Opinião

Serviço de transporte da Uber tem respaldo na liberdade de profissão

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8 de janeiro de 2017, 9h14

Inicialmente deve-se dizer que a Uber, através de sua plataforma, presta um serviço que é considerado um serviço de transporte privado individual. Também pode-se observar que tal definição ainda não foi contemplada no rol de serviços de transportes previstos na Lei 12.587/2012, que trata da Política Nacional de Mobilidade Urbana.

De fato, a prestação de serviços da Uber, em sua essência, se assemelha muito ao serviço prestado pelo táxi e, consequentemente, é indiscutível que tais atividades concorram entre si. Apesar da semelhança, algumas diferenças também foram apontadas entre essas atividades e, por conseguinte, usadas para afirmar que o serviço da Uber se trata de um serviço privado individual.

É sabido também que o táxi, de caráter privado, embora não demonstre elementos essenciais para adequação à natureza jurídica de serviço público, possui alguns elementos que o caracterizam como serviço de utilidade pública, conforme se verá mais à frente em tópico próprio. A intervenção estatal nessa atividade se deu em razão da necessidade do ordenamento jurídico, e não por incapacidade do particular em executar o serviço ou pela essencialidade da própria atividade. Para este serviço, foram adotados costumes que o tornaram peculiar, como, por exemplo, a cobrança de tarifa. De fato, esse costume mundial trouxe a necessidade de se padronizar as unidades de medida, tendo em vista que a tarifa é cobrada mediante equipamento denominado taxímetro.

Trata-se, portanto, de um serviço com relevo social, desprovido, contudo, de essencialidade. Caso ocorra sua paralisação, o impacto nos sistemas de transporte é mínimo e não traz transtornos para a sociedade. Tem uma natureza suplementar dentre os serviços de transporte direcionado ao público e sua prestação não constitui dever imprescindível do Estado.

Observados tais aspectos, importa ressaltar outra premissa importante, qual seja, a de que a ausência de determinada atividade econômica em sentido estrito não culmina na vedação ao seu exercício, mas sim na possibilidade de atuação do particular. É o que se extrai do princípio da livre iniciativa, que assegura a qualquer pessoa o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização dos órgãos públicos, salvo se previsto em lei.

O princípio em questão impulsiona, no âmbito da atividade econômica, a norma geral que deve vigorar nas sociedades democráticas, baseada na liberdade e que parte da afirmação de que aos particulares é lícito fazer tudo que não seja proibido em lei.

Por outro lado, o princípio da legalidade traz uma significativa diferença no tocante à vinculação das normas jurídicas para o Estado e para os particulares, inclusive no âmbito da atividade econômica. Ao Estado só cabe fazer o que a lei imponha ou autorize, enquanto aos particulares é permitida a atuação com liberdade, ou seja, sempre que inexista vedação ou imposição legal de determinada conduta, esta poderá ser praticada. Diz-se então que aquele se encontra positivamente vinculado à ordem jurídica e este, por sua vez, negativamente vinculado à ordem jurídica.

Essa diferença se dá em virtude da concepção de Estado de Direito que garante que os direitos fundamentais devem ser preservados, impondo, desta forma, um limite à atuação do Estado e garantindo uma maior liberdade aos particulares.

Tal liberdade ganha contornos ainda mais marcantes quando relacionados à inovação. Como se sabe, a Uber é uma plataforma tecnológica que conecta diretamente demanda e oferta no âmbito digital. Nesse seguimento, a Lei 12.965/2014, que trata do Marco Civil da Internet, trouxe alguns aspectos que são importantes demonstrar neste trabalho. Já em seu artigo 2º, inciso V, a referida norma previu a livre iniciativa e a livre concorrência.

Como princípio, a lei trouxe em seu artigo 3º, inciso VIII, a liberdade de modelos de negócios promovidos na internet. E, por fim, como objetivo, em seu artigo 4º, inciso III, o diploma normativo trouxe a promoção da inovação e do fomento à ampla difusão de novas tecnologias e novos modelos de acesso.

Dessa forma, torna-se impossível condicionar a possibilidade de um particular criar um modelo de negócio com a existência de regulamentação prévia estatal da sua atividade. Além de inconstitucional, é, no mínimo, temerário reprimir a inovação social em prol do desenvolvimento econômico.

Corroborando com o que já foi mencionado até agora, o princípio da legalidade se amolda perfeitamente a esta situação, pois a ausência de regulamentação específica da Uber não implica na sua vedação, mas, sim, na possibilidade de ser exercida.

Passando-se agora à análise do transporte oferecido através da plataforma da Uber, é necessário ressaltar que, por todas as suas características, este foi considerado como sendo um serviço de transporte privado individual. Também é preciso relembrar que a Lei 12.587/2012 trata das diversas classificações de transportes – dentre elas, as classificações em público e privado.

O artigo 4º, inciso VIII, referenciou, de forma clara, o transporte público individual, não fazendo o mesmo quanto a sua modalidade privada. Entretanto, isso não significa que o legislador tenha deixado de reconhecer essa modalidade, já que o artigo 2º que traz a classificação dos transportes, reconhece o serviço de natureza pública e privada, individual e coletiva.

É certo também que o artigo 2º da Lei 12.468/2011, que regulamenta a profissão de taxista, prevê que é atividade privativa dos profissionais taxistas a utilização de veículo automotor, próprio ou de terceiros, para o transporte público individual remunerado de passageiros, cuja capacidade será, no máximo, de sete passageiros. Tal norma, ainda, definiu o serviço de táxi como transporte público individual. Entretanto, é possível perceber que tal serviço não configura propriamente um serviço público tendo em vista não preencher requisitos já analisados nesse trabalho para essa classificação.

Trata-se na verdade de um serviço de utilidade pública, que são aqueles serviços que a Administração, reconhecendo a sua conveniência para a sociedade, presta-os direta ou indiretamente através de terceiros permissionários, concessionários ou autorizatários, nas condições regulamentadas e sob seu controle, entretanto, por conta e risco dos prestadores, mediante remuneração dos usuários.

Cabe aqui ressaltar que a delegação de serviço público sob as formas de concessão e permissão exige licitação, nos termos do artigo 175 da Constituição Federal. Por essa razão, alguns autores defendem que o serviço de táxi deve ser licitado. Já a delegação de serviço público mediante autorização não faz necessária a prévia licitação, haja vista se tratar de ato unilateral, precário e discricionário.

A forma de concessão dos serviços de táxi é algo também bastante discutido na literatura. Isso se dá pelo fato de o artigo 12, alínea “a”, §§ 1º e 2º da Lei 12.587/2012 admitir que as permissões de táxi podem ser alienadas ou transmitidas.

Ainda não se chegou a um consenso se o serviço de táxi deve ser concedido mediante concessão ou permissão e, dessa forma, se deve ser previamente licitado ou se o serviço de táxi deve ser concedido mediante autorização. Por isso também reforça-se o argumento de que o serviço de táxi é um serviço de utilidade pública e não um serviço público, vez que a este último é vedado expressamente a alienação ou transmissão.

Vale dizer que, apesar da previsão do artigo 2º da Lei 12.468/2011, não se concedeu aos táxis o monopólio de toda a atividade de transporte individual de passageiros, que, nesse caso, compreende as modalidades pública e privada. Assim sendo, o serviço oferecido pela Uber, considerado privado individual, se sujeita à livre concorrência e livre iniciativa. 

Cabe aqui ressaltar que o serviço de utilidade pública se situa no campo da atividade econômica, mas se sujeita à intensa regulação e fiscalização pelo poder público. Nas palavras de Alexandre dos Santos Aragão:

[…] são atividades da iniciativa privada para as quais a lei, face à sua relação com o bem-estar da coletividade e/ou por gerarem desigualdades ou assimetrias informativas para os usuários, exige autorização prévia para que possam ser exercidas, impondo ainda a sua contínua sujeição à regulação do poder público autorizante, através de um ordenamento jurídico setorial. (ARAGÃO, 2007, p. 191-192)

Quanto aos serviços de táxi, Celso Antônio Bandeira de Mello ressalta que:

[…] os serviços prestados pelos táxis – e quanto a isto nada importa que o sejam por autônomos ou por empresas – possuem especial relevo para toda a coletividade, tal como se passa, aliás, com inúmeras outras atividades privadas, devendo por isso ser objeto de regulamentação pelo Poder Público, como de fato ocorre, mas obviamente isto não significa que sejam categorizáveis como serviços públicos. […] Nem a Constituição, nem a Lei Orgânica dos Municípios, nem a lei municipal regente da matéria qualificam os serviços de táxi como serviços públicos. Contudo, a Constituição foi expressa em qualificar como serviço público o serviço municipal de transporte coletivo local de passageiros (art. 30, V), não se podendo, como é óbvio, considerar casual a explícita menção a ‘coletivo’. Nisso, a toda evidência, ficou implícito, mas transparente, o propósito de excluir o transporte individual de passageiros da categorização de serviço público. (MELLO, 2011, p. 216-217)

De fato, pelo que foi analisado, o serviço de táxi não se amolda ao conceito de serviço público, tendo em vista o não enquadramento nos requisitos essenciais de caracterização deste serviço, quais sejam, regime jurídico e natureza da atividade. Da mesma forma, o serviço de transporte individual de passageiros não preenche tais requisitos, não sendo, pois, considerado serviço público.  

Outro aspecto a ser observado sobre os serviços de táxi é que a este não é assegurada a continuidade, ou seja, pode o taxista deixar de prestar o serviço por longos períodos, se assim preferir. Desta forma, não há a obrigação do Estado em prestá-lo ou promover-lhe a prestação, critério que o Supremo Tribunal Federal reputou essencial para caracterização do serviço como público no julgamento do Recurso Extraordinário 220.999-7.

No aspecto material, fica claro que o transporte individual de passageiros, seja o público ou o privado, não possui caráter de essencialidade, outro fator determinante que o STF julgou na resolução do RE anteriormente mencionado.

É fundamental assegurar a todos o acesso ao transporte, todavia essa universalização deve ser almejada ao transporte coletivo e não ao individual. Desta forma, pode-se concluir que o serviço de transporte individual de passageiros é composto das modalidades pública, que compreende o serviço de utilidade pública, sujeito a intensa regulação estatal e que é prestado exclusivamente pelos táxis; e a privada, prevista na lei, embora ainda não regulamentada e que pelo princípio da livre inciativa não impede sua prestação pelos particulares.

Os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência são vetores fundamentais de interpretação das normas que disciplinam as atividades econômicas e, por possuírem tamanha importância, devem ser usadas para interpretar as fronteiras entre as atividades econômicas em sentido estrito e os serviços públicos.

O serviço de transporte oferecido pela Uber através de sua plataforma, nada mais é que uma alternativa ao serviço de transporte individual e que de acordo com as normas que regem as atividades econômicas em sentido estrito, devem estar coerentes com os princípios da livre iniciativa, livre concorrência e liberdade de profissão.           

A atividade da Uber e dos seus motoristas parceiros se sujeitam à regulação estatal, como qualquer atividade econômica desenvolvida no país. Como já restou demonstrado, antes que aconteça essa disciplina, o exercício das atividades é plenamente lícito, à luz dos princípios já mencionados e independe de qualquer autorização estatal.

Também não há dúvidas de que as atividades da Uber podem causar impactos econômicos negativos sobre os prestadores de serviços de táxi. Ocorre que, como já ressaltado, a ampliação da concorrência tende a ser benéfica para o consumidor e a tentativa de reserva do mercado para os taxistas não se amolda no aos princípios constitucionais da livre iniciativa e livre concorrência.

Por fim, sob a ótica dos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência, a atividade da Uber é plenamente lícita pois, a falta de regulamentação não a torna ilícita e tal atividade não depende de prévia licença ou autorização estatal para ser exercida.

Ressalta-se também, que a livre concorrência garante que a competição entre os concorrentes de um mesmo mercado seja justa e sem abusos a fim de evitar o monopólio de determinadas empresas.  Nesse sentido, é importante reiterar que o serviço prestado pela Uber não configura transporte público individual e sim a modalidade privada de transporte. Por essa razão, não está sujeita ao mesmo regramento dos táxis.

A submissão da Uber às mesmas regras impostas aos táxis desnaturaria a inovação proporcionada pelo novo serviço e causaria um prejuízo a todos os consumidores. Além disso, é comum no cenário econômico brasileiro a concorrência travada por agentes diversos submetidos a regimes jurídicos diferentes. É o caso, por exemplo, das TV’s por assinatura e as TV’s abertas, os ônibus e os metrôs, que apesar de concorrerem diretamente se submetem a regimes jurídicos distintos.

No que tange a liberdade profissional, ou liberdade de profissão, a Constituição garante que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

Os interesses corporativos dos donos de frotas de táxi que visam a retirada da Uber do mercado não devem ser levados em consideração, sob pena de contrariar os interesses de toda uma coletividade que milita em favor da existência de uma maior concorrência no setor de transporte individual de passageiros. Nesse sentindo, o STF já se manifestou que os interesses meramente corporativos não justificam a imposição de restrições à liberdade de profissão.

Em decisão ocorrida nos anos 70, o Supremo invalidou a regulamentação do exercício da profissão de corretor de imóveis, sob a alegação de que o seu objetivo não era a proteção do o interesse público mas sim a beneficiação dos corretores já registrados. In verbis:

Não se justifica, assim que, com fundamento em que a atividade se acha regulamentada em lei (…), possa o art. 7º referido permitir que, realizado o serviço lícito, comum, o beneficiário desse serviço esteja livre de pagar remuneração, porque esta se reserva aos membros de um determinado grupo de pessoas. Admitir a legitimidade dessas regulamentações seria destruir a liberdade profissional no Brasil. Toda e qualquer profissão, por vulgar que fosse, poderia ser regulamentada, para que a exercessem somente os que obtivessem atestação de órgãos da mesma classe. E ressuscitadas, à sombra dessas regulamentações, estariam as corporações de ofício, nulificando inteiramente o princípio da liberdade profissional. (STF, RE 65.968, 1970)

Mais recentemente, o Supremo reiterou sua decisão quando afastou a exigência de inscrição dos músicos na Ordem dos Músicos do Brasil:

É que as exigências de cunho formal não podem servir a um grupo, não podem se prestar à reserva de mercado, só se justificando a imposição de inscrição em conselho de fiscalização profissional, mediante a comprovação da realização de formação específica e especializada, nos casos em que a atividade, por suas características, demande conhecimentos aprofundados de caráter técnico ou científico, envolvendo algum risco social. (STF, RE 414.426, 2011)

Dessa forma, a prestação de serviço de transporte oferecida pela Uber tem total respaldo no que diz respeito à liberdade de profissão, tendo em vista que esse instituto garante a liberdade profissional de todo e qualquer indivíduo.

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