Direito Público

"Nenhum código pode ser pensado em gabinete, com resultados hipotéticos"

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27 de dezembro de 2017, 7h10

Spacca
O desembargador Ricardo Henry Marques Dip ainda é cauteloso ao analisar os impactos do Código de Processo Civil de 2015 — norma que passou a vigorar no mesmo ano em que assumiu o comando da Seção de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo.

“Um código tem que ser muito bem pensado, uma vez que ele se aplica à realidade das coisas. Não adianta fazer em um gabinete fechado com resultados hipotéticos. Então nós temos que esperar um pouquinho, verificar o que de fato poderá dar-se como aplicação do código”, afirma.

Enquanto a jurisprudência está em processo, o atual presidente da seção relata não ter ouvido elogios às mudanças, seja do lado dos colegas de tribunal como por parte de advogados.

Apesar das questões administrativas para cuidar na função —  como o andamento de recursos para tribunais superiores, um problema a ser resolvido —, Dip dedicou parte do tempo nos últimos meses integrando sessões de seu colegiado de origem: a 11ª Câmara de Direito Privado perdeu, em agosto, o desembargador Luis Antonio Ganzerla, que morreu depois de sofrer um infarto.

Um dos temas ainda recorrentes é a judicialização da saúde. Fornecimento de medicamentos está entre os cinco temas que mais entram em pauta em Direito Público no TJ-SP. Dip afirma que a defesa das Fazendas ainda insistem em contestações genéricas, sobre sangria fiscal e verba indevida.

“O Judiciário se vê muitas vezes fadado a ter que observar o que o médico assistente diz. Se a Fazenda não contesta isso, se não pede laudo pericial para verificar a efetividade de uma doença, o juiz não tem muito que fazer.”

Dip despede-se da presidência de Direito Público elogiando a cooperação dos demais desembargadores. Como resultados do biênio 2016-2017, destaca que a gestão conseguiu baixar de dois anos para seis meses o processamento de recursos que ainda chegavam de forma física. Hoje, cerca de 80% dos processos que entram em pauta são digitais.

Ele atuou na 1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, foi assessor da Corregedoria-Geral da Justiça nesse mesmo tema (1986-1987 e 1991-1992) e já lecionou sobre o assunto na Escola Paulista da Magistratura. Convidado a auxiliar a ministra Nancy Andrighi na Corregedoria Nacional de Justiça, a partir de 2014, a representou em eventos que tentaram uniformizar critérios de registros e notas no país.

Em dezembro de 2016, lançou o livro Seguridad jurídica y crisis del mundo posmoderno (Segurança jurídica e crise do mundo pós-moderno), em Madri, na Espanha. Formado em Jornalismo, não costuma conceder entrevistas, mas durante seu período na presidência da seção recebeu sempre que procurado a equipe do Anuário da Justiça, editado pela ConJur.

Leia a entrevista:

ConJur —  Como o senhor analisa a experiência de ficar esses dois anos à frente da Seção de Direito Público?
Ricardo Dip —
Tive a felicidade de montar uma boa equipe de seis juízes assessores, que me assessoraram muitíssimo bem. A  solidariedade entre os integrantes da seção fez com que meu trabalho fosse facilitado. São cerca de 120 magistrados reunidos (depende do mês), o que seria um potencial de conflitos, mas a seção é muito harmônica.

Desempenhei um trabalho sequencial, iniciado por meus antecessores. Não é possível que o presidente venha e faça tudo em dois anos, vamos passo a passo resolvendo os problemas. Esse biênio pôs à mostra a pequenez dos problemas que ainda nos restam.

ConJur — Quais problemas persistem?
Ricardo Dip — Nosso problema hoje está restrito aos processos físicos que são objeto de recurso especial e extraordinário. Dependemos de uma tarefa, delegada pelos tribunais superiores, que consiste na extração de cópias para escanear todo o processo. Nosso serviço seria de meramente aceitar ou não o recurso, porém as cortes pedem para cadastrarmos.

O trabalho é feito por uma empresa terceirizada privada, não temos muita possibilidade de controlar disciplinarmente essa atividade. Essa empresa, às vezes, tarda um pouco por excesso de serviço – não estou culpando, só estou dizendo que é uma situação de fato. O processo eletrônico está bastante rápido, estamos processando e admitindo ou não dentro da semana que o processo ingressa. Já o físico passa por essa necessidade de escaneamento e demora seis meses. O prazo era de dois anos anteriormente, então caiu para a quarta parte daquilo que era ao iniciar minha gestão.

ConJur — Em quanto tempo estão sendo julgados os processos do Direito Público, em média?
Ricardo Dip —
A distribuição está em dia. Mas é variável, depende muito de relator para relator, de câmara para câmara. Julgamento virtual e decisão monocrática apressa o andamento dos recursos. Mas um dos problemas do novo Código de Processo Civil foi ter diminuído a possibilidade da gestão monocrática.

ConJur — O novo CPC trouxe resultados positivos ou negativos?
Ricardo Dip —
Não ouvi ninguém elogiando até agora. Ninguém. Não ouvi nenhum advogado, nem juiz, nem desembargador, nem assessor, ninguém elogiando. Ouvi críticas pesadas até mesmo de doutrinadores. Minha experiência pessoal tem sido um pouco restrita, porque passei os últimos meses julgando na 11ª [Câmara de Direito Público] sem estar na condição de relator. Estou recebendo processo como segundo e terceiro [juiz], somente. E na Câmara Especial a questão é muito específica, por atender-se problemas de menores [de idade] apenas, em que há flexibilidade maior para atender ao interesse minoritário. 

ConJur — Membros da Turma Especial de Direito Público sinalizaram receio de que os advogados usassem os IRDRs [Incidentes de Resolução de Demandas Repetitivas, previstos no CPC/2015] para paralisar alguns processos se notassem posição de desvantagem no julgamento. O senhor acredita que isso possa acontecer?
Ricardo Dip —
Factualmente pode. Nós temos um código novo. Os códigos sempre apresentam problemas graves, por isso sou, a princípio, contrário a mudanças das codificações. Um código tem que ser muito bem pensado, uma vez que ele se aplica à realidade das coisas. Não adianta fazer em um gabinete fechado com resultados hipotéticos. Então nós temos que esperar um pouquinho, verificar o que de fato poderá dar-se como aplicação do código.

Então, de fato, há essa possibilidade factual que você mencionou. Se vai ocorrer vamos ter que aguardar. Se ocorrer, os juízes terão de pensar em uma opção corretiva para evitar que o processo seja utilizado como meio de procrastinação das demandas.

ConJur — Advogados de Brasília têm reclamado de dificuldades para apresentar agravo no Tribunal de Justiça, pois a corte passou a restringir hipóteses com base no artigo 1.015 do CPC/2015. Como está essa questão no TJ-SP?
Ricardo Dip —
Seria nesse momento leviandade minha esclarecer qual é a tendência do tribunal como um todo ou mesmo da Seção do Direito Público em relação aos agravos. Na 11ª Câmara, na qual eu voltei a atuar por uma situação de emergência, a tendência é aplicar estritamente a situação de agravo às situações descritas na lei.

ConJur — Se a situação não se encaixa expressamente no artigo 1.015 do CPC/2015, os senhores também não têm aceitado?
Ricardo Dip  —
Não, em princípio. Esse é um problema que a jurisprudência ainda vai fixar. O Superior Tribunal de Justiça outro dia já admitiu em caso sem previsão na lei. Pode ser que, pela natureza das coisas, seja necessário estender as hipóteses. Isso só o tempo vai dizer.

Os romanos eram sábios. O seu direito, por isso mesmo, recebeu o galardão de ser o direito clássico por excelência. “Esperar primeiro os fatos, para depois fazer as regras”. Nós temos o costume de fazer primeiro as regras para depois martelarmos os fatos para dentro das regras. Vamos ver como é que os fatos vão sugerir o alargamento ou não dessa norma. Minha impressão pessoal é de que algumas hipóteses a mais venham se estabelecer na via proctorial. O entendimento seria de que a norma é tendencialmente restritiva, mas admite algum alargamento, em vez de pensar-se que ela é taxativa, ponto e basta. Volto a dizer: só o tempo dirá.

ConJur — O STJ pode aprovar alguma súmula sobre isso?
Ricardo Dip —
Entramos novamente agora no problema das súmulas como substitutivas da legislação. Daí é o Poder Judiciário legislando.

ConJur — As conciliações, que consistem em ponto central do CPC de 2015, têm ocorrido no Direito Público?
Ricardo Dip —
É difícil no Direito Público, porque tratamos frequentemente, para não dizer sempre, de questões de Direito indisponível. Portanto, no Direito Público, é pouco provável que haja êxito.

ConJur — Como está a discussão de pagar a Fazenda com precatórios?
Ricardo Dip —
 Quando eu atuava integralmente na câmara, a imensa maioria dos casos não admitia o pagamento com precatórios alimentares. Admitia-se com outros, mas não alimentares. 

ConJur — A Fazenda ainda tem muitos processos de cobrança? Como minimizar o impacto do número de recursos nessa área?
Ricardo Dip —
A Fazenda tem protestado as certidões de dívida ativa. Quanto ao meu entendimento, eu acho que não cabe, mas enfim, tem protestado. Isso tem diminuído o volume de ações de execução do tribunal. Discute-se proposta legislativa para que a Fazenda possa, de algum modo, ceder esses créditos para empresas que os cobrariam. Uma outra proposta que se pode pensar é a criação de uma espécie de execução extrajudicial, que poderia ficar a cargo não só de empregas particulares, mas talvez de atividades públicas já concedidas.

ConJur — Como estão os processos da área de saúde?
Ricardo Dip —
Há um psiquiatra alemão chamado Manfred Lütz, autor de um livro muito interessante, O prazer de viver. E eu, certa vez, lendo esse livro, vi a seguinte frase: “Nenhum país do mundo teve a ideia de converter a saúde em direito constitucional, porque isso seria um absurdo”. O Brasil teve essa ideia. Esse é o problema, de colocar na Constituição o chamado direito à saúde. O que, ao fundo, negar essa prestação perseguida sempre faz correr o risco de que nós ofendamos a Constituição. É uma situação muito delicada.

ConJur — Quais são os principais pedidos sobre saúde no TJ-SP?
Ricardo Dip —
Há de tudo: tanto pedidos de medicamentos que estão listados no SUS quanto os que estão fora da relação. Alguns sequer aprovados [no Brasil], mas com aprovação de agências exteriores. Também existem pedidos de tratamentos, alguns alternativos. Acredito que o problema não pode ser resolvido por meio de portaria, grupos de estudos, nada disso. Ao meu modo de ver, teria que se resolver com uma defesa empenhada da Fazenda, seja estadual, sejam as municipais, para fazer prova em cada caso sobre a impertinência ou mesmo a inutilidade da terapêutica perseguida. O problema é que os autores vêm calcados em um diagnóstico, frequentemente um prognóstico, e uma ministração de remédios ou tratamentos partidos dos médicos assistentes, do médico que a pessoa consulta. De acordo com a legislação médica, e que é aplicada no caso, isso não pode ser meramente contestado sem contraprova adequada. Então, o Judiciário se vê muitas vezes fadado a ter que observar o que o médico assistente diz.

Se a Fazenda não contesta isso, se não pede laudo pericial para verificar a efetividade de uma doença, não impugna a idoneidade de determinado tratamento, o juiz não tem muito que fazer. Eu me permitiria aqui imaginar o seguinte: atuamos mais ou menos em um ponto em que, nós, sem contato com o possível doente, temos ali uma indicação técnica da arte médica de que determinado tratamento é necessário. Como é que nós vamos negar isso se as contestações apresentadas à demanda são contestações genéricas, que voltam a dizer que haverá uma sangria fiscal, uma sangria de honorário, que não pode perder, que é verba indevida? Essa discussão de natureza jurídica fica fora do campo médico estrito, onde o tema deveria ser debatido especificamente.

Então, em vez de negar a doença ou a idoneidade do tratamento, começa-se a discutir de onde virá o dinheiro. Essas discussões são políticas. Estou dizendo isso porque eu próprio estaria tendente a olhar com mais cuidado um caso se houvesse contestação adequada. Com todo respeito, eu não quero me intrometer na função do patrocínio das causas da Fazenda Pública, mas o fato real é que essa defesa frequentemente não existe.

ConJur — Segundo a Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, a maior parte dos processos vem de regiões ricas, que teriam mais acesso a Justiça. É isso mesmo?
Ricardo Dip —
Não é de todo correta essa observação, com todo respeito. Eu tenho atuado em muitos processos. As regiões ricas têm mais processo mesmo, geralmente porque também apresentam maior população. É por isso que vem mais de lá. Agora, também há processos de regiões pobres. A Constituição também não distingue entre quem pode ou não pode pagar. Tratamento universal: como falei, tivemos a ideia de colocar o direito à saúde de maneira universal na Constituição Federal.

ConJur — Com a crise política e econômica pela qual o país tem passado, aumentou a litigância?
Ricardo Dip —
Não parece. Nós tivemos um problema pontual, que foi o aumento em três meses da distribuição das ações de execução dos tributos municipais. Um aumento assim repentino, mas isso foi efetivamente bem pontual. Deve-se à circunstância de que as municipalidades tiveram de se adaptar ao processo eletrônico e demoraram um tantinho a fazer isso, sobretudo as grandes municipalidades. Resultado é que, quando se adaptaram, fizeram um volume muito grande de processo, então todos começam a correr no mesmo tempo.

Os juízes também decidiram ao mesmo tempo, já que subiu bastante para o tribunal. Mas isso foi entre abril e agosto, e já solucionou. A distribuição está zerada. A solução adotada foi uma distribuição massiva dos processos para as câmaras especializadas.

ConJur — O senhor destaca algum assunto novo que se tornou recorrente?
Ricardo Dip —
 Talvez o do Uber. Tornou-se recorrente a controvérsia sobre até que ponto as municipalidades podem impedir o transporte de passageiros por aplicativo enquanto não está regularizado.

ConJur — Normalmente, os desembargadores votam pela liberação, não é mesmo?
Ricardo Dip —
É, na minha câmara teve uma votação bastante equilibrada. Por três votos a dois, com a atual composição, estamos determinando que é possível, mas está equilibrada. O argumento central é de que a lei permite a regulamentação, não a proibição.

ConJur — O senhor tem sugestões para o próximo presidente, o desembargador Getúlio Evaristo dos Santos Neto?
Ricardo Dip —
Não. Só vou sugerir se ele me perguntar, senão não sugiro nada. Até porque ele não precisa de sugestão nenhuma, é um magistrado notável, tem grande experiência. É um nome que merece todo nosso respeito, grande juiz, grande magistrado. Um grande amigo também, sou suspeito para falar dele. Estou fazendo um relatório bastante amplo do que nós fizemos nesse biênio.

ConJur — Dentre essas atividades, foi organizado algum mutirão em 2017?
Ricardo Dip —
Não, não foi necessário. Havia a ideia de se convocarem bagres [juízes convocados] para auxiliar nesse processo. Mas os desembargadores das câmaras especializadas, com muito empenho pessoal e uma atitude que eu quero louvar, por entender que realmente foi muito digna, resolveram assumir o acervo. O que significa dizer assumir o acervo sem compensação financeira extraordinária, porque é o acervo ordinário deles. Então é realmente empenho para produzir no Judiciário. Esse é um motivo entre os quais, de maneira particular, eu me orgulho aqui da presidência. 

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