, estão depositando nos ombros dos juízes mais do que eles podem e do que devem fazer. Vejo que certos excessos que trazem repercussão positiva para a magistratura vêm sendo replicados, mas também vejo e converso com muitos juízes que também tem a mesma visão ponderada e tomam o mesmo cuidado de buscar equilibrar os poderes que são conferidos ao juiz, justamente porque o mais grave nisso é como esses exemplos ruins podem se voltar contra a magistratura num próximo momento.

ConJur – Como assim?
Leonardo Sica –
Em algum momento a população descobrirá que o Judiciário não pode fazer tudo aquilo que alguns juízes estão se propondo a fazer — e que parte da opinião pública espera que os juízes façam. Os juízes não vão fazer a reforma do país, os juízes não vão conduzir a reforma política, os juízes não vão impor novas regras que vão trazer um maior trato à coisa pública, os juízes vão julgar pessoas e fatos que são levados ao seu conhecimento, é isso. Espera-se que os juízes tomem muitas vezes medidas de governo. Vemos que isso está acontecendo em uma série de cidades pelo Brasil acontecendo isso. Recentemente, em Ribeirão Preto, o juiz assumiu a prefeitura porque a prefeita, o vice-prefeito e os chefes de Estado foram caindo. Isso é uma anomalia, é previsto na lei, claro, alguém tem que assumir, mas é indesejado, e deve ser indesejado pelos juízes. Mas vamos imaginar num cenário aqui de Saramago: podemos chegar num futuro próximo em que a maioria das cidades do país vão estar sendo governadas por juízes?

ConJur – A República da toga é uma possibilidade?
Leonardo Sica –
É uma possibilidade. O Judiciário já está bastante fortalecido, prestigiado, e tem que ser, mas tenho dito que precisamos reduzir as expectativas direcionadas ao Poder Judiciário para preservar a própria sobrevivência do Judiciário. O principal problema do Judiciário hoje é o excesso de demandas e estamos pretendendo levar mais demandas, e demandas mais complexas. O Judiciário tem que desenvolver outros mecanismos de controle do dinheiro público, de controle das licitações que não dependam exclusivamente de processos judiciais, que são complexos e lentos, porque às vezes não podem mesmo ser rápidos justamente pela necessidade de maturação.

ConJur – O que o senhor achou da decisão do Supremo em relação às Dez Medidas do MPF?
Leonardo Sica –
Essa decisão foi, no mínimo, estranha. E ela está apoiada em vários equívocos. Primeiro numa fraude, porque foi veiculado que esse seria um projeto de lei de iniciativa popular amparado por um milhão e meio de pessoas, mas acho que ninguém conferiu para saber a verdade.

ConJur – O Ministério Público disse que foram dois milhões de assinaturas.
Leonardo Sica –
O Ministério Público disse que eram dez medidas, mas eram 18, então não sei se dá para acreditar. Era um pacote legislativo complexo com várias alterações profundas no sistema processual, especialmente o sistema processual penal. Garanto que a maioria absoluta das pessoas que assinou não sabe o conteúdo daquilo que estava assinando. O que as pessoas assinaram foi um abaixo assinado contra a corrupção. Eu não presenciei na história recente do Brasil um projeto de lei que tenha sido tão debatido no Parlamento. Foram dezenas de audiências públicas, debates em Plenário, ou seja, o processo legislativo percorreu de uma forma democrática. O que acontece é que chegou-se a um resultado final que não agradou os proponentes da medida, o Ministério Público Federal. Então é um projeto de lei de iniciativa do Ministério Público Federal, que, não contente com o resultado do jogo, correu para anulá-lo. Se fosse um advogado que estivesse fazendo isso, isso ia ter um nome: chicana. O que estão fazendo aqui é pedir para anular um processo legislativo inteiro, que é uma chicana democrática.

ConJur – E esse poder do Ministério Público é só por causa da "lava jato"?
Leonardo Sica –
Não, o Ministério Público, desde a Constituição de 1988, se fortaleceu muito. Primeiro institucionalmente, porque a Constituição previu isso, e depois porque os promotores, procuradores da República trabalharam a sério, se fortaleceram corporativamente e foi importante para o avanço da nossa recente democracia. Mas nesse momento em que o Ministério Público pretende ditar as leis, ele passa um pouco do limite desse fortalecimento aí para uma hipertrofia. Já passamos a ter um órgão hipertrofiado porque ele já passa a agir para além daquilo que era esperado, porque tem um apoio popular muito grande, que é mérito do trabalho de promotores e procuradores, mas que precisa ser equacionado dentro da ordem constitucional democrática porque apoio popular é sempre uma medida desconfiável, porque um milhão e meio de assinaturas é muito, mas somos mais de 220 milhões de brasileiros.

ConJur – Dá 1% da população.
Leonardo Sica –
É uma medida muito desconfiável para um país do tamanho do Brasil. Mas, de qualquer jeito, se apoio popular fosse a medida única para reformas legislativas teríamos que começar a discutir a pena de morte. Esse tipo de apoio popular é uma medida perigosa, porque é difícil saber quem fala pela sociedade. Os promotores da República gostam de dizer que  "falam pela sociedade", mas quem faz deve fazer isso foi votado, a democracia funciona assim. Acontece que quem recebeu voto nos últimos anos também não tem feito jus aos votos. E o que a gente tem percebido é uma substituição, atores sem voto estão tentando ocupar o lugar dos votados.

ConJur – Dentro dessa briga institucional, o Executivo e o Legislativo são mais vidraça e o Judiciário mais pedra. Chegará o momento em que o Judiciário virará vidraça?
Leonardo Sica –
Toda instituição tem os seus problemas, mas o Judiciário, dos poderes constituídos, ainda é o que passa mais longe da corrupção. Mas ser vidraça é uma contingência da democracia, todo servidor público é um pouco vidraça. Na hora em que se aceita o cargo público, o grau de exposição da vida é maior do que no setor privado. E isso é uma escolha que se faz no começo da carreira. Alguns servidores falam que não gostam que seus ganhos sejam publicados, mas é uma imposição da democracia.

ConJur – O Judiciário precisa ser reformado?
Leonardo Sica –
Precisa. Se falarmos com os juízes, todos dirão que já foi feita uma reforma no Judiciário com a Emenda Constitucional 45. Essa foi uma reforma parcial, e precisamos fazer uma profunda reformulação no modelo de Justiça, repensar nossa maneira de administrar a Justiça. Devemos partir de duas bases: como administrar a Justiça e como fornecê-la ao cidadão. O Poder Judiciário é enorme, mas ele carece de uma gestão mais profissional. Os juízes não têm opção, são obrigados a gerir o Judiciário. Imagine a dificuldade que tem um desembargador ao gerir o orçamento do poder Judiciário de São Paulo, por exemplo.

ConJur – Administradores à frente de tribunais para as questões orçamentárias seria uma saída?
Leonardo Sica –
Gestores abaixo dos chefes políticos é uma saída muito boa.

ConJur – A magistratura é muito corporativista?
Leonardo Sica –
Diz o ministro Gilmar Mendes que o Brasil é a República corporativa, e ele é um magistrado, então vou acreditar na palavra dele e dizer que se nós vivemos um acirramento de posições corporativas muito grandes, as corporações elas precisam todas, inclusive a advocacia, nesse momento, recuar um pouco das suas posições corporativas, que são necessárias, e ceder para buscar consensos. A questão do abuso de autoridade, por exemplo, poderia ser um lugar simbólico para as corporações de profissões jurídicas buscarem um consenso e criar uma legislação que seja atual, compatível com nosso estado democrático de direito, e que permita o controle daqueles que nos controlam.

ConJur – Como o Supremo tem se portado em meio à crise?
Leonardo Sica –
O Supremo Tribunal Federal sempre funcionou como um muro de contenção à instabilidade política do país, mas o muro foi vazado no último ano. O STF não suportou as pressões da instabilidade política e, com muitas decisões monocráticas, passou a promover entendimentos que criaram instabilidade política. O próprio ministro Barroso publicou um artigo dizendo que no meio do caos que estamos vivendo não era de se esperar que o Direito fosse uma ilha de tranquilidade.

ConJur – Mas muitas foram julgadas pelo Plenário.
Leonardo Sica –
Ou congeladas no pedido de vista. O grande desafio da ministra Cármen Lúcia e dos ministros é desenvolver uma nova capacidade para o tribunal agir de maneira colegiada, e enfrentar algumas questões que são delicadas e que precisam ser repensadas. Uma delas é a transmissão de todos os julgamentos pela TV Justiça. Não há profissional, de qualquer profissão, que consiga desenvolver bem a sua profissão sendo filmado 100% do seu tempo. Essa publicidade ostensiva e excessiva dos julgamentos tem condicionado certas reações. Os julgamentos têm que continuar sendo públicos, mas a publicidade não significa passar na TV. Alguns julgamentos devem sim ser transmitidos pela TV por sua importância para a cidadania, por exemplo, os julgamentos das células tronco embrionárias e da lei de biossegurança. Por outro lado, duvido que isso se aplique a julgamentos criminais, porque fere até a dignidade da pessoa humana do réu.

ConJur – Mesmo sendo uma personalidade pública?
Leonardo Sica –
O julgamento é aberto ao público, não precisa ser transmitido na TV. As pessoas podem assistir e a imprensa vai lá e cobre, isso é a publicidade do julgamento. A Suprema Corte americana faz poucos julgamentos abertos ao público, a maioria dos julgamentos só são abertos às partes, e alguns só contam com a participação dos ministros. E nós temos na democracia norte-americana uma ideia de transparência e publicidade, mas lá não é um problema que a corte se reúna às vezes de maneira reservada, como qualquer profissional precisa fazer.

ConJur – E o foro por prerrogativa?
Leonardo Sica –
O Supremo Tribunal Federal não pode continuar sendo o maior tribunal penal do mundo. Ele é, atualmente, o tribunal criminal de 513 deputados, 81 senadores e tantos outros ministros de Estado num momento que, lamentavelmente, a maioria dessa clientela tem problemas com a Justiça. Isso atrapalha muito a vida institucional do Supremo. Imagina a pressão sobre  os ministros, além da carga de trabalho que o tribunal não tem condições de enfrentar, não tem estrutura. A maioria dos ministros do Supremo é contra o foro, além de ministros aposentados, ex-presidentes. Todos sabem que isso favorece o atraso dos processos, mas o Ministério Público Federal não tocou no problema nas dez medidas. Talvez a Procuradoria-Geral da República não queira renunciar ao poder de processar todos os deputados e senadores. Isso dá um poder político muito grande.

ConJur – Qual seria a saída?
Leonardo Sica –
Distribuir pelos estados, os deputados de São Paulo são julgados em pela Justiça Federal em SP e depois apelam por Brasília como um cidadão comum.

ConJur – Isso também resolveria o problema do segundo grau de jurisdição também, não é?
Leonardo Sica –
Também.

ConJur – Isso não pode facilitar o tráfico de influência, tanto para proteger quanto para prejudicar o réu?
Leonardo Sica –
É especulativo. Por que um juiz federal de Santa Catarina seria mais exposto ao tráfico de influência do que um ministro do STJ? São dois seres humanos. É preciso desenvolver os controles, inclusive com o duplo grau de jurisdição, que é a melhor maneira de controlar as decisões judiciais.

ConJur – O que achou até agora da presidência da ministra Cármen Lúcia?
Leonardo Sica –
A ministra está ainda procurando um norte. Ela vem dialogando com os poderes justamente para balancear o papel do Judiciário nesse cenário de tensões e expectativas insufladas. Mas o papel que ela pretendeu atribuir ao Judiciário na questão da segurança pública foi um equívoco, tanto que ela recuou, porque o tribunal não se incumbe de segurança pública. O principal papel que ela poderia desempenhar é deixar claro qual é a responsabilidade dos profissionais de Direito na crise carcerária. Se cada um cumprir seu papel social, a sociedade passa a funcionar melhor.

ConJur – O que acha da ideia de criar um Ministério da Segurança Pública?
Leonardo Sica –
Uma ideia vazia, panfletária. A Segurança Pública já é de incumbência do Ministério da Justiça. É só trocar o lugar do problema. Isso não resolve nada, isso mais uma vez serve para vender para a população a ideia de que se está fazendo algo. É melhor que não tenha o Ministério de Segurança Pública para que não seja colocado à frente dele algum integrante da "bancada da bala".

ConJur – O que você achou do indulto concedido em dezembro de 2016?
Leonardo Sica –
O indulto é um instrumento legal de gestão do sistema penitenciário. Na forma da lei, com inteligência, ele é usado para gerir o sistema prisional e para aliviar a pressão do sistema. É como uma panela de pressão, quando essa válvula é fechada, e o foi, a pressão dentro aumenta. Então o Ministério da Justiça apostou nisso e parte da resposta é essa. Se você aumenta a pressão numa panela, ela explode.

ConJur – Então, em partes podemos creditar essas sequências de atos nos presídios ao endurecimento da política carcerária?
Leonardo Sica –
As causas são muitas, mas o endurecimento irracional é uma delas.

ConJur – A criação de presídios federais ajudou na exportação da criminalidade organizada para o resto do país?
Leonardo Sica –
O nós aprendemos com o Carandiru? Nada, porque o Carandiru nos ensinou, ou deveria ter nos ensinado, é que o sistema de encarceramento desumano deu formação às facções criminosas. E a partir do momento em que você não enfrenta o problema e o exporta para outros estados, que é o que a política penitenciária recente fez, evidentemente são criadas oportunidades de expansão das facções criminosas. Foi mais ou menos o que parece ter acontecido. Um exemplo é o que houve em Roraima, que é um estado que provavelmente tem um pequeno problema de criminalidade, pouco habitado e com muitas áreas de floresta. Isso não nasceu lá, veio de algum outro estado. Estamos exportando a barbárie e renunciando à civilização. É uma aposta, perdida.

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