Senso Incomum

STF: ainda há espaço para ações institucionais ou vivemos de heróis?

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26 de janeiro de 2017, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Pois coube a um jornalista da Folha de S.Paulo, Hélio Schwartsman, colocar o dedo na ferida narcísica do direito brasileiro. Qual é ela ou quais são? Respondo: O subjetivismo, o protagonismo, o heroísmo, o personalismo. O que disse Schwartzman? Que, para além de lamentar a morte do ministro Teori — e que eu também lamento —, que era um quadro valioso do STF, com acertos e erros, trata-se de

“um tremendo exagero afirmar que o desaparecimento do ministro constitua um revés para a 'lava jato', da qual era o relator na instância máxima. A menos que o Brasil seja inapelavelmente uma república de bananas, onde eventuais avanços só ocorram por vontade e graça de "heróis" individuais, sem espaço para ações institucionais — hipótese em que deveríamos todos procurar um país civilizado para imigrar —, o que de pior pode acontecer com a Lava Jato é que sofra um atraso de um ou dois meses, e apenas na parte que corre no STF. É chato, mas está longe de ser o fim do mundo ou da operação. (…) Mais uns 50 ou 100 anos talvez nos tornemos um país sério”.

Hélio tem total razão. Se o direito fosse aplicado por princípio e não por política ou moral(ismos), essa questão não nos preocuparia. Afinal, o direito não pode(ria) depender do ministro x ou do ministro y. Ah, mas, na prática, ele depende. Bom, então temos um problemão, igualzinho ao que Hélio disse, invocando uma fruta típica pindoramense. Porque sempre temos que torcer pela bondade dos bons e temer pela maldade dos maus.

Afora as teorias conspiratórias, chega a ser irritante a especulação acerca do “futuro” da "lava jato". “O Brasil vai parar se a 'lava jato' parar”, lê-se e se ouve. Os filósofos da GloboNews (por todos, cito os alemães Merval Birnbaum e Gerson Kabine), estão “apreensivos”: relatoria da 'lava jato' ou o caos. Haverá país se não for logo indicado o relator? “Brasília treme esperando o novo relator”, diz outra filósofa da emissora. Eles sabem tudo. De bastidor. Da internet.

Pergunto eu: Por que a operação "lava jato" estaria “em perigo quanto ao seu futuro”, se o papel do ministro relator é o de homologar os acordos? O acordo já vem firmados. Por que dependemos do bom ou não-bom ministro nas homologações? Dependemos de heróis? Desconfiamos dos demais ministros? Os acordos podem conter gambiarras que só um bom ministro (herói) detecta? Outro ministro (um “não bom” ou “não herói” segundo os critérios da mídia e das redes “nesciais”) deixaria ou deixará passar algo? Por que outro ministro não pode fazer um trabalho do nível que fazia Teori? Sim, sei que o foro privilegiado, nos inquéritos da "lava jato", faz com que dependa do relator a abertura da investigação. A homologação idem. Mas, convenhamos, não deveria depender de um só. Um ministro não deveria ter o poder de, solo, impedir a abertura de inquérito contra alguém com foro privilegiado. Se, por acaso, tem, é porque o Brasil é uma república sem accountability. Tudo isso só dá razão ao Hélio Schwartsman. Outra coisa: se o relator é tão importante a ponto de dar esse frisson todo (não se fala de outra coisa), porque os juízes auxiliares podem continuar com as homologações antes da nomeação de um novo relator? Não é um ministro que tem de conduzir esse trabalho? Por mim, sem problemas. Mas, do modo como se formou certo discurso histriónico… Detalhe: a Folha de S.Paulo de 25 de janeiro de 2017 diz, com título de O que dizem os outros ministros do STF, que a homologação da delação da Odebrecht divide opiniões no STF: por que o caso não é de urgência, já que o STF pode escolher um novo relator em breve, que trataria da questão em fevereiro. Mais uma razão para estranhar o frisson.

Portanto, preocupa a ambiguidade com que este tema é tratado. Ninguém assume, com sinceridade, o que está dizendo. Tudo é nas entrelinhas. É o sentido escondido no e do não dito. “Ah, a 'lava jato' agora se vai morro abaixo…”. Seja claro: diga por quê. Por que qualquer dos dez ministros não poderia tocar a "lava jato"? Ora, são acordos de delação para homologação. Julgamento de acusado ou recursos de julgados já são outra coisa. Dependerá de vários ministros. A propósito: se estamos falando de rigor — no que eu concordo — quero saber se haverá uma grita contra o inexorável descumprimento da lei na divulgação dos nomes delatados antes daquilo que a lei prevê (depois do recebimento da denúncia)? Já sei. As listas são “informação de bastidor”. Bingo.

Por isso, o jornalista da Folha acertou. Na mosca. Dependemos de bons (e não-bons) personagens. Herança de nosso patrimonialismo. Só não dependemos das instituições. Só não dependemos daquilo do qual deveríamos depender: do direito. Por isso, em Pindorama, o direito virou uma loteria. E isso desaprendemos nos cursos de direito. Contaram-me que dia desses um professor — com doutorado — disse em sala de aula: certo está Martin Fierro, quando diz hacete amigo del juez; no le des de que quejarse… O problema é que ele contou isso como se fosse grande coisa, esquecendo o extremo sarcasmo com que José Hernandez (para avisar, foi quem escreveu Martin Fierro) fala das agruras de seu personagem. Até nas citações nós erramos.

Os personagens da "lava jato" deveriam, então, fazer como disse o professor, hacerse amigo do ministro relator? Triste Pindorama. Fazemos parecer que o direito depende de quem o interpreta e aplica. Claro: por isso é que se diz — com ares de um realismo tupiniquim — que o direito é o que judiciário diz que é.

Toda essa fenomenologia repercute fortemente quando se discute quem deve ir ao STF em vaga aberta. Ao que se vê e lê, o que vale, mesmo, são coisas como “a que grupo pertence”, “por quem é apoiado”, “a plantação do nome na imprensa” (sim, quem são essas fontes? É bastidor?), “quantos advogados e que Estado assinaram manifesto”, “quais associações de operadores apoia tais e tais e tais figuras”, etc. Ou coisas como “porque fulano é contra o aborto”; “já sicrano é a favor”; “fulano ou fulana é favorável às delações”; “beltrano é apoiado pelo governador ou ministro sicrano porque é duro na concessão de habeas corpus”; “candidato (a) é discreto e simpático”; “fulano se veste bem ou algo assim”… Que sofisticados critérios, não? Assim a coisa vai!

Pois é. Digo de novo: triste Pindorama, que depende de personagens e heróis particularistas e seus voluntarismos. Ninguém discute questões como “o direito não deve depender de subjetivismos ou ideologias”. De novo, exercitando minha LEER (lesão por esforço epistêmico repetitivo): Despiciendo dizer que não somos alfaces. Temos sentimentos. Temos subjetividades. Um coração bate no peito dos juristas. Óbvio isso. Mas um ministro do STF (como qualquer juiz) possui responsabilidade política. E essa responsabilidade política é incompatível com subjetivismos. É incompatível com partidarismos. É incompatível com a substituição do direito por juízos morais (mesmo que sejam aqueles que a gente goste — se me permitem a ironia). Portanto, o STF não é o superego da nação. E nem pode ser a vanguarda iluminista do país. Não podemos depender de um ministro. Que não deve querer empurrar a história (corre-se o risco de empurrá-la para trás). Se fosse, dependeríamos dos vanguardistas. Aí, quando algum morre, como ficamos? Eis o busílis.

Sabatina no Senado: Você é a favor da limitação da presunção da inocência deixando que se prenda antes do trânsito em julgado? “Sim, sou”; ou “Não, sou contra”. Resposta errada. Chumbou. Os cidadãos, que votam nas eleições, queremos saber o que o Direito nos diz. Resposta certa: “a CF e a lei nos asseguram que… e eu, gostando ou não, tenho de cumprir”.

Pergunta dois: qual sua opinião sobre o uso do argumento do “clamor social” em direito penal? “Eu penso que…”. Resposta errada. Mesmo que diga que os subjetivismos são uma fatalidade, e daí? Supremo Tribunal existe para ser contra maiorias. Aliás, a CF é um remédio contra maiorias. Caso contrário, não precisaríamos de Constituição. Elementar isso. Isso pode valer para as opiniões cotidianas. Só que um ministro do STF não pode dar simples opiniões ou opiniões cotidianas. Ele representa uma instituição e deve dar respostas conforme uma estrutura já existente e que não depende dele: o direito.

Pergunta três: “Entre a lei e sua consciência, fica com o quê? “Não posso ir contra a minha consciência”. Resposta errada. Chumbou. E se o ministro é jusnaturalista (com esse nível de ensino, os juristas nem sabem bem do que se trata, imaginemos os senadores), isto quer dizer que o Direito escrito vale menos que o Direito natural, certo? Qual é a consequência disso? Mais: Se o ministro é ativista, quer dizer que, na hora H, ele optará por juízos morais ou de conveniência política. Qual é a consequência disso? E assim por diante. É disso que se trata. Simples assim. O resto é torcida organizada. A torcida elogia quando a decisão é a favor e critica quando é contra. Mudam apenas os personagens. Lembremos que um relógio parado também acerta a hora duas vezes por dia.

Ainda, uma palavrinha. O jurista norte-americano Cass Sunstein[1] fez uma classificação dos juízes da Suprema Corte em Heróis, Soldados, Minimalistas e Mudos. Todos os Heróis podem ser considerados “ativistas”, no sentido peculiar de que eles estão dispostos a usar a Constituição para derrubar os atos do parlamento. Eles pensam que podem direcionar a sociedade e seus anseios via decisões judiciais. Para eles, o poder judiciário pode ser a vanguarda (iluminista? — inserção minha!) do país, corrigindo o marasmo ou inércia dos demais Poderes. Já os Soldados caracterizam-se por maior deferência ao processo político, entendendo como seu dever promover a concretização das normas produzidas pelos poderes politicamente legitimados. Quanto aos Minimalistas, assumem uma postura essencialmente cautelosa. Sob a alegação de um dever de prudência, eles procuram evitar intervenções intensas ou abrangentes, privilegiando as práticas e tradições socialmente sedimentadas. Nesse sentido, os minimalistas preferem atuações mais centradas nos casos sob julgamento (coerência e integridade), receando da produção de repercussões potencialmente perturbadoras do processo sociopolítico, cujo ritmo próprio de maturação deve ser respeitado. O quarto perfil é o dos Mudos, que, como o nome diz, resignam-se e mantém silêncio diante dos hard cases e das controvérsias que envolvam posicionamentos mais sensíveis. Repetem a jurisprudência já existente, acriticamente (aqui se aproximam dos Soldados), evitando alterações na cadeia discursiva, por assim.

Claro que o próprio Sunstein desconfia dos modelos, pela simples razão de que o juiz que hoje dá um voto de herói, amanhã, por circunstâncias mil, adota a postura de soldado. Ou mudo. Donde teríamos um herói-soldado-mudo. E assim por diante. De minha parte, como já disse várias vezes, tivesse que “escolher” entre os quatro modelos (com todos os riscos que o próprio autor coloca), parece-me que o modelo minimalista mais se aproxima de quem julga por princípio.

E o leitor, prefere qual dos modelos?


1 Cf. SUSTEIN, Cass. E. Constitutional Personae. Nova Iorque: Oxford University Press, 2015.

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