Opinião

O Tribunal Federal Constitucional alemão e a infeliz decisão sobre o NPD

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18 de janeiro de 2017, 15h30

Em seu penúltimo livro, A Tolice da Inteligência Brasileira, o autor Jessé Souza sustenta que corrupção, patrimonialismo e demais características negativas da formação política e social do Brasil não devem ser concebidas como especiais particularidades nossas. Jessé Souza mostra, com incisivos exemplos, como sociedades do chamado primeiro mundo também as possuem, ao mesmo instante em que são — estas sociedades ditas desenvolvidas — louvadas por parte considerável da intelectualidade nacional.

Nessa esteira, métodos interpretativos, teorias da argumentação jurídica e instrumentos de controle da constitucionalidade da Alemanha são incessantemente recepcionados no Brasil, por acadêmicos brasileiros. Gilberto Bercovici, Lenio Streck, Marcelo Cattoni e Otavio Luiz Rodrigues Jr. (e muitos outros) não se cansam de criticar algumas formas dessa recepção aqui no Consultor Jurídico, a demonstrar que nos trópicos também se pode fazer boa ciência. Não se trata de recusar a poderosa teoria constitucional e política que os alemães elaboraram ao longo de mais de 200 anos, porém de compreender que assimilações de conhecimento dessa importância podem ser discutidas e refletidas noutros espaços. Temos a aprender com qualquer experiência, e não somente com aquelas do primeiro mundo… E também se pode aprender conosco. Ainda mais quando tribunais constitucionais dão maus exemplos sobre democracia e tolerância.

A decisão de 17 de janeiro de 2017 do Tribunal Federal Constitucional da Alemanha[1] que não proibiu o Partido Nacional Democrático da Alemanha (NPD – Nationaldemokratische Partei Deutschlands) desencadeou surpresas não somente na Alemanha. Desde logo, merece destaque que não seria a primeira vez que o tribunal proibiria um partido político. Em 1952, foi proibido o Sozialistische Reichspartei Deutschlands (SRP), ou Partido Socialista do Reich Alemão, considerado abertamente o sucessor do Partido Nazista (NSDAP). Em 1956, foi a vez do Kommunistische Partei Deutschlands (o KPD, ou Partido Comunista da Alemanha). A decisão contra o KPD mereceu estudos de intelectuais vigorosos como Wolfgang Abendroth[2].

A decisão sobre o NPD chama a atenção por distintos motivos. O mais significativo deles é sobre o potencial dano causado pelo NPD à democracia alemã, não vislumbrado pelo tribunal. O Tribunal Federal Constitucional entendeu que “a definição do objetivo de um partido, direcionado contra a ordem fundamental calcada na liberdade e democracia não é razão suficiente para a proibição do partido. Muito pelo contrário, o partido deve 'empenhar-se' no prejuízo ou na eliminação dessa ordem fundamental fundada na liberdade e democracia. a) Tal 'empenho' pressupõe conceitualmente uma atuação concreta. A proibição de um partido não consiste na proibição de convicções ou cosmovisões. O partido deve ultrapassar o limiar que o separa do combate aberto da ordem fundamental alicerçada na liberdade e democracia. Deve ter ocorrido uma atuação planejada direcionada, no sentido de atos qualificados de natureza preparatória. a prejudicar ou eliminar a ordem fundamental da liberdade e democracia, ou direcionada à ameaça da própria existência da República Federal da Alemanha”[3].

Mais adiante, reconhece o tribunal que, “considerado isoladamente, o parentesco essencial de um partido político com o nacional-socialismo não se justifica a proibição desse partido”[4]. O tribunal deixa claro, porém, que o conceito de Volksgemeinschaft (comunidade do povo, definida pela suposta homogeneidade étnica) é incompatível com os fundamentos constitucionais do princípio democrático. Conclui que, "considerada pelos seus objetivos e por sua atuação dos seus seguidores, o demandado busca eliminar a ordem fundamental calcada na liberdade e democracia. Objetiva a substituição do ordenamento constitucional existente por um 'Estado-nação' autoritário, direcionado pela 'comunidade do povo' definida em termos étnicos". Tal concepção política fere a dignidade humana de todos os que não integram a comunidade do povo definida em termos étnicos, e é incompatível com o princípio democrático prescrito pela Lei Fundamental[5]. E, mais além: "O demandado atua de modo planejado e qualificado para atingir seus objetivos direcionados contra a ordem fundamental fundada na liberdade e democracia. c) No entanto, estão ausentes quaisquer indícios concretos de peso, que pelo menos afiguram possível o êxito dessa atuação" (subentenda-se: do NDP)[6].

Em outras palavras, o tribunal alemão assimilou a tese de que a insignificância política de um partido, claramente com proximidade ao nazismo, não autoriza sua proibição. Já que é esse partido um peso menor na cena política do país, pode ele funcionar livremente, sem ser molestado pela democracia, ainda que um de seus principais conceitos — da homogeneidade de um povo — corresponda ao ideal nazista de mais tarde, tão bem antecipado por Carl Schmitt desde 1923, na sua obra Die geistesgeschichtliche Lage des heutigen Parlamentarismus. É nessa obra que Schmitt defende a homogeneidade como elemento a ser defendido pela democracia. A força da democracia estaria em eliminar ou manter afastado o estranho, o desigual (“Fremde und Ungleiche zu beseitigen oder fernzuhalten”), ameaçadores dessa homogeneidade[7].

Não há dúvida de que a decisão é um grave erro. Se a consideramos no atual momento europeu, causa-nos sobressalto pensar que o mesmo argumento foi mobilizado no início da ascensão do nazismo ao poder na Alemanha. Primeiro, não se imaginou que o NSDAP vencesse as eleições; depois, não se acreditou que o partido governasse; por fim, não se pensou que os nazistas construíssem os campos de concentração e promovessem o extermínio maciço de populações judias.

Se por um lado é certo que há muito se defendem posições repressivas — e não preventivas — quando se trata da liberdade de associação política ou da expressão de pensamento, por outro lado não há como ignorar os ensinamentos do passado. O discurso da intolerância e do ódio, de início minoritário, pode se tornar majoritário, especialmente em momentos de dificuldades e incertezas econômicas e políticas, seja na Europa ou no Brasil de hoje. Não se trata de proibir o debate de qualquer espécie ou o velho e bom debate, que se dispõe a enfrentar todos os temas, até os mais complexos. Trata-se de aprender com o passado e prevenir consequências funestas.

Demais, parece possível imaginar que, caso o NDP venha a ganhar substância política na Alemanha, poderá então ser proibido, de acordo com a orientação do Tribunal Federal Constitucional. Nesse caso, ele seria declarado inconstitucional, porque suas ideias francamente nazistas poderiam agora destruir a democracia alemã. O desafio aqui é saber se, quando esse instante chegar, ainda haverá tribunal constitucional com força suficiente para assim decidir e fazer valer sua decisão. O eventual caráter repressivo dessa decisão, que proibisse o NDP desde logo, teria sinalizado a disposição do Tribunal Constitucional Federal de preservar a democracia, cujo defensor afirma ser.

Quando vivi na Alemanha, assisti à inesquecível conferência de Leah Rabin em 1997 em Frankfurt, pouco após o assassinato de seu marido, Yitzhak Rabin. Em minha companhia nesse evento, o amigo e hoje ministro do STJ Ricardo Cueva. Indagada como havia sobrevivido, Leah Rabin contou sua história familiar: seu pai, tão logo os nazistas chegaram ao poder, levara a família para a Palestina. Outros parentes, ingênuos quanto à real intenção do governo nazista e ao apoio do governo pela sociedade alemã, permaneceram na Alemanha. Assim, somente os familiares mais próximos de Leah Rabin sobreviveram ao Holocausto.

A decisão sobre o NDP alemão remete inexoravelmente à reflexão sobre o papel das cortes constitucionais em momentos de dificuldades, que é o que realmente conta e interessa. Em períodos de tranquilidade econômica, institucional e política, as cortes quase chegam a ser apenas locais de exercícios para sutilezas retóricas, à maneira dos sofistas. Quem sustenta que cortes constitucionais podem ser espaços do “iluminismo”, sempre prontas à defesa da democracia, deveria começar a rever suas reflexões. No Brasil atual, o STF foi inteiramente tomado pela tibieza de seus membros, a permitirem, na contramão da sua própria jurisprudência, um golpe contra a democracia e a soberania brasileiras, com o perigoso resultado que somos obrigados a testemunhar na forma de discursos de intolerância, ódio e abandono dos direitos humanos. Sua atual presidente, mesmo após mais de 30 anos de profissão, acredita ser necessário visitar presídios para constatar a trágica falência do sistema prisional brasileiro, como se não soubesse de tal realidade, e como se fosse atribuição do STF resolver os problemas da situação carcerária nacional, em vez de aplicar e fazer respeitar a Constituição Federal e defender a democracia.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, para Ian Millhiser, sempre “confortou os confortáveis e afligiu os aflitos”: para o autor norte-americano, as decisões da corte dos anos 1950 até o começo dos anos 1970 que restauraram as promessas da Constituição de igualdade, liberdade de expressão e verdadeira justiça são, na verdade, um “acidente histórico”; são a exceção ao normal entendimento daquela corte[8]. Lá, assim como na Europa e no Brasil, o que interessa são os instantes de instabilidade. Antes de tudo, democracia requer coragem civil. E esta parece que também falta aos tribunais que se localizam em dois lados do Atlântico: setentrional e no ocidental.

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A tradução dos trechos em alemão neste artigo é de minha responsabilidade. Meu mais sincero agradecimento a Peter Naumann, que me socorreu na tradução das citações em alemão. Ainda assim, a responsabilidade por eventuais equívocos permanece à minha conta.


[1] Urteil vom 17. Januar 2017 – 2 BvB 1/13. O inteiro teor da decisão, no original em idioma alemão, pode ser acessado aqui: http://www.bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs/ Entscheidungen/DE/2017/01/bs20170117_2bvb000113.html. Em língua inglesa: http://www. bundesverfassungsgericht.de/SharedDocs /Pressemitteilungen/EN/2017/bvg17-004.html.
[2] Die KPD-Verbosurteil des Bundesverfassungsgreichts. In: Antogonistische Gesellschaft und politische Demokratie. Heinz Maus, Friedrich Fürstenberg. Neuwied/Berlin: Hermann Luchterland Verl., 1967, pp 139-174. Ainda: Urteil: KPD-Verbot aufheben. Politisches und Rechtliches zum Verbot der KPD. Köln: Paul Rugestein Verlag, 1971.
[3] “6 – Eine gegen die freiheitliche demokratische Grundordnung gerichtete Zielsetzung einer Partei reicht für die Anordnung eines Parteiverbots nicht aus. Vielmehr muss die Partei auf die Beeinträchtigung oder Beseitigung der freiheitlichen demokratischen Grundordnung 'ausgehen'. a) Ein solches 'Ausgehen' setzt begrifflich ein aktives Handeln voraus. Das Parteiverbot ist kein Gesinnungs- oder Weltanschauungsverbot. Notwendig ist ein Überschreiten der Schwelle zur Bekämpfung der freiheitlichen demokratischen Grundordnung durch die Partei. Es muss ein planvolles Vorgehen gegeben sein, das im Sinne einer qualifizierten Vorbereitungshandlung auf die Beeinträchtigung oder Beseitigung der freiheitlichen demokratischen Grundordnung oder auf die Gefährdung des Bestandes der Bundesrepublik Deutschland gerichtet ist”.
[4] “Die Wesensverwandtschaft einer Partei mit dem Nationalsozialismus rechtfertigt für sich genommen die Anordnung eines Parteiverbots nicht.”
[5] “Die Antragsgegnerin strebt nach ihren Zielen und dem Verhalten ihrer Anhänger die Beseitigung der freiheitlichen demokratischen Grundordnung an. Sie zielt auf eine Ersetzung der bestehenden Verfassungsordnung durch einen an der ethnischen 'Volksgemeinschaft' ausgerichteten autoritären 'Nationalstaat'. Dieses politische Konzept missachtet die Menschenwürde aller, die der ethnischen Volksgemeinschaft nicht angehören, und ist mit dem grundgesetzlichen Demokratieprinzip unvereinbar.”
[6] Die Antragsgegnerin arbeitet planvoll und qualifiziert auf die Erreichung ihrer gegen die freiheitliche demokratische Grundordnung gerichteten Ziele hin. c) Es fehlt jedoch an konkreten Anhaltspunkten von Gewicht, die es zumindest möglich erscheinen lassen, dass dieses Handeln zum Erfolg führt.
[7] Id. Ib.: Duncker&Humblot: Berlin, 1996, p.14.
[8] Id. Injustices – The Supreme Court’s History of Conforting the Confortable and Afflicting the Afflicted. Nation Books: New York, 2015, p. XIV.

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