Ambiente Jurídico

Um panorama do Direito Ambiental na jurisprudência em 2016 (parte 1)

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

21 de janeiro de 2017, 12h51

Spacca
O objetivo deste artigo é traçar uma análise panorâmica da trajetória do Direito Ambiental brasileiro no ano de 2016, destacando os julgados e acontecimentos mais importantes. É evidente que alguns fatos relevantes poderão não ser incluídos tanto por conta do juízo de preferência do autor quanto para evitar que o texto fique extenso demais.

Não se pode desconsiderar que a nossa legislação ambiental é, de maneira geral, uma das mais avançadas do mundo, com um forte embasamento constitucional e com um arcabouço normativo infraconstitucional bem construído. No entanto, é somente com a observação da jurisprudência e dos eventos políticos que esse avanço pode ser efetivamente medido, pois – provavelmente mais do que os outros ramos da Ciência Jurídica – o Direito Ambiental só se justifica se estiver em compasso com a realidade. Em vista disso, o presente trabalho procurará examinar julgados, ocorrências jurídico-políticas e desdobramentos dos textos legais.

O julgamento mais polêmico do ano em matéria de Direito Ambiental foi, sem dúvida, o caso da vaquejada, prática muito popular no Nordeste que consiste na perseguição e derrubada do boi por dois vaqueiros montados a cavalo, que puxam o animal pelo rabo. Por seis votos a cinco, o Supremo Tribunal Federal entendeu inconstitucional a Lei 15.299/2013, do Ceará, que buscou regulamentar o assunto[1]. Para a corte, essa atividade seria inconstitucional por necessariamente envolver os maus tratos, conduta que é vedada pelo artigo 225 da Constituição Federal, conforme destacou o ministro Marco Aurélio, relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.983 proposta pela Procuradoria da República, cujo voto foi acompanhado pelos ministros Carmem Lúcia, Celso de Mello, Luís Roberto Barroso, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber[2]. A decisão, que ainda não transitou em julgado, foi e é alvo de muitos protestos, tendo em vista os contornos culturais e econômicos inegavelmente existentes, tanto que como a reação os interessados articularam a PEC 50/2016 (Senado), que está tramitando de forma extremamente célere e que visa legalizar de forma definitiva a prática[3]. A despeito disso, o fato é que a decisão está em consonância com a jurisprudência da casa, que sempre decidiu a favor do bem-estar animal mesmo quando dimensões culturais estivessem envolvidas, como foi o caso da “farra do boi”[4] ou das rinhas[5].

Outra decisão relevante foi a condenação do deputado federal Washington Reis (PMDB-RJ), prefeito eleito de Duque de Caxias, a sete anos, dois meses e 15 dias de reclusão, afora o pagamento de multa de 67 salários mínimos, por crime contra o meio ambiente e a ordem urbanística. A 2ª Turma acatou por unanimidade o voto do ministro Dias Toffoli, relator da Ação Penal 618, segundo o qual o réu cometeu os crimes previstos nos artigos 40 e 53, inciso I, da Lei 9.605/98 e no artigo 50 da Lei 6.766/79, determinando ainda que após o trânsito em julgado a Câmara dos Deputados seja notificada para se manifestar sobre eventual perda do mandato parlamentar. O condenado foi considerado responsável pela instalação de um loteamento irregular no entorno da Reserva Biológica do Tinguá, causando danos ambientais diretos à zona de amortecimento e indiretos à unidade de conservação, o que foi comprovado pela perícia e por testemunhas[6]. Essa decisão é importante não somente em razão da defesa do meio ambiente artificial, que tem sido constantemente aviltado por construções clandestinas de todas as ordens sociais, mas também porque prestigia o licenciamento ambiental, a proteção da mata atlântica e das unidades de conservação, entre outros institutos jurídicos mencionados, que certamente agora serão mais valorizados pelos juízos a quo.

Também merece destaque o julgamento sobre as radiações eletromagnéticas, cuja repercussão geral foi reconhecida no Recurso Extraordinário 627.189/SP, que teve como relator o ministro Dias Toffoli. O Tribunal de Justiça obrigou a Eletropaulo Metropolitana Eletricidade de São Paulo S.A. a reduzir o campo eletromagnético das linhas de transmissão, impondo um padrão técnico suíço em detrimento das normas da Comissão Internacional de Proteção às Radiações Não-ionizantes (ICNIRP), em função de alegação de potencial cancerígena. Todavia, a corte maior referendou os parâmetros propostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), nos termos da Lei 11.934/2009, estabelecendo parâmetros para o princípio da precaução, que não pode ser aplicado de maneira aleatória ou desproporcional[7]. A ideia é que o princípio não sirva para inibir a pesquisa e o desenvolvimento econômico sem que haja indícios científicos da ocorrência de um dano ambiental significativo[8].

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a 2ª Turma decidiu que a responsabilidade administrativa em matéria ambiental é subjetiva, o que marca a consolidação da jurisprudência nesse sentido. O Ministro Herman Benjamin, relator do REsp1401500/PR e inquestionavelmente um dos maiores nomes do Direito Ambiental brasileiro, votou pelo provimento do recurso especial ao pugnar pela necessidade de comprovação de culpa, no que foi acompanhado pelos demais julgadores[9]. Sob o argumento de que a responsabilidade administrativa do poluidor seria objetiva e decorreria do risco gerado pela atividade, fazendo com que o poluidor indireto também possa ser responsabilizado, o Instituto Ambiental do Paraná – IAP impôs multa simples no valor de mais de R$ 12.000.000,00 (doze milhões de reais) à Hexion Química Indústria e Comércio Ltda. em razão de um dano cometido por uma outra empresa com quem este firmou contrato. De fato, se o derramamento de metanol na Baía de Paranaguá foi causado pela Methanex Chile Ltda., não há sentido em responsabilizar a primeira empresa, ao menos nesse âmbito de competência, de maneira que a sentença e o acórdão do Tribunal de Justiça do Paraná mereceram ser reformados. O interessante é que antes a jurisprudência seguia o entendimento contrário, aplicando a tais situações o parágrafo 1º do artigo 14 da Lei 6.938/81, o qual dispõe sobre a modalidade civil de responsabilidade independente de culpa, o que era feito por mera analogia. No entanto, ao menos no que diz respeito à multa simples, a Lei 9.605/98 dispôs expressamente que a responsabilidade administrativa em matéria ambiental é subjetiva, haja vista a necessidade de comprovar a negligencia ou dolo[10], de forma que faltava lastro jurídico a tal compreensão. Impende dizer que já havia outras decisões nesse sentido[11], mas essa é simbólica em razão da pessoa do relator, do porte das empresas envolvidas, da repercussão do dano e do valor da multa.


[1] Artigo 2º. Para efeitos desta Lei, considera-se vaquejada todo evento de natureza competitiva, no qual uma dupla de vaqueiro a cavalo persegue animal bovino, objetivando dominá-lo.

[2] Segue destaque de trecho do voto do relator: “Consoante asseverado na inicial, o objetivo é a derrubada do boi pelos vaqueiros, o que fazem em arrancada, puxando-o pelo rabo. Inicialmente, o animal é enclausurado, açoitado e instigado a sair em disparada quando da abertura do portão do brete. Conduzido pela dupla de vaqueiros competidores vem a ser agarrado pela cauda, a qual é torcida até que caia com as quatro patas para cima e, assim, fique finalmente dominado./ O autor juntou laudos técnicos que demonstram as consequências nocivas à saúde dos bovinos decorrentes da tração forçada no rabo, seguida da derrubada, tais como fraturas nas patas, ruptura de ligamentos e de vasos sanguíneos, traumatismos e deslocamento da articulação do rabo ou até o arrancamento deste, resultando no comprometimento da medula espinhal e dos nervos espinhais, dores físicas e sofrimento mental. Apresentou estudos no sentido de também sofrerem lesões e danos irreparáveis os cavalos utilizados na atividade: tendinite, tenossinovite, exostose, miopatias focal e por esforço, fraturas e osteoartrite társica”. Também merece realce o voto vista do Ministro Luís Roberto Barroso, na opinião de quem as manifestações culturais que exponham os animais à tortura não são conciliáveis com a ordem constitucional vigente.

[3] Essa PEC procura acrescentar ao artigo 225 o seguinte parágrafo: “§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as manifestações culturais previstas no § 1º do artigo 215 e registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, desde que regulamentadas em lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos”.

[4] RE n. 153.531/SC.

[5] ADI n. 1.856/RJ, ADI n. 2.514/SC e ADI n. 3.776/RN.

[6] Segue trecho do voto do relator: “A implantação do loteamento irregular gerou danos de grande monta ao meio ambiente, conforme bem retrataram todos os laudos periciais e relatórios de vistorias, e salta aos olhos nas fotografias acostadas aos autos./ Enquanto no imóvel situado à Rua Carlos Mateus a degradação ambiental foi de aproximadamente 30 hectares ou 300.000m2 (vide fls. 7/22 do apenso 1), no imóvel situado à Rua Helena a degradação atingiu 2,9568 hectares, ou 29.568m2 (fl. 22), totalizando 329.568m2./ De monta, portanto, o parcelamento irregular do solo./ Houve terraplanagem, destruição de vegetação de Floresta Ombrófila/Mata Atlântica em área de preservação permanente; destruição de mata ciliar; corte mecânico de encosta e topo de morro; extração de argila e aterramento de vegetação e da calha do rio, causando grande assoreamento./ (…) De acordo com os peritos que o subscreveram, os “danos inviabilizam a regeneração natural da área, sendo considerados como permanentes, causando impactos ao meio ambiente, proporcionalmente ao tamanho da área desmatada e aterrada em função de seu grau de suscetibilidade” (fl.134)./ Além dos danos ao meio ambiente decorrentes da implantação do loteamento, não podem ser desconsideradas as consequências danosas aos adquirentes de lotes, ilaqueados em sua boa-fé mediante falsa afirmação sobre a legalidade do empreendimento”.

[7] Trecho do voto do relator: "No atual estágio do conhecimento científico, que indica ser incerta a existência de efeitos nocivos da exposição ocupacional e da população em geral a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, não existem impedimentos, por ora, a que sejam adotados os parâmetros propostos pela Organização Mundial de Saúde, conforme estabelece a Lei nº 11.934/2009".

[8] Trecho do voto do relator: “Segundo o princípio da precaução, a evolução científica pode trazer riscos, muitas vezes imprevisíveis ou imensuráveis, a exigir a reformulação das práticas e dos procedimentos tradicionalmente adotados na respectiva área da ciência. Desse modo, o princípio em questão deve considerar outros elementos essenciais para a adequada decisão estatal, a serem observados sempre que estiver envolvida a gestão de riscos: a) a proporcionalidade entre as medidas adotadas e o nível de proteção escolhido; b) a não discriminação na aplicação das medidas; e c) a coerência das medidas que se pretende tomar com as já adotadas em situações similares ou que utilizem abordagens semelhantes. Portanto, na aplicação do princípio da precaução, a existência de riscos decorrentes de incertezas científicas não deve produzir uma paralisia estatal ou da sociedade e, tampouco, gerar como resultados temores infundados. Logo, em face de relevantes elementos de convicção sobre os riscos, o Estado deve agir de forma proporcional. No que se refere aos limites à exposição humana a campos eletromagnéticos originários de instalações de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica do caso concreto, a Corte apontou que os níveis colhidos pela prova pericial produzida nos autos demonstrou a adequação aos parâmetros exigidos pelo ordenamento jurídico infraconstitucional”. No mesmo sentido, Maurício Mota destaca que o princípio da precaução “deve ser precedido por uma avaliação científica, tão completa quanto possível, em que seja admissível identificar em cada estágio o grau de incerteza científica. Autuando com moderação, as medidas de proteção devem ser proporcionais ao nível de proteção procurado” (MOTA, Mauricio. Princípio da precaução: uma construção a partir da razoabilidade e da proporcionalidade. In: MOTA, Mauricio (Coord.). Fundamentos Teóricos do Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 56).

[9] “2. A insurgente opôs Embargos de Declaração com intuito de provocar a manifestação sobre o fato de que os presentes autos não tratam de responsabilidade ambiental civil, que seria objetiva, mas sim de responsabilidade ambiental administrativa, que exige a demonstração de culpa ante sua natureza subjetiva. Entretanto, não houve manifestação expressa quanto ao pedido da recorrente./ 3. Cabe esclarecer que, no Direito brasileiro e de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a responsabilidade civil pelo dano ambiental, qualquer que seja a qualificação jurídica do degradador, público ou privado, proprietário ou administrador da área degradada, é de natureza objetiva, solidária e ilimitada, sendo regida pelos princípios do poluidor-pagador, da reparação in integrum, da prioridade da reparação in natura e do favor debilis. / 4. Todavia, os presentes autos tratam de questão diversa, a saber a natureza da responsabilidade administrativa ambiental, bem como a demonstração de existência ou não de culpa, já que a controvérsia é referente ao cabimento ou não de multa administrativa”.

[10] Artigo 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no artigo 6º: I – advertência; II – multa simples; III – multa diária; IV – apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração; V – destruição ou inutilização do produto; VI – suspensão de venda e fabricação do produto; VII – embargo de obra ou atividade; VIII – demolição de obra; IX – suspensão parcial ou total de atividades; X – (VETADO); XI – restritiva de direitos. (…) § 3º A multa simples será aplicada sempre que o agente, por negligência ou dolo: I – advertido por irregularidades que tenham sido praticadas, deixar de saná-las, no prazo assinalado por órgão competente do SISNAMA ou pela Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha; II – opuser embaraço à fiscalização dos órgãos do SISNAMA ou da Capitania dos Portos, do Ministério da Marinha.

[11] REsp n. 1.251.697/PR e AgRg no AREsp n. 62.584/RJ.

Autores

  • Brave

    é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor do livro “Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos” (5ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2015).

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