Ideias do Milênio

"A importância da cobertura jornalística ao vivo nunca foi tão grande"

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9 de janeiro de 2017, 8h16

Reprodução/IFPMA
David Brennan [Reprodução/IFPMA]
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Entrevista concedida pelo pesquisador de mídia e autor do livro TV Conectada David Brennan ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio — programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

O mundo vive a era digital, a era da hipercomunicação, a era da hiperconectividade, e dentro dela, a televisão. Não são poucos aqueles que dizem que o digital veio para matar o veículo que está aí nos lares do Brasil e do mundo há décadas fazendo tanto sucesso, mas também há aqueles pesquisadores que garantem: a televisão jamais viveu uma era tão dourada. Entre esses está o inglês David Brennan, autor do livro chamado TV Conectada, em que ele diz que não só a TV não está morrendo, como ela está vivendo uma fase que tem tudo para durar.

Marcelo Lins — Qual é a sua ideia de televisão? Do que você fala quando fala de televisão?
David Brennan —
Para mim, televisão é principalmente conteúdo. Há uma forma de conteúdo que nós identificamos como TV. Eu chamo de entretenimento audiovisual de narrativa de formato longo. Se o encararmos assim, poderemos identificar esse conteúdo sempre que o virmos. E uma das coisas interessantes é que já estamos na era digital há 25 anos, mas a TV ainda é reconhecível. Um certo tipo de programa — os gêneros dos programas, a natureza episódica da televisão — é algo que, de alguma forma, resistiu à passagem do tempo. E, ao mesmo tempo, usa essas tecnologias a seu favor para ficar cada vez melhor.

Marcelo Lins — E, como você disse, em 25 anos de era digital, a TV demonstra uma resiliência incrível, porque ela agora está em todos os lugares. Há não muito tempo, muita gente dizia, e ainda diz hoje, que o digital mataria a TV. Não é isso que estamos vendo, mas sim o oposto. Nos últimos anos, para não voltarmos muito no tempo, temos visto a indústria do cinema recorrendo à televisão em busca de novos astros, novas ideias e novos conteúdos. Temos visto também os magnatas digitais recorrendo à TV para buscar produtores de conteúdo. De onde acha que vem essa resiliência da TV? É da qualidade do conteúdo?
David Brennan —
A resiliência da TV vem do que chamo de sua força analógica. Por “analógica” eu me refiro às coisas relacionadas ao comportamento humano em vez de apenas tecnologia. E o ser humano é famoso por nem sempre obedecer. Então, quando o digital diz: “Isto é mais eficiente que aquilo. É melhor você fazer isto”, o ser humano diz: “Espere um pouco. Eu assisto à TV de um certo jeito”. É uma experiência compartilhada, não é solitária. Em nossa casa, o ambiente principal foi todo pensado ao redor da TV e temos horários preferidos de uma programação à qual assistimos tanto individualmente como em família. Todas essas forças analógicas, que têm a ver com como as pessoas vivem e com como querem se divertir, principalmente após um dia longo no trabalho, cuidando da casa, estudando ou o que seja, essas coisas não mudaram. Então eu acho que esses são os poderes da TV — muitas vezes poderes ocultos —, porque passamos muitos anos sem reconhecer esses poderes que mantiveram a TV relevante e ainda fazem dela o primeiro destino de entretenimento das pessoas.

Marcelo Lins — Você nasceu no Reino Unido, construiu uma carreira longa nos últimos 20 anos, estudando profundamente a TV e todos os seus aspectos. Acha que o modelo britânico de TV pode ser replicado? Sabemos que algumas de suas especificidades não têm paralelo no mundo. Eu me refiro ao financiamento à TV pública no Reino Unido e também à forma de contar histórias, de dar notícias. Acha que isso pode ser replicado ou é um modelo inicial ao qual pode-se acrescentar outras coisas de outros países?
David Brennan —
O que tenho a dizer sobre isso é que o Reino Unido é a nação digital mais avançada do mundo. Temos os maiores níveis de busca, redes sociais, varejo on-line, entretenimento sob demanda e tecnologia em geral. Isso significa que o país se torna um laboratório fascinante, digamos assim, e nos permite vislumbrar o futuro de muitos outros países que ainda não atingiram esse nível de maturidade digital. E eu acredito que, se a TV conseguir não apenas sobreviver, mas prosperar com esse nível de competição digital, os mesmos princípios serão aplicáveis em qualquer lugar do mundo.

As pessoas precisam de algo para compartilhar e experimentar juntas. A TV pode garantir o combustível social dessas conversas — Trecho de TV Conectada de David Brennan.

Marcelo Lins — Uma coisa interessante nas semelhanças entre a TV brasileira e a britânica é que a paixão por seriados e novelas, se pensarmos na longevidade de EastEnders no Reino Unido e no sucesso que nossas novelas fazem toda noite com milhões de pessoas assistindo, vemos que mesmo com toda essa tecnologia disponível, as pessoas tendem a voltar ao que já conhecem para ver o que já de novo no que elas já conhecem. Acha correta essa interpretação? Há certas coisas que as pessoas querem ver da forma como sempre viram?
David Brennan —
Acho que são duas coisas: uma é a familiaridade. E as novelas são um fenômeno muito interessante, porque elas contam histórias que fazem as pessoas voltarem noite após noite. E só é possível criar esse nível de lealdade se algo na história e na forma como ela é produzida e apresentada atrai a audiência. E, desde que cheguei ao Brasil, fiquei muito interessado. Sempre achei que as novelas tivessem padrões baixos de produção em comparação com outros produtos. E assisti a alguns capítulos, e apesar de serem muitos episódios durante muitas noites, em parte graças às vantagens digitais que temos hoje em termos de produção, algumas novelas parecem cinema.

Marcelo Lins — Quando falamos em conteúdo, e se a TV é conteúdo, quero que você compartilhe sua opinião sobre a importância de se contar bem uma história.
David Brennan —
Contar histórias é fundamental para a condição humana. Nossa espécie evoluiu através de milhares e milhares de anos e contar histórias era parte fundamental da cultura. As pessoas se sentavam ao redor da fogueira e alguém contava uma história. Acredito que foi assim que nossa espécie evoluiu. E hoje se estuda muito como contar histórias mantém as pessoas interessadas, concentradas e leais ao conteúdo. Eu pesquisei muito isso e, psicologicamente, as pessoas aprendem através de histórias contadas. Todo tipo de programa é uma forma de narrativa. Drama, algumas comédias, documentários, mas também reality shows, noticiários, esportes. Todos contam histórias e acho que é isso que faz as pessoas voltarem aos programas para descobrir o que vai acontecer em seguida.

Marcelo Lins — O que podemos concluir a partir do que você disse é que é preciso caprichar na forma de contar histórias, não apenas ficcionais, mas notícias, o aspecto jornalístico da TV, que também é muito importante. Talvez precisemos nos esforçar mais para criar novas formas de contar as mesmas histórias que as pessoas acompanham diariamente num canal de notícias 24 horas, como é a GloboNews. As pessoas precisam saber que há uma forma melhor de contar a mesma história, mesmo que ela não seja de ficção.
David Brennan —
Com certeza. Temos que parar de achar que contar histórias é ficção, porque não é. Podemos contar histórias sobre o mundo real, mas, como você disse, de uma forma que atraia as pessoas emocionalmente. O que eu acho é que as emissoras, mesmo em áreas como o noticiário, têm duas grandes vantagens: criatividade e pessoas que tentam contar essas histórias há muitos anos e estão sempre procurando novos ângulos e formas de contá-las. Agora temos a tecnologia e podemos levar câmeras a lugares inéditos. Podemos misturar coisas de formas inéditas, podemos usar imagens geradas por computador para explicar uma coisa ou gráficos para ilustrar uma informação de forma mais didática. E acho que essa mistura de criatividade e inovação através da tecnologia já está tendo uma influência imensa em como a TV conta suas histórias.

Marcelo Lins — Mesmo se admitirmos, e acho que podemos admitir, que a TV está vivendo uma era interessante e desafiadora na produção de séries, novelas e até mesmo com novas ideias no jornalismo e por aí vai, sabemos que existe um desafio específico, que é não perder o público mais jovem que, como sabemos, está diante de um volume imenso de informações que vêm de toda parte e em todos os aparelhos, seja um celular, um tablet, a TV, o computador ou a própria escola. O que a TV precisa fazer para acompanhar o ritmo dessa geração jovem e digital?
David Brennan —
Acho que ela precisa fazer duas coisas: uma delas é atraí-los individualmente. Há muitos programas voltados a faixas etárias específicas e a grupos de interesse específicos. E isso vai atrair os jovens, quer eles assistam na TV, no YouTube ou no celular através de um serviço de assinatura. Disponibilize tudo onde quer que esse público esteja, porque ele está começando a vida, está experimentando, muitas vezes não está em casa perto de um aparelho de TV. Pela experiência que tenho com meu filho adolescente, eles ficam trancados no quarto assistindo a vídeos e tal. Mas às vezes eles querem compartilhar experiências com os pais. Então é preciso achar os programas a que todos podemos assistir juntos. Em muitos casos eles vão dizer: “Isso não é para mim”, mas já vi isso acontecer, por exemplo, com shows de talento. Coisas como The X Factor.

Marcelo Lins — Ou The Voice, que é internacional.
David Brennan —
E conheço muito bem. É uma ótima oportunidade para filhos e pais assistirem juntos. Eles podem ter gostos diferentes e comentários diferentes a fazer sobre o que está sendo apresentado, mas isso faz parte da vida em família. De muitas formas, essas oportunidades se tornaram mais escassas, porque hoje muitas famílias não fazem mais refeições juntas, elas não fazem mais juntas coisas que gerações anteriores faziam. Então se as emissoras de TV conseguirem atrair um segmento mais amplo da população, vão conseguir reunir jovens e velhos em certos tipos de programas. Eu e meu filho vemos Game of Thrones e futebol. Em outra família pode ser The Voice ou um certo documentário. É um grande desafio: a TV tem que ter tudo para todos e também coisas específicas para ocasiões específicas.

Marcelo Lins — Já falamos sobre a importância de um bom conteúdo para a TV e como isso é importante para a resiliência da TV. Outra coisa importante na minha opinião, e quero saber se você concorda comigo, é a cobertura ao vivo, tanto de notícias, mas às vezes também de shows de música ou algo assim. Qual é a importância da cobertura ao vivo e como podemos aproveitar a tecnologia ao máximo para aperfeiçoar as coberturas ao vivo?
David Brennan —
É uma ótima pergunta, e a importância da cobertura ao vivo nunca foi tão grande. Uma coisa fascinante acontece na TV: depois que um programa vai ao ar ao vivo, ele perde valor, e as pessoas querem estar no momento, em parte porque querem compartilhar o momento com outros. Na programação jornalística, uma coisa ótima é o jornalismo cidadão. As pessoas podem filmar coisas com o celular e ajudar na cobertura jornalística. E os avanços tecnológicos tornam esse tipo de programação ainda mais poderoso, porque acontece no momento. Estamos nos tornando uma sociedade mais veloz, tudo acontece o tempo todo. Algo que aconteceu 4 horas atrás virou passado. O que importa é o momento.

Marcelo Lins — Se analisarmos a história da TV, na Europa e também no Brasil, veremos que a TV é uma ferramenta educacional importante e também uma ferramenta importante para divulgar e discutir diferentes pontos de vista. Mas também sabemos que a TV pode ser usada por regimes totalitários, para que um ponto de vista prevaleça sobre todos os outros. Como acha que a TV pode contribuir cada vez mais para uma sociedade mais livre e democrática num país como o Brasil, mas também no mundo todo?
David Brennan —
Quando a BBC foi criada no Reino Unido, seus três principais pilares, digamos assim, eram educar, informar e entreter. O entretenimento era o último. O principal era a educação. E o que estamos descobrindo é que só se educa as pessoas entretendo-as. Não assistimos à TV para ir a escola, mas os produtores de TV se tornaram muito bons em encontrar maneiras de dar informações e educar o público de uma forma divertida. Vou lhe dar um exemplo. No Reino Unido nós temos muitos reality shows sobre diferentes profissões, como paramédicos, policiais, veterinários, médicos, o que seja, e o que acontece é que sempre que um programa desses vai ao ar, há um aumento imediato no número de pessoas, principalmente jovens, que começam a cogitar aquilo como possível carreira.

Marcelo Lins — Quando você vê a TV hoje e tenta imaginar o futuro, acha que vamos superar essa guerra entre o digital e a TV? Acha que eles se complementarão mais e que se a TV fizer as escolhas certas ela poderá usar o digital a seu favor e as duas coisas podem se complementar? É assim que você enxerga o futuro da TV ou tem uma grande surpresa nos esperando na esquina?
David Brennan —
Acho que vamos parar de falar em digital versus TV ou qualquer outra coisa. Por outro lado, o que torna a TV singular, o que gerou sua força, foi a habilidade de contar histórias, de criar conteúdo de alta qualidade que faz a audiência voltar. Isso nunca vai mudar. Essas habilidades se tornarão cada vez mais importantes para manter a audiência diante da tela e interessada na programação. Pelo que vi nos últimos 25 anos, principalmente nos últimos 10 anos, as emissoras de TV se adaptaram à tecnologia e começaram a usá-la de uma forma criativa e inovadora. Então ainda haverá televisão, mas não necessariamente será o digital contra a TV.

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