Segunda Leitura

Novos tempos na judicialização das políticas públicas

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15 de janeiro de 2017, 7h00

Sérgio Vieira de Mello, vitimado enquanto administrava as forças de paz da ONU no Iraque pós-Saddam, disse certa vez que “a justiça e a caridade (aqui sinônimo de fraternidade) têm como origem comum o valor da pessoa humana. Mas enquanto a primeira procura definir, determinar de uma maneira estrita os deveres que o respeito deste valor nos impõe, a segunda concebe estes deveres sob a forma puramente afetiva de uma tendência sentimental, traduzindo-se por gestos filantrópicos” (Pensamento e Memória. Saraiva. 2004).

Com o nascimento do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) e o incremento da intervenção estatal em vários setores sociais, houve uma ampliação do rol de direitos que passaram a ser exigidos do Estado pelo cidadão. Dentro da divisão dos poderes, coube ao Legislativo a primazia no controle da intervenção mencionada.      

Desde a formação do Estado moderno, busca-se a qualificação da função do Poder Judiciário. Os dois principais modelos têm como berço o sistema americano construído a partir da independência e o francês moldado na Revolução Francesa. A fundamental diferença está em que o sistema francês reconheceu a função do Poder Judiciário enquanto Justiça comum, mas deixou de lhe atribuir poder político; ao passo que o modelo americano, além de reconhecer a função de julgar, também o qualificou como poder político[1].

A intervenção do Judiciário dos Estados Unidos em questões de politicas públicas sempre ocorreu com mais frequência que no caso do europeu, enquanto o Judiciário brasileiro e o da América Latina apenas recentemente passaram a atuar com maior vigor na matéria.

Alexandre Hamilton, em 1787, escreveu que o Judiciário, dada a natureza de suas funções, seria o menos perigoso dos ramos de poder. Porém, para alguns, o estabelecimento de políticas públicas por parte do Judiciário poderia ser uma deturpação da democracia, e mesmo  passando esta de uma sistema de governo para um método de realização de objetivos sociais, ainda encontra resistências na visão de o Judiciário poder contribuir com o aprimoramento das decisões atinentes à melhoria do sistema. O justice Antonin Scalia, da Suprema Corte dos Estados Unidos, recentemente falecido, costumava combater a atuação dos juízes federais e dos próprios membros da Corte Suprema criticando a leitura e interpretação da Constituição como um documento vivo que sofreria mudanças constantes.

Observe-se, porém, que cientistas políticos destacam que a democracia, em sua plenitude, com instituições funcionando a todo vapor, é um pressuposto ao fenômeno da judicialização da política, que dificilmente ocupa espaço em regimes fechados.

Nos Estados Unidos, a presença das cortes nesse campo é antiga, talvez em virtude da ausência de previsão para determinadas questões no corpo da Constituição e na legislação norte-americanas. E, assim, direitos foram criados ou restringidos. Convém lembrar que, em dado momento, a Suprema Corte chancelou a proibição de negros frequentarem determinados lugares, utilizarem o transporte público, serviços públicos e escolas, que eram reservados aos brancos (Dred Scott vs. Sanford, 1857), chegando mesmo a declarar inconstitucionais normas que teriam uma avanço social. Com mudanças na composição da corte, com a Presidência dos juízes Warren (de 1953 até 1970) e Burguer (até 1973), houve mutação no pensamento, e direitos passaram a ser assegurados aos negros (Brown vs. Board of Education, 1954), procedimentos criminais, com a previa advertência aos detidos de seus direitos constitucionais de silêncio e de assistência jurídica, igualdade de gênero, proteção à intimidade e privacidade e o direito à interrupção da gravidez[2].

No caso da União Europeia, o seu Tribunal de Justiça, com a integração, teve a supremacia para conduzir o processo em sua área com a estreita ajuda das cortes locais, ostentando a privilegiada atribuição de interpretar os tratados (Roma, Amsterdam, Maastricht, Lisboa), auxiliando na promoção da integração econômica e na proteção dos direitos humanos. Agindo assim, os seus juízes assumiram a responsabilidade de auxílio no processo de integração mesmo nos momentos em que faltava um consenso político[3]. Não tardou e surgiram conflitos entre as ordens constitucionais nacionais e as regras da União, com o tribunal comunitário decidindo pela prevalência das regras supranacionais.

Em 1993, a ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher afirmou que “tinha aversão a algumas decisões da Corte Europeia”. Concedia, assim, sua voz para uma parcela que entendia que a judicatura da União Europeia estava solta, agindo com ativismo judicial.

Na maior parte dos sistemas constitucionais, o Judiciário sempre atuou de modo negativo, ou seja, agia após a violação de um direito, por meio da coerção, até que houvesse o cumprimento efetivo. Com o tempo e as mudanças, ocorreu a transferência de competências para os julgadores, que passaram a apreciar questões tipicamente de cunho político. O problema surge no instante em que os julgadores passam da função subsidiária de fiscalização das decisões alheias para o exercício pleno de outras competências, agindo fora da devida razoabilidade e congruência.  

Buscando distanciar justiça de caridade, torna-se necessário um equilíbrio, cabendo ao Judiciário a verificação dos resultados, deixando ao Executivo a iniciativa de decisões relativas à implementação das políticas públicas dentro da suas competências técnicas, ofertando à coletividade a complementação de seus direitos sociais.                     

Nosso país, ainda com uma constituição jovem na idade e envelhecida pelas sucessivas reformas ao bel prazer dos governos, vem também passando por sua fase de incremento da Justiça nos assuntos que, na teoria original, seriam de outros poderes. Atravessamos fases de ajustes, o país não conseguiu consolidar-se ainda em vários aspectos sociais, econômicos e políticos, e em alguns momentos o Judiciário vem agindo com maior ingerência, mas sempre tentando funcionar em prol da sociedade. Se excessos eventualmente parecem ocorrer, o caminho virá natural e serenamente, com decisões motivadas e providas da imprescindível razoabilidade, eis que o interesse público deve sempre prevalecer, por ser o norte natural dos que atuam nos vários setores da administração pública.


[1] Zanoni, Luciana. O Judiciário e a Governança Democrática dos Recursos Hídricos na Região Metropolitana: Uma abordagem a partir do caso Matanza Riachuelo. São Paulo. 2015.   
[2] BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. RDE. Revista de Direito do Estado, v. 13, 2009, p. 71 -91.
[3] Vlad, Roman. Judicial Policymaking in the supranational context – The European Unionand its experience.  Global Political Studies.2014  

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