Opinião

A morte de Teori Zavascki ou uma trapaça da sorte

Autor

20 de janeiro de 2017, 14h06

O Supremo Tribunal Federal, de uns tempos a este, se transformara em palco obrigatório da atenção dos advogados e juristas em geral, principalmente dos criminalistas. Cada qual dos ministros tinha, desde o mais novo ao decano, seus motivos especiais de atração, com relevo para particularidades ligadas à cultura, personalidade, gesticulação, simpatia ou acritude, sem exceção das eminentíssimas Rosa Weber e Cármen Lúcia, atual presidente a última, girando o todo em torno da transparência constantemente propalada. Teori sempre me impressionou: caladão, sobriamente elegante, bom ouvinte e argumentador conspícuo, tinha o respeito e o afeto do plenário, não se envolvendo emocionalmente, diga-se de passagem, nas escaramuças travadas entre alguns. Recebia sobre os ombros, suportando-o galhardamente, o peso da “lava jato”, cuja descrição é absolutamente desnecessária. Eis que nesta quinta-feira, 19 de janeiro de 2017, o ministro resolve entrar num pequeno bimotor aportado no Campo de Marte, dirigindo-se a Paraty, voo curto e dentro dos limites da aeronave. Segundo consta, havia cinco pessoas a bordo: o piloto, dois homens e duas mulheres, mãe e filha.

Não se perca tempo com minúcias. O avião caiu a poucos quilômetros do destino, sabem-no todos. Impediram-no de submergir. Eventuais culpas e condições do desastre serão apuradas, na medida do possível, recuperando-se a “caixa-preta”, se houver. Cogita-se, no entremeio, sobre a relação de causalidade, grande certamente, mas enfrentável, no futuro da pátria.

Peculiaridades ligadas às consequências jurídicas e políticas do evento estão, a bem-dizer, na boca do povo. Assim, não vale a repetição, bastando dizer que um homem bom morreu. Estava em lugar errado numa hora errada. Em outros termos, cometia uma extravagância, pois era uma das superiores autoridades da República, embarcando em avião inadequado a transportá-la. Um risco desnecessário. Diga-se, entretanto, que homens públicos, mesmo os santos, têm acessos de aburguesamento. Conheci alguns acostumados a guiar bicicletas nas avenidas metropolitanas, viajar em velhos automóveis de coleção, entrar em túneis com o tanque de gasolina a zero e aventuras outras do tipo. Saiu nos jornais, há pouco, notícia respeitante a octogenário saltando de paraquedas (alguma semelhança como fazer mil coisas antes de morrer).

Bem ou mal, o estimadíssimo juiz entrou num aviãozinho, sem escolta ou assessores, e se foi a Paraty, terra de Amyr Klink, aventureiro sim, famosíssimo aqui e no resto do mundo.

Os brasileiros sentiram baque enorme com o drama. Não era possível que o ministro se fosse daquela forma. Cogitações múltiplas surgem porque, no fim das contas, criaturas diferenciadas e benquistas não devem partir assim. Mas, com perdão pela redundância, morrer é fatal, de doença, na estrada, em acidente aéreo ou baleado por bandido. Ou por velhice. Morre-se apenas. Teori se foi a destempo, lamentavelmente, mas aconteceu.

Advogado criminal vetusto, um dos poucos sobreviventes das penumbras do passado, sofro, nesta madrugada de 20 de janeiro de 2017, uma onda muito grande de tristeza. Passo, sacudido pelo sinistro, noite comprida em claro. Curiosamente, relembro trechos de eventos fincados na memória: Evandro Lins e Silva, amigo amantíssimo, escorregou num “xaveco”[i] na calçada do aeroporto Santos Dumont. Fraturou o crânio e viajou para outras plagas. Anos depois, Ulysses Guimarães afundou no mar, ele, o helicóptero, a mulher e outro passageiro, não sendo o conjunto localizado até hoje. O comandante Rolim, líder inconteste da TAM, morreu no mar pilotando um helicóptero. Havia acompanhante. Moça engalanada para casamento se destruiu em aeronave assemelhada, perdendo a vida e a descida triunfal no local das núpcias. O vestido lhe serviu de mortalha. Candidato à presidência da República morre enquanto seu avião perde altura e se esfacela num recanto da baixada santista. Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura, tem destino igual. Juscelino Kubitschek falece em acidente de automóvel. Viajava de São Paulo ao Rio de Janeiro. Albert Camus, no auge da fama, depois de escrever, entre outros, “O estrangeiro” e “A peste”, perece numa colisão de veículos. Gaudí, o grande Gaudí, se extingue bisonhamente, atropelado por um bonde. É bom lembrar que certa vez, do outro lado do mundo, avião cheio de gente despencou, salvando-se apenas um velho canceroso, enquanto crianças de colo, braços abertos para a vida, eram dilaceradas na explosão. Aqui no Brasil, mais precisamente em Santos, um prédio desmoronou. Dentro dele, entre várias pessoas, um comerciante assustadíssimo se escondeu sob uma forte mesa de trabalho. Salvaram-no com lesões sem gravidade. Puseram-no numa ambulância, devidamente cinturado em maca provida de rodas. O veículo subiu uma ladeira. As portas traseiras, mal aferrolhadas, se abriram. A cama portátil desceu pela rua íngreme, como se fosse gigantesco skate. Veio um caminhão no cruzamento. E passou por cima do enfermo. Era a hora do enfermo.

Dezenas de histórias assemelhadas podem ser contadas. Voltando-se à “lava jato”, ao “mensalão” e outras aventuras judiciárias assemelhadas, rememore-se Flávio de Carvalho, dos maiores pintores que o Brasil teve. A mãe dele estava morrendo. Ele, impassível, desenhava a moribunda em traços diferenciados. Em outro episódio, ou seja, no O estrangeiro, de Camus, uma velha estava esperando, já, a extrema unção. O filho, sentado ao lado, absorto, tesoura na mão, recortava pedaços de jornal. Advertido quanto à displicência, empunhou aquele instrumento e o enfiou no coração. Em síntese, matou-se paroxisticamente.

Encerre-se: a crônica é prenhe de ironia, mas não esconde a aflição do autor. Sofre-se muito com o desastre e derivações postas no futuro da nação, mas há substitutos muito competentes. Já passamos por coisa pior.

Do meu lado, não sei se me entristeço mais com a morte do ministro ou a dor do “Zé”, um dos muitos moradores de rua a recolherem o lixo nas calçadas dos bairros nobres de São Paulo. José era perito na arte de conduzir o carroção. Pendurava-se nos varais dianteiros e descia as escarpas paulistas, equilibrando-se como bom trapezista. Certo dia, encarou seu maior desafio: uma rua posta bem aqui, nos Jardins, dos maiores declives que a metrópole tem. Cismou de descer. Pendurou-se no estranho veículo e morreu lá em baixo. Era moço magro, mas muito forte, porque fazia musculação naquele exercício diário. José morreu, insista-se. Cuidava-se de amigo meu. Salvou-se o cão vagabundo que ele carregava lá atrás, protegido pelo papelão colhido por ali. O “Zé”, no dizer de Chico Buarque, morreu na contramão, atrapalhando o tráfego.

Eu gostava muito daquele equilibrista popular e também estimava bastante o ministro morto. Uma das diferenças: o mendigo sabia que eu o trazia no peito. O ministro não. Saibam-no, agora, a família, os outros juízes componentes da Suprema Corte e os amigos. Por fim, é interessante dizer que o “Zé” e o ministro Teori, um sabendo, o outro não, aplicaram o mote do Direito Penal moderno, ou seja, a teoria do domínio do fato. Este tomou um avião inconveniente; aquele partiu para aventura inacabada. Ambos tinham a percepção de um resultado possível. La Nave Va.


i Expressão significando, entre os cariocas, espirro d’água contida embaixo de ladrilho solto, nos calçadões. 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!