Opinião

Regras da "lista suja" do trabalho escravo necessitam de uma faxina

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27 de janeiro de 2017, 5h15

Desde o ano de 2003 o Ministério do Trabalho e Emprego vem divulgando lista com nomes de empregadores que foram autuados por auditores fiscais do trabalho que entenderam haver no local da fiscalização empregados em condições de trabalho análogas à escravidão.

Referida lista elenca nome e dados dos empregadores que estariam se utilizando de trabalho em condições análogas à escravidão em suas cadeias produtivas. Referida lista é popularmente conhecida como “lista suja”.

Desde o ano de 2003 essa lista vem sendo divulgada com base em Portarias do Poder Executivo. Atualmente, a norma que autoriza sua elaboração e divulgação é a Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH 4, de 11 de maio de 2016, publicada no dia 13 de maio desse mesmo ano.

No final do ano de 2014, quando ainda vigorava a Portaria Interministerial 2, de 12 de maio de 2011 (posteriormente revogada pela Portaria Interministerial 2/2015), o Supremo Tribunal Federal concedeu liminar em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5.209), proposta pela Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), suspendendo a divulgação da referida “Lista Suja”.

Em maio de 2016, o mesmo STF, cassou a liminar e julgou a ADI declarando a perda do seu objeto, pois segunda sua relatora, a ministra Cármen Lúcia, o Poder Executivo publicou uma nova Portaria, a Portaria Interministerial 4, de 11 de maio de 2016, que sanou todos os pontos de questionamento da referida ADI.

Nesse ínterim, o Ministério Público do Trabalho ajuizou Ação Civil Pública (ACP) contra a União com pedido liminar no sentido de que esta seja compelida a publicar a chamada “lista suja”.

Em 19 de dezembro de 2016, Rubens Curado Silveira, juiz titular da 11ª Vara do Trabalho de Brasília, concedeu liminar na referida ACP determinando que a União volte a publicar a “lista suja”, no prazo de 30 dias, após a notificação.

Assim, e considerando-se o recesso de final de ano do Judiciário, estima-se que até meados de fevereiro a referida liminar tenha que ser cumprida, salvo alguma medida interposta por quem de direito que venha a revertê-la.

Ocorre que a Portaria interministerial 4 condiciona a publicação da lista com os nomes dos empregadores que supostamente estariam envolvidos com trabalho em condições análogas à escravidão somente ao exaurimento das instâncias administrativas, isto é, aos recursos internos do próprio Ministério do Trabalho.

Este o ponto crucial.

A questão a ser posta é: uma portaria interministerial teria o poder de determinar que a defesa dos autuados (acusados), para evitar que seus nomes sejam divulgados nessa “lista suja” de efeitos tão nefastos, fique restrita ao âmbito administrativo, como o faz seu 2º, abaixo transcrito?

Art. 2º O Cadastro de Empregadores será divulgado no sítio eletrônico oficial do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS), contendo a relação de pessoas físicas ou jurídicas autuadas em ação fiscal que tenha identificado trabalhadores submetidos à condições análogas à de escravo.

§ 1º A inclusão do empregador somente ocorrerá após a prolação de decisão administrativa irrecorrível de procedência do auto de infração lavrado na ação fiscal em razão da constatação de exploração de trabalho em condições análogas à de escravo.

Salta aos olhos a inconstitucionalidade dessa norma Interministerial. O resultado dela, nada mais é, que o total esvaziamento do direito constitucional de amplo acesso ao judiciário, prescrito no art. 5º, XXXV, da CF.

Aproveita-se o momento para tratar dos destruidores e quase irreversíveis efeitos da vinculação de um empregador ao trabalho em condições análogas à escravidão, para depois retornarmos à inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da portaria em comento.

O empregador que tem seu nome incluído na lista suja do Ministério do Trabalho, além de ficar terrivelmente exposto perante a sociedade, perde o acesso a financiamentos em bancos públicos, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Banco do Brasil, que assinaram o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo. Bancos privados também se valem dessa informação em suas avaliações de risco de crédito.

Ora, consequências tão drásticas não podem ser impostas a quem quer que seja sem que este tenha garantido seu direito de acesso ao Judiciário e manejo das ações que entender cabíveis.

Limitar a defesa de quem quer que seja à esfera administrativa é obstaculizar e ferir de morte o artigo 5, XXXV, da Constituição Federal.

Por óbvio que não se defende aqui qualquer prática que possa se assemelhar ao período de escravidão no Brasil. Muito menos se pretende aqui defender o anonimato dos que se utilizam desta horrenda prática.

O que se pretende aqui é tão somente garantir aos autuados pela fiscalização do trabalho, que até então são apenas supostos culpados — diz supostos, pois, a se pensar diferente, a hipótese seria de desconsideração do Poder Judiciário, já que, em tese, referido poder pode anular e inocentar o empregador considerado infrator nas esferas administrativas do Poder Executivo — o direito de acesso ao judiciário antes de sofrerem as terríveis (embora necessárias) consequências da ligação de seu nome ao trabalho em condições análogas à escravidão.

A caracterização de trabalho em condições análogas à escravidão traz consigo elementos naturalmente subjetivos, que requerem análise acurada de fatos e provas, condição não existente na análise de simples recursos administrativos por “julgadores” que não detêm formação jurisdicional. A doutrina e jurisprudência trabalhistas ainda divergem sobre vários pontos da caracterização dessa figura e o art. 149 do Código Penal é, na prática, exemplo claro de norma de conteúdo aberto.

Diz o caput do artigo 149 do Código Penal:

“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto” (grifos novos).

Note-se que a conceituação dos termos acima destacados são totalmente subjetivos e merecem apreciação caso a caso. Como definir objetivamente o que seria “trabalho forçado”, “jornada exaustiva”, “condição degradante”? Como atribuir a um órgão do poder executivo a palavra final sobre a caracterização dessas figuras tipificadoras?!?!

Portanto, do ponto de vista jurídico, é inaceitável que um ato do Poder Executivo (Portaria) autorize a publicação de informações de tão graves e irreversíveis consequências como o são aquelas que recaem sobre os que têm seus nomes  incluídos na chamada “lista suja”, sem que se conceda a eles o direito de acessar o Judiciário no exercício de sua ampla defesa.

O que dizer a um empregador que tenha seu nome incluído na “lista suja” e que tenha sofrido todas as restrições e prejuízos desse ato, e que depois venha a ser inocentado pelo Judiciário em análise de ação que julgue a validade do auto de infração lavrado pelo Executivo?

Destaque-se: a “lista suja” tem enorme importância no cenário laboral e deve ser mantida, pois se trata de poderoso instrumento no combate ao trabalho em condições análogas à escravidão no Brasil.

Não obstante, a inserção de nomes ali somente deve ocorrer após exauridas as instâncias judiciais, e não somente as administrativas, como quer a Portaria Interministerial 4, de 11 de maio de 2016.

Não há dúvidas para se afirmar que a Portaria Interministerial 4 traz consigo abusos e inconstitucionalidades que requerem manifestação judicial.

Além da questão da limitação à esfera administrativa acima tratada, outro ponto que merece destaque é a determinação de permanência do nome da empresa na lista mesmo após a regularização da situação, como determina o artigo 3º e seu parágrafo único da Portaria Interministerial 4, de 11 de maio de 2016.

Ora, o fundamento da divulgação dos nomes através da lista é o direito à informação e a publicidade dos atos da administração pública.

A determinação de permanência do nome do empregador na lista após a regularização da situação trai os fundamentos acima postos e transforma a referida lista e agente punitivo, desviando-a totalmente da finalidade nobre para a qual foi concebida.

Assim, o mencionado artigo 3º, e seu parágrafo único, da Portaria Interministerial 4, de 11 de maio de 2016, são passíveis de análise de constitucionalidade pelos Órgãos do poder Judiciário.

Assim, faz-se necessária uma análise imparcial, sem paixões e livre das extravagâncias “justificáveis” quanto aos pontos aqui postos. Um erro não justifica outro. Os empregadores também são sujeitos de direitos e têm que ter resguardadas as suas garantias fundamentais. Somente assim poderá se estabelecer uma ordem jurídica justa, sustentável e duradoura.

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