Opinião

O ministro Teori Zavascki e a doutrina da miscigenação jurídica

Autor

20 de janeiro de 2017, 18h22

O ministro Teori Zavascki deve ser lembrado por sua relevante contribuição como juiz, especialmente quando aliou seu ofício judicante ao seu atilado senso doutrinário como jurista. O presente artigo, singela homenagem, revisita sua construção acerca da doutrina da “miscigenação jurídica”, feita quando ainda era juiz do Superior Tribunal de Justiça, ao proferir alentado voto no EREsp 547.653/RJ, relator ministro Teori Zavascki, Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, j. 15/12/2010, DJe 29/3/2011 (RSTJ vol. 222 p. 36).

Para compressão da importância do raciocínio, observe-se que a temática surgiu de uma forma similar no Supremo Tribunal Federal, cinco anos depois, na petição inicial da ADC 44, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, como “constitucionalidade espelhada”, a partir de reflexão teórica do jurista Lenio Streck, no que se refere ao julgamento sobre a presunção de inocência, previsto tanto na Constituição quanto no Código de Processo Penal, quando o STF interpretou o artigo 5º, inciso LVII, da CF para dizer que era constitucional o início do cumprimento de pena privativa de liberdade antes do efetivo trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

Contudo, quando o STF fez isso, através do Habeas Corpus 126.292, deixou de declarar inconstitucional o artigo 283 do CPP, que tem a seguinte redação: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado”, levando a OAB a ajuizar, algum tempo depois, ação declaratória de constitucionalidade em face do referido artigo 283 do CPP.

Trata-se de um dos mais densos problemas de Teoria e Filosofia do Direito, pois remete ao problema da concomitância do controle da legalidade e do controle da constitucionalidade, já que podem entrar em conflito as interpretações dos órgãos encarregados de manter a unidade e a salvaguarda do ordenamento jurídico, em seus aspectos constitucional (STF) e infraconstitucional (STJ). 

O raciocínio sobre as chamadas “normas miscigenadas” ou “miscigenação jurídica” apareceu no caso de alegação de violação da cláusula de reserva de Plenário, prevista simultaneamente no artigo 97 da Constituição Federal e também no então vigente CPC/1973, quando o ministro Teori, a esse respeito, observou, que: 

“É típica hipótese dessa miscigenação jurídica imposta pela pluralidade de fontes, já que tratada concomitantemente no art. 97 da Constituição e nos artigos 480 a 482 do CPC. Todavia, os dispositivos processuais não representam mera reprodução da norma constitucional. Além de incorporar a essência da norma superior (que, no fundo, não é uma norma propriamente de processo, mas de afirmação do princípio da presunção de validade dos atos normativos, presunção que somente pode ser desfeita nas condições ali previstas), esses dispositivos estabelecem o procedimento próprio a ser observado pelos tribunais para a concretização da norma constitucional. Assim, embora, na prática, a violação da lei federal possa representar também violação à Constituição, o que é em casos tais um fenômeno inafastável, cumpre ao STJ atuar na parte que lhe toca, relativa à correta aplicação da lei federal ao caso, admitindo o recurso especial.” 

Ou seja, se há repetição de norma, prevista tanto na Constituição Federal quanto em legislação infraconstitucional, a alegação de violação permite o manejo tanto do recurso especial quanto do recurso extraordinário para que as partes busquem reverter a alegada violação do ordenamento jurídico no respectivo órgão competente.

Em alguma medida, em certo sentido, a configuração desse problema surge com a Constituição de 1988, a partir da criação do Superior Tribunal de Justiça, com a extinção do Tribunal Federal de Recursos, e a criação dos tribunais regionais federais, retirando do STF a competência para o julgamento dos recursos extraordinários que contivessem alegação de violação de negativa de vigência de lei federal, que passou a ser da competência do STJ.

Bifurcou-se a salvaguarda do ordenamento jurídico, e esse mesmo problema, de natureza evidentemente federativa, já era visualizado quando o Supremo passou a ter que discutir sobre as chamadas “normas de reprodução obrigatória”, para distingui-las das “normas de mera reprodução”, problema que trata de situações em que os constituintes estaduais fazem inserir nas respectivas Constituições estaduais normas igualmente previstas na Constituição Federal, atraindo a discussão sobre a competência para processo e julgamento da alegação de violação.

Tal questão era convidativa para que o Supremo Tribunal Federal se debruçasse mais detidamente sobre a interpretação constitucional da presunção de inocência (artigo 5º, inciso LVII, da CF), e também sobre as luzes que ela irradia sobre a norma infraconstitucional (artigo 283 do CPP), cuja constitucionalidade foi colocada em evidência, mas a solução provisória e pragmática adotada pelo STF, na já mencionada ADC 44, não acolheu resposta jurídica que considerasse detidamente a questão.

A doutrina da “miscigenação jurídica”, a propósito, merece reflexões conjuntas com as teses da “constitucionalidade espelhada” e das “normas de reprodução obrigatória e/ou de mera reprodução”, e a contribuição do ministro Teori é extremamente relevante, jurista que deverá ser rememorado também pelas reflexões que buscou trazer sobre densos problemas de Teoria e Filosofia do Direito.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!