Opinião

Recebimento da denúncia deve ser embasado por adequada fundamentação

Autor

  • Tiago Bitencourt De David

    é juiz federal substituto da 3ª Região mestre em Direito (PUC-RS) especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (Escola Verbo Jurídico) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM Toledo/Espanha).

10 de janeiro de 2017, 6h34

Há muito discute-se a respeito da (des)necessidade de fundamentação do ato judicial que recebe a denúncia/queixa. De um lado, a jurisprudência majoritária[1] sustenta tratar-se de mero despacho, despido, portanto, de conteúdo decisório. De outro, caudalosa doutrina de viés mais reflexivo e crítico[2], bem como alguns julgados representativos de arejada visão minoritária defendem a imperatividade da fundamentação, sem a qual a decisão estaria acometida de nulidade. Não se trata de um debate estéril, sem consequências práticas, mormente quando tem-se em vista que agora há uma decisão que recebe a inicial acusatória e outra que aprecia a resposta à acusação, decidindo se é caso ou não de absolvição sumária. Afinal, o artigo 93, IX, da CF/88 impõe a fundamentação como dever jurisdicional e garantia das partes e da sociedade[3], sequer admitindo-se fundamentação implícita[4].

Admitir a ausência de fundamentação implica na aceitação de recebimento de denúncias/queixas até mesmo por meio de mera aposição de carimbos com dizeres do tipo “Recebo a denúncia, cite-se.”. Defender que o recebimento é feito por simples despacho implica em negar a cognição sobre a peça que instaura o exercício da ação penal. Advogar que se trata de ato sem teor decisório, negando-se a existência de juízo sobre a exordial acusatória implica em ter-se como indiferente a situação de outrem (o acusado) antes e após tal ato.

Por tudo isso e por outros fundamentos penso que o recebimento deve sim ser embasado por adequada fundamentação, ainda que sucinta.

O recebimento da denúncia/queixa colocará o acusado na situação de réu. Isso é incômodo e de modo algum pode ser tido como algo neutro, indiferente a esfera do denunciado. Como bem aponta Renato Brasileiro[5], tanto é ato que tem consequências que implica em nada menos do que a interrupção da prescrição (artigo 117, I, do CP).

O ato em tela tem forte teor decisório, mesmo que feito em sede de cognição sumária, eis que é dever do magistrado o de rejeitar a peça vestibular quando ausentes os requisitos mínimos para sua validade, dentre os quais a justa causa para a ação penal. A recusa ao juízo preambular implica em negativa de realização de ato que deve ser feito de ofício, colocando-se o acusado ilegitimamente na posição de réu, sem que se tenha feito a filtragem exigida pelo sistema jurídico.

A aposição de carimbo[6] ou de decisões genéricas, sem qualquer menção ao caso concreto, implica no descumprimento do dever de fundamentação. Faz parte da função jurisdicional verificar a regularidade da exordial, inclusive no que tange a existência de justa causa, não se podendo deixar o cidadão ao alvedrio de qualquer espécie de imputação criminal.

Ser réu não é uma posição neutra, devendo tal sujeição ser devidamente fundamentada pelo Estado, sob pena de ilegitimidade do constrangimento causado pelo processo penal. Não se defende aqui nem a impunidade, nem o abolicionismo penal, mas sim o de que o exercício do jus puniendi não pode ser exercido sem a correspondente legitimação.

A cognição, ainda que sumária, da acusação permite que se cortem já de início as pretensões infundadas, liberando-se a pauta de audiências e melhorando-se a qualidade do acervo, focando-se naquilo que realmente deve receber juízo aprofundado.

A citação acrítica do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do HC 70.763 que grassa por aí certamente revela a fragilidade da posição oposta. É que naquele julgado a desnecessidade de fundamentação do recebimento da denúncia foi mero obiter dictum, pois in casu, segundo o próprio ministro Celso de Mello que foi o relator do julgado:

 “De qualquer maneira, e mesmo tendo presente a jurisprudência desta Suprema Corte que tem ressaltado a desnecessidade de motivação para o ato de recebimento da denúncia, é relevante observar que, na espécie, houve, efetivamente, manifestação fundamentada quando da prolação do ato judicial em questão.” 

Ou seja, a invocação do julgado como paradigma é falha, pois naquele caso houve sim a fundamentação do ato judicante sob análise. Porém, não se desconhece que o entendimento do STF realmente é no sentido da desnecessidade de fundamentação do recebimento da denúncia.

Veja-se que a fundamentação do recebimento da exordial não interessa apenas à defesa, mas até mesmo à acusação — tal como bem exposto em: TRF3, apelação criminal 0006453-55.2010.4.03.6106/SP, Rel. Des. Fed. Paulo Fontes, julg. em 6/7/2015 —, quando foi declarada a nulidade por falta de fundamentação em relação a omissão acerca da situação de um dos denunciados quando do recebimento da denúncia, repudiando-se a rejeição tácita em relação ao acusado.

Por isso tudo, parece-nos acertadíssimo o posicionamento vazado em arestos tal como o que segue assim ementado:

3- A DECISÃO QUE RECEBE A DENÚNCIA  NÃO É DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE. É DECISÃO INTERLOCUTORA SIMPLES, COM A MESMA NATUREZA, POIS, DA  QUE DECRETA A PRISÃO PREVENTIVA, DA  QUE DECIDE SOBRE EXCEÇÃO DE SUSPEIÇÃO, SOBRE FIANÇA, SOBRE INCIDENTE DE FALSIDADE, ENTRE OUTRAS. ASSIM, DEVE SER FUNDAMENTADA, PARA ENSEJAR O CONTROLE EXTRA-PROCESSUAL E POSSIBILITAR O EXERCÍCIO DA  DEFESA. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 93, IX, E 5º, LV, DA  CF.

4- ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA, A FIM DE ANULAR A DECISÃO QUE RECEBEU A DENÚNCIA , PARA QUE OUTRA SEJA PROFERIDA, MOTIVADAMENTE. (TRF3, HABEAS CORPUS – 6951, Relatora Desembargadora Federal Sylvia Steiner, julgado em 15.06.1999)

Isso posto, cumpre ter em vista que diante do atual procedimento-processual penal a situação tornou-se ainda mais grave, pois se não estivermos absolutamente atentos existe um risco do automatismo chegar até a segunda decisão, de forma a rejeitar-se pura e simplesmente, sem o menor exame da resposta à acusação, o pleito de absolvição sumária. É chegada a hora de entendermos a gravidade da situação e não mais passar a tratar o acusado como se somente merecesse atenção quando da sentença. O processo penal, por si só, coloca o acusado em posição incômoda, cuja sujeição depende da adequada justificação pelo Estado.

Admitir-se que a fundamentação pode ser sucinta, isso é algo que bem diferente de chancelar-se uma manifestação jurisdicional genérica, padronizada, desconforme ao caso concreto. A concisão é até inerente ao tipo de juízo, dada a sumariedade da cognição feita ao início do feito e do que se deve provar, não se podendo cercear o direito da acusação de provar sua versão mediante o estancamento prematuro do processo penal. Note-se que a extinção antecipada depende de um quadro probatório que revele a injustiça do pleito, não sendo despida de sentido a exigência de “manifesta” causa excludente de ilicitude ou de culpabilidade (exceto a inimputabilidade) ou, ainda, o fato “evidentemente” não caracterizar infração penal. Isso porque o contraditório e a ampla defesa existem para ambos polos do processo e deles decorre o direito de provar, algo que é mutilado quando se fulmina açodadamente uma ação penal.

Revela-se juridicamente inseguro viver em um ambiente no qual sucedam-se duas decisões, uma delas após manifestação defensiva específica, nas quais o caso concreto não receba a devida atenção, postergando-se indefinidamente a análise que então virá a ocorrer em sentença. Essa deficiência na promoção do processo justo resulta inexoravelmente em uma insegurança existencial e deslegitima a angústia inerente a condição de processado. Então mostra-se bastante salutar que já se atente para o caso de início, até mesmo para decidir-se manter o fluxo processual penal, chegando-se ao final da cognição com um melhor conhecimento da causa, algo difícil quando não se sabe sequer do que se trata o processo até que se chegue a data da audiência.

Assim, decisões carimbadas ou genéricas em nada contribuem para que o jus puniendi se legitime, devendo haver a fundamentação concreta, pertinente ao caso.


[1] Posição pacífica do STF, cujo exemplo recente foi o julgamento do AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO 845.341. Tal entendimento é francamente dominante nos demais tribunais.

[2] Exemplificativamente: BRASILEIRO, Renato. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013, p. 1.284 e 1.285; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. 2ª ed. São Paulo: RT, 2013, p. 170-174; GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o pacto de São José da Costa Rica. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 235 e 236.

[3] Nesse sentido: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 74 e 75.

[4] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 708. MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. 2ª ed. São Paulo: RT, 2013, p. 402.

[5] BRASILEIRO, Renato. Curso de Processo Penal. Niterói: Impetus, 2013, p. 1.285.

[6] Denunciando tal prática: LUCCHESI, Guilherme Brenner. A inconstitucionalidade do carimbo (ou da necessidade de fundamentação do juízo de admissibilidade da acusação).  Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br/dspace/bitstream/handle/1884/30893/M%201089.pdf?sequence=1

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    é juiz federal substituto da 3ª Região, mestre em Direito (PUC-RS), especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo/Espanha).

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