Violação de prerrogativas

Proposta de ministro de gravar conversas entre advogados e presos é contra a lei

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12 de janeiro de 2017, 14h04

O ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, defendeu a gravação de conversas entre advogados e presos em penitenciárias de segurança máxima. Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o constitucionalista afirmou que essa é uma forma de cortar a comunicação de líderes de facções criminosas com os demais integrantes das organizações e, consequentemente, enfraquecê-las. Segundo ele, a medida é tomada em prisões de outros países.

Rovena Rosa/ Agência Brasil
Para Alexandre de Moraes, gravar conversas de presos com advogados é caminho para enfraquecer facções.
Rovena Rosa/ Agência Brasil

Contudo, advogados ouvidos pela ConJur repudiaram a sugestão de Moraes. De acordo com os especialistas, a proposta viola a Constituição Federal e o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994). O artigo 133 da Carta Magna estabelece que o advogado é “inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão”. Já essa norma, em seu artigo 7º, determina que é um direito do advogado “a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia”.

Em nota, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa apontou que “em vez de se concentrar nas questões reais do problema [do sistema carcerário], o ministro decidiu criminalizar uma categoria profissional inteira”.

Segundo a entidade, “o fato de o preso pertencer a uma facção não coloca seu advogado automaticamente no banco dos réus”. Além disso, o IDDD disse ser “lamentável o uso demagógico e populista do momento para a assacar contra a credibilidade da advocacia brasileira, que há muito luta, em sua esmagadora maioria, por um sistema prisional mais humano e consentâneo com a lei”.

Para o jurista Lenio Streck, que é colunista da ConJur, a ideia de Alexandre de Moraes é “absolutamente” contra a Constituição. “O que o nosso ministro quer é graduar as inviolabilidades de acordo com as circunstâncias. Porém, o advogado tem inviolabilidade com seu cliente em todas as circunstâncias. Até o porteiro do Supremo Tribunal Federal iria declarar essa proposta inconstitucional.”

Já o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil José Roberto Batochio, o pai do Estatuto da Advocacia, classificou a proposta de “franca agressão à prerrogativa básica” da profissão. “Se continuarmos nessa progressão, o próximo passo vai ser acabar com o sigilo do confessionário do padre, do consultório do psiquiatra, do ginecologista, do urologista. Essa ideia é um nonsense total”, criticou.

Na opinião do criminalista Marcelo Feller, a conversa entre advogado e cliente só pode ser gravada se houver fortes indícios de que o profissional está envolvido na prática de crimes. Mesmo assim, a medida depende de requerimento da polícia ou do Ministério Público e de autorização judicial. “Não se pode gravar toda e qualquer conversa de um advogado com seu cliente. É espantoso que um constitucionalista tenha uma ideia dessas”, declarou Feller, fazendo menção ao fato de que o ministro da Justiça é professor de Direito Constitucional da USP e da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

A proposta “é uma temeridade e, pior, de cunho discriminatório”, afirma o criminalista Fabrício de Oliveira Campos, sócio do escritório Oliveira Campos & Giori Advogados. Num lapso de baixo "policialismo", segundo ele, a fala agrega aquela concepção pedestre que coloca num mesmo patamar o advogado e seu cliente, além de nivelar o cliente desse advogado à percepção genérica de pessoa perigosa.  

“Reduzidos a essa margem, o direito ao advogado e a inviolabilidade do sigilo profissional tornam-se descartáveis. Além disso, a proposta coloca o advogado e sua atividade como ameaças ao poder do estado e à segurança pública, bem no molde dos discursos totalitários.”

Violação de Moro
O juiz responsável pela operação "lava jato" em Curitiba, Sergio Moro, desrespeitou, em 2016, a inviolabilidade profissional de Roberto Teixeira, advogado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e do seu escritório.

Moro quebrou o sigilo telefônico do petista, mas também de Teixeira e do telefone central da sede do escritório dele, o Teixeira, Martins e Advogados, que fica em São Paulo. Com isso, conversas de todos os 25 advogados da banca com pelo menos 300 clientes foram grampeadas, além de telefonemas de empregados e estagiários da banca.

A interceptação do número foi conseguida com uma dissimulação do Ministério Público Federal. No pedido de quebra de sigilo de telefones ligados a Lula, os procuradores da República incluíram o número do Teixeira, Martins e Advogados como se fosse da Lils Palestras, Eventos e Publicações, empresa do ex-presidente.

De nada adiantaram os dois ofícios enviados pela Telefônica em fevereiro e março ao juiz Sergio Moro informando que ele havia autorizado a interceptação do telefone central do escritório Teixeira, Martins e Advogados. O responsável pelos processos da operação “lava jato” em Curitiba enviou um novo documento ao Supremo Tribunal Federal dizendo que a informação só foi notada por ele depois que reportagens da ConJur apontaram o problema.

Intimidade devassada
Na entrevista à Folha, Alexandre de Moraes também criticou o fato de se permitir “visita íntima [a líderes de facções] sem que o Estado possa filmar”. Na opinião do presidente do IDDD, Fábio Tofic Simantob, a sugestão de que os encontros amorosos de detentos sejam gravados é “voyeurismo estatal”.

“Essa espécie de voyeurismo estatal é mais uma medida demagógica do governo, viola mais um direito do preso e de sua família e segue na mesma política fracassada de violação da lei que nos trouxe para o caos que estamos.”

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De acordo com Lenio Streck, gravar visitas íntimas é ilegal e inconstitucional.
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“É a mesma coisa de colocar câmeras dentro dos banheiros dos colégios: ilegal e inconstitucional”, avaliou Lenio Streck. A seu ver, o ministro pode até propor o fim das visitas íntimas para presos de alta periculosidade. No entanto, se elas são permitidas, é inadmissível que o Estado queria saber o que se passa nelas.

Irônico, o advogado afirmou que, em vez dessas propostas, Alexandre de Moraes poderia proibir o celular nos presídios — que são ilegais, mas facilmente encontrados em qualquer estabelecimento desse tipo.

Nessa mesma linha, Marcelo Feller destacou que a sugestão “parece piada”. “É tão surreal a proposta que chega a ser cômica.”

Modelo de quê?
O ministro da Justiça ainda apontou o sistema penitenciário de São Paulo como um modelo a ser seguido com relação ao trato de líderes de facções criminosas. Contudo, a maior facção do Brasil, o Primeiro Comando da Capital (PCC), surgiu em presídios paulistas na década de 1990. De lá pra cá, a organização fortaleceu-se e expandiu suas atuações para diversos outros estados.

Mais uma vez, Streck ironizou a declaração de Alexandre de Moraes: “Se o conceito de modelo é quem criou [as facções criminosas], então o ministro está certo”. Também sarcástico, Tofic Simantob disse que “o estado de São Paulo é um modelo muito eficiente de como fortalecer o crime organizado dentro do presídio e produzir uma facção criminosa de alcance nacional”.  

Pior: tudo indica que o governo paulista tem um acordo “por baixo dos panos” com o PCC, lembrou Marcelo Feller. Conforme o pesquisador da Universidade de Cambridge (Inglaterra) Graham Willis, a taxa de homicídios do estado (atualmente de 8,73 homicídios por 100 mil habitantes) só caiu na década passada porque São Paulo, via pacto de não agressão, deixou que a facção dominasse as favelas.

Batochio argumenta que o modelo a ser seguido não é o de São Paulo, e sim o desencarceramento. Segundo o ex-presidente da OAB, a prisão deve ser reservada apenas para os criminosos perigosos. Somente assim será possível evitar a superlotação dos presídios e massacres como os ocorridos em Manaus, Boa Vista e Patos (PB), que “degradam a imagem do Brasil no exterior”.

Feller tem visão semelhante e defende que o foco não seja a punição, mas a ressocialização dos detentos. Se há um modelo estadual a ser seguido, sustenta, é o do Espírito Santo, que investiu em audiências de conciliação, educação dos presos e reinserção deles no mercado de trabalho. Dessa forma, o estado, que tinha o sistema carcerário mais superlotado em 2003, passou a ser o último nesse ranking em 2014, como informou a Folha.

Mais presídios
Em reação aos massacres nos presídios, o presidente Michel Temer prometeu repasses de R$ 800 milhões para a construção de, pelo menos, uma nova penitenciária em cada estado, além de cinco novas cadeias federais para criminosos de alta periculosidade.

Na mesma linha de seu chefe, Alexandre de Moraes afirmou em dezembro que lançará em breve um plano de redução de homicídios focado em ações policiais, sem a participação de pastas da área social. Entre as medidas estarão o aumento do tempo necessário para progressão da pena (atualmente, o condenado deve cumprir um sexto de sua punição para ir para outro regime; se cometeu crime hediondo, mas é réu primário, dois quintos; se já tivesse antecedentes, três quintos) e a intensificação do combate às drogas.

Guerra sem sentido
Com os massacres ocorridos em presídios, já são pelo menos 98 detentos mortos desde o começo de 2017. Conjugada com a ineficiência estatal, tudo indica que as execuções resultaram de conflitos entre as facções rivais que controlam paralelamente os presídios. Mas esses assassinatos em penitenciárias só continuam ocorrendo pela insistência na chamada guerra às drogas, que sobrecarrega o sistema carcerário, fortalece as organizações criminosas e não reduz o uso de entorpecentes.

Especialistas ouvidos pela ConJur acreditam que o cenário sanguinário, tanto dentro quanto fora das prisões, só mudará de verdade com a regulamentação de todas as drogas. Com isso, os entorpecentes não seriam mais considerados uma questão de segurança, mas um assunto de saúde pública, como já ocorre com o tabaco e o álcool.

*Texto atualizado às 18h26 do dia 12/1/2017 para acréscimo de informações.

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