Interesse Público

O projeto de um novo marco legal das licitações e o combate à corrupção

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

26 de janeiro de 2017, 7h00

Spacca
Em dezembro de 2016, o Plenário do Senado aprovou projeto que altera a Lei de Licitações e Contratos. Caberá à Câmara de Deputados apreciar o texto votado pelos senadores, produzindo as alterações que julgar pertinentes.

O projeto de lei do Senado (PLS 559/2012) consolida uma série de regras hoje dispersas por vários diplomas legais, atribuindo-lhe a estatura de comando geral no cenário das licitações e contratações públicas. Opiniões favoráveis ou contrárias às regras existentes, cujo conteúdo se propõe transportar para o corpo do projeto de lei, ressuscitarão já fatigados debates. A contratação integrada e o sigilo dos orçamentos são exemplos de introduções recentes no ordenamento jurídico não aclamadas uniformemente.

Para além de se inspirar em institutos e procedimentos conhecidos no Brasil, o projeto de lei contempla algumas novidades como o diálogo competitivo e o projeto completo. Abordaremos tais institutos nas colunas futuras.

A proposta do presente artigo é analisar o Projeto de Lei do Senado 559/2013, valendo-se das informações que sobre ele disponíveis[1], ainda que em breves linhas e sem qualquer pretensão exauriente, indicando alterações positivas e ausências que devem ser corrigidas pela Câmara dos Deputados.

Interessada que sou pelo tema do combate à corrupção, fixei-o como parâmetro de investigação. Pus-me a verificar as propostas, identificando os eventuais avanços e apurando algum traço de timidez ou desacerto na tratativa da matéria.

De início, adota-se como ponto de partida uma convicção pessoal de que a superveniência de nova lei não é capaz, por si só, de ajustar os ponteiros éticos da sociedade.

Lei alguma é capaz de isoladamente defenestrar a corrupção e romper o substrato cultural que alimenta a desonestidade. A realidade brasileira escancara essa verdade. A Lei 8.666/93, diploma que alberga as normas gerais das licitações e contratações públicas, é alvo de críticas por estabelecer, em boa parte do seu longo texto, procedimentos detalhados, plenos de rigores. Não obstante, os noticiários constantemente nos recordam seu fracasso na contenção de desvios.

Também não se ignora que, encerrada a confecção do diploma legal, demandar-se-á vigília social constante, sem prejuízo da atuação dos órgãos estatais encarregados de fazê-la.

De toda forma, o processo de construção da lei que disciplinará as contratações públicas em suas diversas etapas deve ser acompanhado, em especial se ponderações e críticas puderem ser consideradas contribuições.

O ambiente das contratações públicas é mundialmente reconhecido como berçário para condutas ilícitas. Ainda que a ordem jurídica de cada país possa exprimir maior ou menor repulsa a determinado comportamento, os países, em geral, condenam atos que maculem competição sadia ou que propiciem benefícios indevidos a particulares durante a execução contratual.

Mundialmente também se reconhece a pluralidade de situações em que a impessoalidade e a moralidade são atacadas no intervalo que se estabelece entre a primeira manifestação estatal, a indicar a necessidade de se proceder à licitação, e o final da execução  contratual. Organismos internacionais, como a Transparência Internacional, entretanto, apontam momentos de maior fragilidade, a demandar redobrada atenção.

A fase interna é especialmente sensível. São reais e conhecidos os riscos de que a contratação pública nasça contaminada por escolhas feitas na fase preparatória.

O aparentemente inocente ato de definir prioridades de aquisição já pode estar contaminado. Isso porque, escassos que são os recursos públicos, caberá ao agente público escolher o que contratar ou, pelo menos, o que contratar em um primeiro momento.

Daí em diante as escolhas vão se avolumando. Quando se pensa em serviço, definem-se, por exemplo, prazos, metodologia, etapas, produtos, quantidade, tipo de mão de obra envolvida. Claro que maior ou menor definição prévia, pela administração pública, dependerá do modelo contratual que se quer adotar e da maior ou menor liberdade que se deseja conferir ao contratado.

Apresentado e especificado o objeto, há de se estimar o custo da futura e provável contratação. Também se impõe verificar quais características o interessado em disputar a licitação deverá reunir. Assim, passo a passo, decisões são proferidas, previamente à inauguração do certame propriamente dito e antes que a sociedade tenha ciência dos movimentos silenciosamente realizados pelos agentes públicos.

A depender das condições contidas no ato convocatório, sabe-se de antemão quem poderá participar da futura licitação e quem já está de pronto afastado. Nos mercados em que é restrito o número de atores, algumas definições bastam para reduzir ainda mais a amplitude da competição e, assim, dirigir o contrato antes mesmo de se conhecerem as propostas.

Portanto, medidas que possam restringir as possibilidades de contratações que não espelhem o interesse público são sempre bem-vindas.

Ao afirmar que a fase preparatória é caracterizada pelo planejamento, o PLS 559/2013 pode não surpreender, mas recordar que o certame não é fim em si mesmo soa positivo e necessário, em especial quando se estabelece que, ao se planejar, devem ser considerados aspectos técnicos, mercadológicos e de gestão capazes de interferir na contratação.

Ao examinar o PLS 559/2013, percebe-se ainda a preocupação em intensificar o controle social e institucional, mencionando-se o dever de disponibilizar em sítio eletrônico oficial todos os elementos do edital, incluindo minutas de contratos, projetos, anteprojetos e termos de referência e outros anexos. Ainda que o princípio constitucional da publicidade dos atos da administração pública e a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/11) já assegurassem o direito aos dados e documentos relativos às licitações e contratos (artigo 7º, inciso VI combinado com artigo 8 parágrafo 2º, inciso IV), a previsão no PLS 559/2013 reitera o necessário compromisso com a transparência. O parecer aprovado pela Comissão Especial do Desenvolvimento Nacional (CEDN) aludiu ainda à necessidade de que tal disponibilização ocorra na mesma data em que publicado o edital.

Quando se cogita de controle social, maior ousadia na disciplina das audiências e consultas públicas seria recomendável. Tal como hoje proposto, o projeto não avança na utilização dos institutos, reservando ao agente público, em síntese, a decisão sobre quando e se institui-los.

O PLS 559/2013 propõe a adoção de minutas padronizadas de edital e de contrato, utilizando-se cláusulas uniformes, quando o objeto assim permitir. A padronização, para os casos em que isso é possível, contribui para inibir a construção de editais e/ou anexos com intuito de favorecer determinado particular.

Trata-se de proposta ajustada a padrões de comportamento recomendados pela Transparência Internacional, para quem o desvio do padrão usual de contratação é sinal de alerta e sugere a presença de corrupção.

Na mesma linha, louvável prever a criação de catálogo eletrônico de padronização de compras, serviços e obras, em feliz transposição da essência do artigo 33 da Lei 12.846, de 4 de agosto de 2011, responsável pelo regime diferenciado de contratações públicas.

Ainda na parte voltada para a fase interna, o PLS 559/2013 cogita de alterações nas regras sobre formação do custo.

Em verdade, a Lei 8.666/93 não disciplina os mecanismos a serem seguidos para se estimar o custo da contratação. Desnecessário dizer que a ausência de leme possibilita distorções também provocadas pela corrupção.

Coube, observados seus limites subjetivos e objetivos, à Instrução Normativa 5,  de 27 de junho de 2014, editada pela Secretária de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, suprir o vazio, consolidando, em boa medida, os julgados do tribunais de Contas da União, pavimentando o caminho a ser percorrido pelos agentes públicos a ela submetidos.

Imperativo, portanto, que o novo marco legal das contratações públicas se ocupe do assunto.

Todavia, o tratamento proposto pelo PLS 559/2013 está longe de satisfatório.

A delicadeza do tema reclama cuidado redobrado e as regras sugeridas são confusas e incompletas. Prever, por exemplo, que o montante estimado da contratação poderá ser calculado com base nos valores praticados no mercado, nos valores pagos pela administração pública em serviços e obras similares ou na avaliação do custo global da obra, aferida mediante orçamento sintético ou metodologia expedita ou paramétrica, é insuficiente. Como se chega à conclusão sobre quais os valores praticados no mercado? Quais contratos celebrados pela administração pública podem ser utilizados como parâmetro? Quais cuidados devem ser adotados quando da solicitação de orçamentos? Essas são algumas das perguntas a exigir melhor detalhamento.

A Instrução Normativa 5, antes referida, contém regras muito mais seguras, prevendo, por exemplo, limites temporais para a utilização de orçamentos e vedando a utilização de sítios de leilão ou de intermediação de vendas como referência para as pesquisas.

O PLS 559/2013 também oferece nova proposta para as sanções administrativas. Claramente preocupado com a discricionariedade administrativa que hoje se percebe na Lei 8.666/93, o projeto estabelece a correlação entre comportamentos e reprimendas.

Em princípio, a redução da discricionariedade no sensível momento da punição deve ser aplaudida. Mas importante investigar com mais vagar se o suposto avanço não é esmaecido por construções imperfeitas. Uma leitura inicial indica desleixo com a redação, o que pode conduzir a discussões quando da efetiva aplicação da sanções.

Chama atenção o descuido com a gestão e fiscalização dos contratos. A alegria de identificar a menção à gestão contratual, uma vez que a atual lei sobre isso se cala, esvai-se diante da confusão da proposta.

Gestor e fiscal de contratos são personagens distintos, a despeito de complementares.

Além de individualizá-los, como bem faz a atual redação da Instrução Normativa 2, de 30 de abril de 2008, igualmente editada pela Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, há de se aprofundar no tratamento da matéria, expondo, por exemplo, as balizas que devem conduzir à escolha do fiscal, indicando suas atribuições, o momento de sua designação, a necessidade pontual de uma rede integrada de fiscalização e a correlação entre as atividades de gestão e fiscalização.

Enfim, há avanços, mas ainda não suficientes.

Os apontamentos deste breve texto refletem análises preliminares, despertadas pelo exame ainda incipiente da proposta. Os avanços e críticas expostos poderão e serão revisitados com o aprofundar da análise.

*Texto alterado às 10h42 do dia 27/1/2017 para correção do número do PLS, que é 559/2013 e não 599/2015 como havia sido publicado.


[1] Até o fechamento desta coluna, o site do Senado Federal não havia disponibilizado o texto final aprovado.

Autores

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    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).

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