Tribuna da Defensoria

A vocação defensorial do novo Código de Processo Civil

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17 de janeiro de 2017, 10h03

Vocação relaciona-se à uma aptidão para a realização de uma atividade, pautando-se por diretrizes, princípios e finalidades. Com efeito, a vocação pode ser desenvolvida, aprimorada e lapidada, sendo certo que se trata de um conceito que não é estanque, podendo sofrer variações no tempo e no espaço.

Em razão da referida mutabilidade, a vocação pode sofrer influências da sociedade, da economia, da cultura, da religião, do próprio Direito, etc. Entrementes, não podemos prescindir que existem fatores que tendem a afastar nossas ideias, opiniões e convicções. Por isso, a pessoa/instituição vocacionada deve, inexoravelmente, pautar-se em diretrizes e princípios sólidos, de forma a evitar que elementos internos ou externos afastem as premissas fundamentais de sua vocação — sem, contudo, tornar-se acrítica.

Seguindo essa linha de raciocínio, questiona-se, então, qual seria a vocação — diretrizes, princípios e finalidades — da Defensoria Pública. Em primeiro lugar, devemos observar os conceitos e elementos da norma fundamental, que servem de parâmetro axiológico para as demais espécies normativas. Assim, imprescindível a leitura do artigo 134, da Constituição Federal. Vejamos:

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do artigo 5º desta Constituição Federal.

Após a leitura das linhas constitucionais fundamentais, é de suma importância a análise da Lei Complementar 80 de 1994. A referida lei orgânica (criadora), organizou normas gerais, diretrizes, princípios e objetivos à nobre instituição, estabelecendo suas funções institucionais. As bases institucionais estão presentes em seus objetivos, contidos no artigo 3º-A, bem como em algumas das atribuições contidas no artigo 4º, ambos da lei supracitada:

Art. 3º-A: São objetivos da Defensoria Pública: I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; II – a afirmação do Estado Democrático de Direito; III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; IV – a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Art. 4º: São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: I – prestar orientação jurídica e exercer a defesa dos necessitados, em todos os graus; II – promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos; III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico; (…) VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; (…).

Assim, para alcançarmos a vocação defensorial, devemos conjugar o artigo 134, da Constituição Federal, com o artigo 3º-A, e 4º, da Lei Complementar 80/1994, sem olvidar da importância de outras legislações e diversos dispositivos, necessários para a compreensão holística da instituição.

Em apertada síntese, a vocação da Defensoria Pública está relacionada à defesa dos hipossuficientes, de forma preventiva ou demandista, judicial ou extrajudicial, promovendo e defendendo os direitos humanos, bem como garantindo seus direitos, principalmente os fundamentais, de forma individual ou coletiva, primando pela dignidade da pessoa humana, pela redução das desigualdades sociais e pela afirmação do Estado de opção democrática, sempre almejando preservar e concretizar o contraditório e a ampla defesa.

Da afirmação da Defensoria Pública no novo CPC
A Defensoria Pública é uma cláusula pétrea da cidadania (artigo 60, IV, CF), concretizando o fato de ser uma instituição permanente (artigo 134, CF). É instrumento para a defesa de um Estado de opção democrática e um direito social fundamental da sociedade, principalmente aquela marginalizada, que não pode ser suprimido, nem mesmo reduzido, sob pena de violação da cláusula de vedação do retrocesso social.

Muitos atores da comunidade jurídica e política não estão anestesiados, diante das mazelas sociais que atingem a população, principalmente aquela mais necessitada. Por conta disso, destaca-se a opção política de fortalecimento e incremento da instituição, por meio da Emenda Constitucional 80 de 2014, a qual dispõe que “no prazo de oito anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais”. Ademais, a referida emenda, buscando concretizar a instituição e reforçar sua autonomia, efetivando a existência de um modelo público de assistência jurídica integral e gratuita, previu uma Seção exclusiva à Defensoria Pública (Seção IV), independente daquela referente à Advocacia (Seção III).

Seguindo essa linha de raciocínio, ressaltando a importância e afirmação da instituição, estabeleceram, no novo Código de Processo Civil, um título específico acerca da Defensoria Pública. Assim, com base no texto constitucional, prevê o artigo 185 que “a Defensoria Pública exercerá a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos dos necessitados, em todos os graus, de forma integral e gratuita”. Nota-se uma sistematização processual entre a Defensoria Pública e a Constituição Federal.

Trata-se de inegável avanço. Inspirado no texto constitucional, o novo Código trouxe para si a valorização da Defensoria Pública. Essa tendência de concretização da instituição pode ser observada não somente por meio do artigo 185, como também nas mais de 40 vezes em que o nome da instituição é destacado no novo Código, contrapondo-se ao desprezo do código de 1973.

Apenas como matéria exemplificativa, seguindo as diretrizes do artigo 4º, §6º, da Lei Complementar 80/94, que dispõe que “a capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público”, o novo CPC estabelece que dispensa-se a juntada de procuração, caso a parte esteja representada pela Defensoria Pública (artigo 287, parágrafo único, II), sendo certo que somente o advogado — e não o Defensor Público — deverá ter inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil (artigo 103).

Entrementes, devemos ir além, analisando-se diversas outras normas do código, que culminaram por consubstancializar uma verdadeira vocação defensorial do processo no novo Código de Processo Civil.

A vocação defensorial do novo CPC
Conforme salientado alhures, o primeiro objetivo institucional refere-se à “a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais”, nos termos do artigo 3º-A, I, da LC 80/1994. Seguindo essa linha de raciocínio, o novo Código, não somente estabeleceu que “o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil” (artigo 1º), como também que “ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana” (artigo 8º).

Uma primeira conclusão inafastável que podemos chegar relaciona-se à semelhança das premissas básicas tanto da vocação da Defensoria, quanto da vocação do novo Código de Processo Civil, no sentido de buscar, com fulcro na Carta Maior, a defesa e promoção da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF).

Não obstante, a vocação defensorial não se limita à referida premissa fundamental. Outro objetivo relacionado à nobre carreira refere-se à garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (artigo 3º-A, IV, LC 80/94). Da mesma forma, o novo CPC está embebido da referida vocação, trazendo o que os juristas denominam de princípio da ampla defesa e do contraditório permanentes — se protraindo durante todo o processo. Vejamos, em destaque, três dispositivos constantes no capítulo inerente às normas fundamentais do processo civil:

Art. 7º: É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.

Art. 9º: Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.

Art. 10: O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

As normas processuais não podem ser interpretadas isoladamente. De fato, a Defensoria Pública é um instrumento para a garantia do contraditório e da ampla defesa. Novamente, a instituição aparece como uma garantia e um direito fundamental, consubstanciada, nos termos já demonstrados, em uma cláusula pétrea para a tutela de direitos, a exemplo daqueles que solidificam a isonomia e a democracia processual. Eis um cristalino exemplo da vocação defensorial do processo.

Observa-se uma nova tendência processual. O novo CPC procura realizar uma ruptura paradigmática, trazendo uma nova cultura processual, com diretrizes, valores e princípios que efetivam uma nova vocação, umbilicalmente atrelada ao processo defensorial.

Outro ponto que alcançou destaque no novo Código refere-se à tutela extrajudicial de direitos, por meio de uma concepção não-demandista e preventiva. Acreditamos que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos foram elevados à direitos fundamentais, que devem ser promovidos pelos atores do sistema de justiça, na forma do artigo 3º, §3º, novo CPC. Vejamos:

Art. 3º, § 3º: A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.

Nesse diapasão, ressalta-se que a ênfase em uma atuação não-demantista, preventiva e extrajudicial vem sendo, ao longo dos anos, uma bandeira da Defensoria Pública em todo território nacional. Não é por outro motivo que o artigo 4º, II, da LC 80/94 estabelece que é função institucional “promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos”.

Assim, ressaltamos que a atuação da Defensoria Pública, no âmbito extrajudicial, vem sendo realizada não somente no aspecto individual, como também coletivo, com um viés estratégico e indutivo, abandonando-se uma concepção individual/liberal e abraçando um conceito social/democrático de atuação. Exemplificativamente, podemos citar a atuação de defensores públicos, inclusive com o apoio de psicólogos e agentes sociais, na rede de atendimento, seja por meio de palestras, cartilhas, informativos, orientação jurídica, sempre buscando concretizar a educação em direitos (artigo 4º, III, LC 80/94).

Nota-se, portanto, uma adequação do novo CPC com a vocação defensorial de tutela de direitos, abandonando-se uma cultura extremamente demandista e engrandecendo as diretrizes da Resolução 125 do Concelho Nacional de Justiça (que dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário) e da Lei 13.140/2015 (que dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública).

Indubitavelmente, portanto, podemos concluir que deverá existir uma sintonia entre Defensoria Pública, novo Código de Processo Civil e Constituição Federal, revendo a teoria geral do Direito Processual Civil, analisando-o sobre o prisma “defensorial”, combinando as finalidades e garantias processuais com a Defensoria Pública — que passou a compor, de modo incontestável, esse novo dogma processual democrático. Entrementes, tais concepções não devem ser concretizadas apenas no papel, sendo imprescindível que se afastem clássicos dogmas formalistas, existindo uma mudança cultural nos operadores da prudência jurídica. Assim, pode-se superar indefinições teóricas, a ineficácia jurídica, a falta de legitimação, a insegurança jurídica, e o prestígio social.

Da necessidade de aprimoramento do regramento processual defensorial
Sem dúvidas, o avanço apresentado até o presente momento não deve se estagnar. Ainda há muito o que avançar. Os processualistas e estudiosos do Direito, principalmente os defensores públicos, não devem se aquietar diante do novo regramento processual.

Há muito, o direito material e processual relacionado à instituição vem passando por grandes avanços e mudanças. Os juristas não mais se contentam com aquelas tradicionais atribuições pautadas na hipossuficiência econômica. Assim, o ordenamento processual deverá, com o tempo, se adaptar à nova roupagem da Defensoria Pública — com atribuições contemporâneas relacionadas à hipossuficiência econômica, jurídica e organizacional.

De fato, os primeiros passos foram concretizados. Por exemplo, o artigo 185 prevê, explicitamente, a defesa dos interesses coletivos como função institucional. Por seu turno, o artigo 554, §1º estabelece que “no caso de ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas, serão feitas a citação pessoal dos ocupantes que forem encontrados no local e a citação por edital dos demais, determinando-se, ainda, a intimação do Ministério Público e, se envolver pessoas em situação de hipossuficiência econômica, da Defensoria Pública”.

Note que as funções/atribuições inerentes à defesa dos hipossuficientes organizacionais ainda são deficitárias no novo CPC, necessitando de avanços e melhor regramento. Importante e contemporâneo exemplo pouco explorado refere-se à intervenção “custos vulnerabilis”, concretizando a vocação defensorial acima exposta, intervindo no processo com viés diferente daquele referente à representação do necessitado em juízo, porém também não se confundindo com a sua atuação em demandas coletivas.

O que procuramos, no presente momento, é apenas demonstrar — ainda que de forma superficial — a necessidade de refletirmos acerca de um processo defensorial, de acordo com a nova realidade da Instituição, com fulcro nas diretrizes Constitucionais. Somente assim, conseguiremos firmar uma mudança cultural no Direito Processual Civil, tornando-o democrático e constitucionalizado, correspondendo às novas expectativas sociais, e superando um viés burocrático, elitista, oneroso e individualista. Somente o tempo, a inquietude e a atuação dos atores do Direito irão demonstrar se conseguiremos alcançar a nova vocação defensorial do processo civil.

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