Insegurança jurídica

Acordo da Rolls-Royce na "lava jato" não protege a empresa de novas ações

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17 de janeiro de 2017, 18h36

O “acordo de leniência” assinado pela montadora Rolls-Royce com o Ministério Público Federal não a protegerá de novas ações, judiciais ou administrativas no Brasil. A empresa anunciou o acordo na segunda-feira (16/1), como parte de um acerto maior, envolvendo também autoridades dos Estados Unidos e do Reino Unido, em que confessou a participação de diversos esquemas de pagamento de propina para fraudar contratos de fornecimento.

No Brasil, esses contratos foram com a Petrobras, por isso a força-tarefa da “lava jato” está envolvida. A Rolls-Royce informou ter pago US$ 9,3 milhões em propina a executivos da estatal brasileira entre 2003 e 2013 para garantir contratos na área de energia. O acordo ainda precisa ser homologado pela 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF para passar a valer.

Divulgação/Rolls-Royce
A própria companhia ainda está sujeita a ações por parte da Petrobras e da União.
Divulgação/Rolls-Royce

Enquanto nos outros dois países o acordo prevê o não ajuizamento de novas ações, inclusive penais, a legislação brasileira não dá esse poder ao MPF. E de acordo com a Procuradoria da República no Paraná, o acordo envolve apenas o MPF e a Rolls-Royce.

“Os acordos firmados pelo MPF não conferem quitação à empresa”, explica o procurador da República Paulo Roberto Galvão, integrante da força-tarefa da “lava jato” que participou das negociações. “Os valores pagos são relevantes, mas as demais partes interessadas, inclusive a Petrobras, podem cobrar eventuais valores que entenderem pertinente”, afirmou à ConJur.

Por isso, além de os executivos da empresa ainda estarem passíveis de se tornar réus em ações penais, a própria companhia ainda está sujeita a ações por parte da Petrobras e da União, seja por meio da Advocacia-Geral da União, seja por meio da Controladoria-Geral da União.

Como o acordo envolve uma empresa da qual a União é a maior acionista, a Rolls-Royce está ainda sujeita a procedimentos administrativos como o Processo Administrativo de Responsabilização, o PAR, previsto na Lei Anticorrupção. O Tribunal de Contas da União, fiscal das contas públicas federais, também deverá analisar o acordo.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a AGU disse não poder falar sobre a existência ou não de negociações para um acordo com empresas. Também disse que ainda não há procedimentos administrativos instaurados a respeito dos fatos revelados pela Rolls-Royce.

Ressarcimento
Ao todo, a companhia informou que pagará 671 milhões de libras nos três acordos. Ao Reino Unido, serão pagos 497 milhões de libras esterlinas, mais juros, em cinco anos, mais um pagamento das custas do Serious Fraud Office (SFO), órgão britânico de combate a crimes financeiros e corrupção.

No Brasil, a companhia declarou que pagará R$ 81,1 milhões, que serão “integralmente destinados ao ressarcimento dos prejuízos causados à Petrobras”, segundo o MPF.

Desse dinheiro, R$ 39,7 milhões correspondem ao lucro da Rolls-Royce decorrente dos contratos superfaturados por meio de fraudes a licitação. Outros R$ 20,7 milhões  são os pagamentos de propina. O resto são as multas previstas na Lei de Licitação, que correspondem a dez vezes o valor pago como propina a cada intermediário.

Aos Estados Unidos, a Rolls-Royce pagará US$ 170 milhões. A empresa informou que, no primeiro ano do acordo, gastará 293 milhões de libras.

Direito comparado
A diferença entre o Brasil e os outros dois países é a abrangência do acordo. Nos EUA e no Reino Unido foram assinados acordos chamados de Deferred Prossecution Agreement (DPA), ou “acordo para não processar”, em tradução livre.

No caso dos EUA, o DPA é descrito no Manual do Procurador-Geral dos Estados Unidos (USAM, na sigla em inglês). E lá diz que o Departamento de Justiça (DoJ, na sigla em inglês) pode fazer avaliações sobre a consequências e os possíveis danos colaterais de uma ação judicial para evitar o processo e fazer um acordo para encerrar as investigações.

Pelas regras norte-americanas, esse acordo envolve ações cíveis, criminais e fiscais, inclusive de pessoas físicas. Lá, os acordos são públicos e já foram divulgados pelo DoJ. No acordo brasileiro, além do sigilo, “não há proteção penal a indivíduos”, conforme disse o procurador Paulo Galvão.

No Reino Unido, os DPAs existem apenas desde 2014, se aplicam a crimes econômicos e dependem de autorização e supervisão judicial. “Eles permitem a uma empresa a total reparação pelo comportamento criminoso sem os danos colaterais de uma condenação”, explica o site do SFO. No Brasil, o acordo é apenas cível.

Nome aos bois
“Isso que foi assinado aqui no Brasil é qualquer coisa, menos acordo de leniência. A lei brasileira estabelece que o acordo de leniência é assinado entre empresa e o ente lesado da administração pública. Ponto final”, critica o ministro Gilson Dipp, aposentado do Superior Tribunal de Justiça e coautor de um livro em que faz um raio-X da Lei Anticorrupção, que definiu os acordos.

O ministro é um crítico da postura do MPF de assinar acordos que envolvem atos de improbidade. Para ele, trata-se de “um expansionismo das atribuições do Ministério Público sem previsão em lei”. “Chamem de qualquer coisa, de termo de ajustamento de conduta, mas não de acordo de leniência. Se a administração, no caso federal, representada pela CGU, não foi acionada para as negociações, esse acordo não é de leniência. Além de não ter segurança jurídica alguma.”

Segundo Dipp, “os reflexos e as decorrências desse acordo interessam apenas ao Ministério Público, e não vinculam mais ninguém. Até mesmo o TCU pode dizer que foi devolvido muito pouco dinheiro, por exemplo”.

O procurador Paulo Galvão não discorda das conclusões de Dipp. Por e-mail, disse que “o MPF transaciona apenas as penalidades que lhe competiriam pleitear em juízo — no caso, as penalidades da lei de improbidade administrativa”. “Para tanto, o MPF leva em consideração a existência de interesse público na assinatura de um acordo, tendo em vista o potencial de ampliação das investigações e a relevância do ressarcimento ao erário.”

Só que a competência de avaliar o dano ao erário também é do TCU e da própria União, reclama Dipp. Para ele, o MPF deveria ter chamado a CGU para participar das negociações. “O problema é que os órgãos estatais, especialmente os do Legislativo, mas incluo os do Executivo e até mesmo alguns do Judiciário, estão anestesiados por procedimentos louváveis do MPF, mas questionáveis do ponto de vista legal e constitucional.”

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