Ideias do Milênio

"Alguém ter empresa offshore não significa que esteja fazendo algo ilegal"

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7 de janeiro de 2017, 15h24

Reprodução/Youtube
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Entrevista concedida pelo jornalista investigativo americano Michael Hudson ao jornalista Jorge Pontual, para o programa Milênio — programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

Michael Hudson é um jornalista investigativo muito conhecido nos Estados Unidos e que faz parte de um consórcio, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Durante 20 anos, o Michael investigou o mercado de hipotecas de alto risco, que acabou levando à crise de 2008. Ele foi um dos primeiros a investigar isso e resultou nesse livro, O Monstro, onde ele conta essa história toda, um livro que saiu em 2010. 

Jorge Pontual — Você passou 20 anos investigando o mercado de hipotecas de alto risco. Primeiro nos explique o que é uma hipoteca subprime.
Michael Hudson —
Há muitas definições, a mais simples é que é uma hipoteca de alto risco, uma hipoteca destinada a pessoas sem crédito na praça, com histórico de não pagar suas contas ou que simplesmente não têm muito dinheiro. Como são clientes de alto risco, pagam um pouco mais, mas a coisa ficou muito mais complicada e as hipotecas de alto risco se tornaram uma ferramenta usada pelos que emprestam dinheiro em Wall Street para ganhar muito dinheiro, em muitos casos explorando os proprietários, atraindo-os prometendo uma coisa e entregando outra, falsificando a assinatura dos clientes em documentos para que eles nem soubessem o conteúdo… Eles realmente roubaram as pessoas. Muita gente pegava cinco empréstimos em poucos anos, não só para pegar dinheiro, mas para tentar se livrar do 1º empréstimo ruim. US$ 6 bilhões foram tomados em empréstimos em 2001. Em 2004, esse valor subiu para US$ 82 bilhões. As inadimplências dos empréstimos de 2001 eram um percentual mínimo dessa massa continuamente em expansão de empréstimos, com mutuantes e mutuários sempre tentando melhorar as condições.

Jorge Pontual — Isso começou a desmoronar no final de 2006 e, em 2008, todo o sistema financeiro veio abaixo.
Michael Hudson —
Exato. A crise começou no final de 2006, durou 2007 e 2008. As pessoas diziam que ia melhorar, e quando o mercado percebeu que todo o sistema financeiro estava podre, tudo desmoronou muito rápido.

Jorge Pontual — Falando sobre o seu trabalho como jornalista investigativo. Como você se envolveu na investigação desta história? Foi no início dos anos 1990?
Michael Hudson —
Foi. Eu estava trabalhando num jornal da Virgínia de alcance médio, com tiragem de 120 mil exemplares. Naquela época, num jornal assim havia muito jornalismo investigativo. A equipe era grande, o jornal lucrava muito e nós podíamos nos dedicar a grandes reportagens. Eu queria escrever sobre a pobreza numa cidade pequena, e um advogado que representava clientes de baixa renda me disse: “Pense em como as pessoas tentam sair da pobreza, como tentam melhorar de vida.” Ou compram um carro para que possam se mudar para um bairro mais seguro e ir de carro a um emprego melhor, ou compram uma casa para ganhar estabilidade ou voltam a estudar, o que para os pobres significa fazer um curso técnico pago, como um curso de direção ou de informática. E ele percebeu que, em todos os casos, em vez de essas atitudes ajudarem as pessoas a melhorar financeiramente, as afundavam em dívidas. Elas ficavam devendo à escola de direção, que não as ajudou a conseguir emprego, eram enganadas em hipotecas e por vendedores que lhes vendiam carros ruins e contraíam até empréstimos de alto risco para comprar carros caros. Comecei a investigar essa indústria da pobreza.

Jorge Pontual — Você trabalhou sozinho ou com uma equipe do filme Spotlight, como a equipe do Boston Globe que investigou a igreja?
Michael Hudson —
Principalmente sozinho. No Roanoke Times não havia uma equipe fixa de investigação, mas às vezes nos reuníamos para uma matéria específica.

Jorge Pontual — Você revelou muitas fraudes e atividades ilegais. Como convenceu os envolvidos a conversar com você?
Michael Hudson —
Conversei com vendedores jovens, e eram principalmente homens, e muitos se sentiam mal pelo que tinham feito. Muitos mergulharam de cabeça, cheiravam cocaína, seus chefes os levaram para comer bifes de US$ 100, jantares caros, muito champanhe, os chefes os premiavam contratando strippers para a festa do fim do mês em homenagem ao melhor vendedor… Algumas pessoas adoravam isso e continuaram agindo sem a menor culpa, mas muitos se sentiram mal depois. E queriam conversar. E um conselho que sempre dou a jovens jornalistas é que muitas vezes nós ouvimos: “Ninguém vai querer falar comigo. Todos são muito reservados.” Mas você se surpreende quando liga principalmente para ex-funcionários que estão recebendo seguro-desemprego para conversar. Se contratar vários deles, pode dizer: “Já conversei com dez pessoas que trabalharam lá e você conhece algumas delas.” E, se elas derem permissão, posso mencionar seus nomes: “Conversei com Joe, com Tom e com Liz, que disseram tal coisa. Foi assim com você?” E às vezes me diziam: “Na verdade, não”, mas geralmente diziam que sim. Eu ligava para pessoas que diziam: “Saí da empresa há dois anos e queria contar a história a alguém, mas não sabia quem procurar.” Eu tinha a impressão de que elas estavam esperando minha ligação. Uma ex-funcionária, a investigadora chefe de fraudes da Countrywide Mortgage, a maior financiadora de hipotecas do país, foi demitida porque descobriu fraudes.

Jorge Pontual — Uma coisa importante que eu vou perguntar agora é a pressão que as empresas que ele estava investigando possam ter feito sobre os empregadores dele. Seus empregadores sofreram alguma pressão de empresas que você investigou?

Michael Hudson — Sempre há algum nível de pressão. Quando eu estava num jornal médio nas montanhas da Virgínia a pressão era menor, porque a General Eletric ou o Citibank não se importavam muito. A pressão aumentou quando escrevi matérias para o Los Angeles Times e para o Wall Street Journal. Aí as grandes empresas aumentaram a pressão. Geralmente dizem: “Por que estão deixando esse cara que trabalhou num jornaleco e é desconhecido nos investigar? Nós somos sérios e temos uma parceria longa com vocês.” Então a pressão aumentou muito e eu passei muitas horas no telefone e em reuniões sozinho e às vezes com um editor que me ajudou muito no Wall Street Journal com advogados do Lehman Brothers, executivos e assessores gritando comigo, me interrogando e dizendo como eu era horrível. No final, publicamos uma reportagem informando que tínhamos entrevistado 25 ex-funcionários de empresas de hipotecas de propriedade do Lehman Brothers que disseram ter testemunhado fraude: falsificação de documentos, falsas promessas, tudo que acontecia no mercado das hipotecas de risco. Mas fazer a reportagem ser publicada foi uma guerra.

Jorge Pontual — Para fazer as reportagens e o livro você teve que fazer uma quantidade enorme de entrevistas e recebeu muito material. Como você organiza esse monte de informação: documentos, entrevistas, transcrições de entrevistas feitas por telefone, como é que isso é organizado por um jornalista investigativo? 
Michael Hudson —
Os jornalistas têm fama de ser descuidados… Eu fazia coisas do tipo… Principalmente… Eu tirava várias cópias de todos os documentos e pregava os mais importantes na parede do escritório, o que enlouquecia a minha mulher, porque ela não gosta de entrar no meu escritório e ver a bagunça. Isso para não perder algumas coisas importantes. Tive de me organizar, planejar e fazer listas. E eu usava certas palavras-chaves ou acrônimos originais em todos os documentos para facilitar a busca. Tudo que tinha a ver com a Ameriquest eu identificava como “AmQ-”, e isso facilitava a bisca no computador ou no e-mail. É preciso trabalhar muito, pensar muito. Uma forma de se organizar é… Você está tentando descobrir tudo sobre uma empresa, mas, a certa altura, precisa se concentrar no que está escrevendo, como, que histórias vai contar e como contá-las de uma forma humana. Então eu organizava o texto em torno da história de uma pessoa, fosse ela um cliente, um vendedor jovem, e isso me ajudava. Eu tinha pastas separadas para pessoas que se tornariam personagens do livro ou de uma matéria. Dá muito trabalho, mas acho que você acaba passando duas horas por dia organizando e pensando na organização e de 6h e 8h trabalhando.

Jorge Pontual — Sobre os bastidores do Panamá Papers, investigação que ajudou a revelar como empresas offshores foram usadas para pagamentos de propina e transações financeiras não declaradas. Explique o que é Consórcio Internacional.
Michael Hudson —
O ICIJ é uma organização jornalística sem fins lucrativos cuja redação sede fica em Washington. Temos doze funcionários. A maioria fica em Washington. Eu estou em Nova York, mas temos gente na Costa Rica, na Espanha, em Paris… Trabalhamos em grandes reportagens globais, tanto investigando e escrevendo sozinhos como também com pessoas que trabalham em outras empresas, seja no Le Monde em Paris ou na BBC. Em todo o mundo, 200 jornalistas são membros do ICIJ e recebem salário de outro empregador, mas trabalhamos juntos.

Jorge Pontual — Quem financia?
Michael Hudson —
Fundações, recebemos doações de instituições de caridade, assim como a National Public Radio aqui dos EUA, que recebe dinheiro de várias fundações, como a Open Society…

Jorge Pontual — De George Soros.
Michael Hudson —
Sim. E as encaramos como nossos anunciantes. São entidades das quais dependemos.

Jorge Pontual — Mas a quem vocês prestam contas?
Michael Hudson —
Prestamos contas a nossos leitores e telespectadores. Se uma entidade não gosta das matérias que publicamos, para de nos financiar e procuramos outra. Na investigação dos Panama Papers, tivemos mais de 370 jornalistas de mais de 100 veículos de comunicação de quase 80 países trabalhando na reportagem. E o que aconteceu foi que recebemos um vazamento gigantesco de registros de empresas offshore criadas pela Mossack Fonseca, do Panamá, que tinha passado décadas abrindo empresas e contas em paraísos fiscais difíceis de rastrear para políticos e astros do esporte, além de muitos fraudadores, gângsteres, traficantes de drogas…

Aí, na tarde de domingo de 3 de abril de 2016, o assunto se tornou o trending topic nº 1 do Twitter. Só se falava nisso. Chamou muita atenção. As reportagens e os dados do ICIJ tiveram mais de 80 milhões de visualizações. Em todos os nossos parceiros mundiais, foram centenas de milhões de visualizações de telespectadores e leitores, pessoas que ainda recebem o jornal impresso. Isso levou uma reportagem que teria chamado alguma atenção e provocado alguma reação a se transformar em algo muito maior. Ela se tornou assunto das conversas e ainda é.

Jorge Pontual — Entre essas empresas offshore há muitas atividades ilegais, como lavagem de dinheiro e tal, mas também há empresas legítimas, como a do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal do Brasil, Joaquim Barbosa, que provou isso. Mas o nome dele foi envolvido e se espalhou no Brasil a notícia de que ele estava sendo acusado de algo ilegal, quando não estava. Como vocês lidam com esse tipo de problema?
Michael Hudson —
Sempre deixamos claro que o fato de alguém ter uma empresa offshore não significa que esteja fazendo algo ilegal. Nosso primeiro objetivo sempre é a transparência. A informação deve estar disponível. Mesmo que você seja honesto, se tem uma empresa internacional, o público deve saber. A informação de que tal pessoa é dona de tal empresa que investe nisso ou naquilo deve ser pública, porque afeta todos nós, afeta o ambiente, os mercados… Sempre tomamos o cuidado de dizer que o fato de se ter uma empresa offshore não significa que a pessoa fez algo errado. Deixamos isso muito claro no caso do ator Jackie Chan, o astro de comédias de kung-fu. Não achamos nada que indicasse… Ele é um astro internacional, faz filmes no mundo inteiro, então faz sentido que tenha empresas offshore para ter mais liberdade com seu dinheiro. Nós sempre tomamos muito cuidado… Quando investigamos, quando damos nomes aos bois, sempre damos direito de resposta às pessoas. Em vez de publicar uma lista de nomes, dizemos: “Eis exatamente o que descobrimos, o que sabemos e o que não sabemos.”

Jorge Pontual — Mas vocês sabiam que isso tinha acontecido no Brasil, que o ex-presidente do Supremo Tribunal tinha sido acusado de fazer algo ilegal ou não?
Michael Hudson —
Esse é o risco que corremos.

Jorge Pontual — É, pegou mal.
Michael Hudson —
Esse é um dos problemas da falta de transparência. Se isso já fosse sabido, se fosse de conhecimento público que ele tinha essa empresa… Não estou dizendo que a culpa é dele, a culpa é do sistema offshore em países que não exigem um registro de empresas. Na passagem da não transparência para a transparência, ele infelizmente foi envolvido nisso. Mas acho que ele conseguiu…

Jorge Pontual — Sim, depois de ter o nome manchado.
Michael Hudson —
Isso é difícil. Para nós, é uma questão de insistir numa transparência maior para que esse tipo de coisa não aconteça: “Ah, ele tem um segredo sujo.” Em vez de: “É de conhecimento público. Está nos registros.”

Jorge Pontual — E quanto ao desafio de escrever textos imensos? É bem diferente de escrever uma matéria curta.
Michael Hudson —
O segredo é fragmentar em pedaços. Cada capítulo deve ser independente, uma reportagem longa de revista. Eu tentava escrever o máximo possível, o máximo de palavras por dia, e eu só ia dormir depois de escrever 700 ou 800 palavras, o que às vezes significava ficar acordado até 5h ou 6h, às vezes 7h da manhã e dormir muito pouco. É interessante, porque escrever é uma forma de pensar. Ajuda você a perceber certas coisas que você acha que entende, mas que, quando transforma em narrativa, certas perguntas surgem: “Isso aconteceu nesse ano, mas o que aconteceu dois anos antes? Qual é a conexão entre o que aconteceu em 1999 e em 2003?” Ajuda a pensar, então o que eu fazia todo dia… Eu tinha um esboço detalhado do que queria do livro. Ele seguia uma ordem cronológica. Eu essencialmente escrevia… Naquele dia eu escrevia a reportagem mais fácil, aquela na qual tinha reunido todo o material e que entendia melhor. Depois de escrevê-la, outra parte tornava-se mais fácil, porque eu tinha tido algum insight para outra parte do livro. Podia não ser o capítulo seguinte do livro. Podia ser algo que acontecera anos depois ou antes, mas fui fazendo isso até que tinha o suficiente para, durante algumas semanas, pegar o que tinha escrito e juntar tudo numa narrativa única.

Jorge Pontual — Qual é a recompensa, fora a financeira — se é que há alguma —, de ser um jornalista investigativo?
Michael Hudson —
Acho muito empolgante poder investigar a fundo, além de fazer perguntas sobre a vida das pessoas. Em muitos casos, as pessoas acham que somos aqueles jornalistas com câmeras e microfones que perguntam: “Por que o senhor roubou aquele dinheiro?”, correndo atrás das pessoas, mas o jornalista investigativo não faz parte do bando. Ele conversa com as pessoas, mesmo as que fizeram algo ruim: “Senhor, sou jornalista. Eis o que sei. Essas são as informações que tenho, mas fale o que quiser.” E as pessoas falam. E poder conversar com pessoas comuns, que não são especialistas nem poderosas, mas que estão em casa e têm algo a dizer sobre algo de errado de que foram vítima e poder ajudá-las a divulgar isso é muito empolgante e me faz dormir tranquilo.

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