Respeito aos bichos

"Garantir os direitos dos animais é uma questão moral antes de ser jurídica"

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7 de janeiro de 2017, 6h54

A decisão do Supremo Tribunal Federal de declarar inconstitucional a lei do Ceará que regulamentava a vaquejada trouxe à baila a discussão sobre de que maneira os animais devem ser tratados. Promotor de Justiça na Bahia e professor doutor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Heron José de Santana Gordilho não tem dúvida: os bichos devem ser protegidos pelo Estado contra a crueldade humana, e alguns animais devem ter a sua personalidade jurídica reconhecida.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, ele diz que hoje há no mundo uma “exploração institucionalizada dos animais” que, segundo ele, “é antieconômica, desnecessária, imoral, ambientalmente prejudicial e danosa à saúde”. “Garantir os direitos dos animais antes de ser uma questão jurídica, é uma questão moral”. Vegetariano, acredita haver uma tendência de que as pessoas entendam que matar animal para comer é desnecessário.

Membro do Ministério Público há 25 anos, o promotor afirma que atuação do órgão na proteção dos direitos dos animais tem melhorado bastante. “Até pouco tempo o direito dos animais era um tema marginal, porque a maioria dos promotores era antropocêntricos, defendendo a natureza não como benefício da natureza, mas para o homem. Então, a preocupação com animal era vista com desconfiança, mas agora os promotores estão se especializando”, pontua.

Gordilho ficou conhecido nacionalmente ao impetrar um Habeas Corpus na Justiça baiana para que a chimpanzé Suíça, morta em 2005, fosse transferida do zoológico de Salvador para Sorocaba, no interior de São Paulo. “Foi a primeira vez na história da humanidade que um animal foi reconhecido como sujeito de direitos”, diz o promotor, ressaltando que o caso virou um precedente relevante e já foi usado na Argentina e nos Estados Unidos.   

Ele se dedica aos estudos sobre direitos dos animais há 15 anos. É pós-Doutor pela Pace University Law School, de Nova York, onde é professor visitante e integra a diretoria do Brazilian-American Institute for Law and Environment. Autor de diversos artigos jurídicos publicados em periódicos do Brasil e do exterior.  Em 2006, defendeu na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) a tese Abolicionismo Animal – Animais como sujeitos de direito.

Leia a entrevista: 

ConJur — O que o senhor achou da decisão do Supremo que considerou inconstitucional a lei cearense que regulamentava a vaquejada?
Heron Gordilho —
Achei bem acertada. Essa é uma questão que já vem sendo discutida há um bom tempo e o Supremo manteve a linha que já tinha em precedentes anteriores, como a da rinha de galo e mais recentemente a farra do boi. Sempre que houver uma colisão entre direitos fundamentais, como o direito ambiental e essa pretensão de manifestação cultural, o primeiro deve prevalecer. A Constituição brasileira expressamente proíbe a crueldade contra animais.

ConJur — Outras atividades, como o rodeio, devem ser proibidas?
Heron Gordilho —
Sim e certamente devem ser proibidas no futuro. O rodeio já é proibido em alguns estados e municípios, inclusive em Salvador. Eu, como promotor, já entrei com ação para proibir e nunca mais ocorreu. 

ConJur — Há quem diga que o hipismo trata o cavalo de forma cruel. O senhor concorda? Deve ser proibido também?
Heron Gordilho —
A sociedade evolui com o tempo. Não vejo hoje condições históricas para se pensar em proibir o hipismo. Se existe crueldade, é bem discreta. Não consigo observar uma prática cruel, diferentemente da vaquejada e do rodeio. Nunca vi uma denúncia de que o hipismo seja uma crueldade. Pelo contrário, os animais são até bem tratados.

ConJur — Os favoráveis a vaquejada argumentam que a proibição ocorreu porque diferentemente do hipismo aquela não é atividade da elite. O que pensa sobre esse argumento?
Heron Gordilho —
A vaquejada há muito tempo deixou de ser uma manifestação cultura, hoje é um evento privado da elite rural. A vaquejada é tão elitizada quanto o hipismo. É só ver os artistas que estão na vaquejada, todos são tops com cachês milionários.

ConJur — A vedação dessas atividades não pode trazer impacto econômico? Heron Gordilho — Alguns juízes americanos dizem que toda decisão deve levar em consideração o impacto econômico. Isso não é muito em voga no Brasil. A vaquejada enquanto festa privada pode continuar. Tem várias outras atividades, além da “pega do boi”, e se [vaquejada] continuar vai gerar menos desempregos. Está proibida apenas a derrubada do boi, que é apenas uma das atividades da vaquejada. 

ConJur — O Supremo feriu a independência do Legislativo ao declarar inconstitucional a lei do Ceará?
Heron Gordilho —
Não. Pelo contrário, a proibição da crueldade contra animais está na Constituição no artigo 225. A Lei de Crimes Ambientais diz que ferir, mutilar animais é crime com pena de seis meses a um ano.

ConJur — O senhor considera então a vaquejada e o rodeio são atividades criminosas?
Heron Gordilho – 
Não sou eu que acho, quem decidiu isso foi o Supremo Tribunal Federal e o próprio Legislativo na Lei de Crimes Ambientais. O promotor apenas cumpre o que legislador determina. Não inventamos crimes. 

ConJur — O senhor defendeu na sua tese de doutorado o abolicionismo ambiental. Do que se trata?
Heron Gordilho —
A minha hipótese básica da tese é de que a exploração institucionalizada dos animais é antieconômica, desnecessária, imoral, ambientalmente prejudicial e danosa à saúde. Alguns animais possuem requisitos para serem considerados como sujeitos de direitos. Não são todos, apenas os dotados com uma vida mental complexa e quem distingue isso é a ciência.

ConJur — Em abril deste ano, a Assembleia Legislativa da Paraíba discutia a criação de um Código de Direito e Bem-Estar Animal. O que pensa sobre isso? 
Heron Gordilho — O problema do Brasil não é legislação, estamos bem servidos. O que falta é implementação das leis que existem. Agora, um código deixaria muito mais clara a legislação. Mas toda tentativa de legislar acaba legitimando um sistema que é injusto. Por exemplo, animais domésticos em pet shop, eu defendo a abolição. No Brasil, temos um grande número de animais dormindo na rua com risco de produzir zoonose e isso acontece porque as pessoas compram animais como se fossem mercadorias e depois abandonam. O município não cuida e é um crime, mas não tem como identificar os donos porque não têm um termo de responsabilidade e nem tem controle do Estado. Um país que não cuida das suas crianças, não vai cuidar dos seus animais. 

ConJur — O senhor é a favor do proibir pet shop?
Heron Gordilho —
Deve ser proibido. A gente tem animais abandonados para serem adotados suficientes. Então, deveria ser permitida apenas a adoção. Temos abrigos superlotados de animais e pet shop fabricando animais novos com cruzamento para vender. Essa é uma atividade ultrapassada. 

ConJur — O Estado deve ser obrigado a garantir alojamento para os animais abandonados?
Heron Gordilho —
Deve ser porque é um direito a saúde e social. Mas, o Estado deveria antes de tudo proibir a venda de animais, incentivando a adoção.

ConJur — O que o senhor pensa sobre essas ONGs protetores de animais?
Heron Gordilho —
Fazem um trabalho bonito. Agora, muitas vezes ficam enxugando gelo. Quanto mais animais abandonados são recolhidos, mais as pessoas abandonam.  Fica em um ciclo vicioso. Enquanto não houver um trabalho efetivo da prefeitura comprometida com causa não adianta muito. Nos EUA, cobra-se uma taxa para ter animal doméstico. 

ConJur — O senhor é a favor de ter uma taxa?
Heron Gordilho —
Sim. O Estado presta serviços e não há um retorno. O Brasil garante aos animais, vacinas, não dá o suficiente, mas fiscaliza e recolhe, exercendo um poder de polícia. Então, a taxa seria uma contrapartida.  

ConJur — O senhor já manifestou ser contra a concepção do antropocentrismo. Por que?
Heron Gordilho —
O antropocentrismo acaba criando a ideia de que o homem pode fazer tudo que quer com a natureza. Leva ao preconceito com os demais animais e a natureza. Cria-se a ideia de que a natureza está a serviço do homem, quando não é verdade. O homem e a natureza são uma coisa só. 

ConJur —Como avalia a atuação do Ministério Público no que diz respeito aos direitos dos animais? 
Heron Gordilho —
Acho que o Ministério Público baiano é um dos mais avançados, tanto que somos referências em todo o Brasil e no exterior. É só perceber as vitórias. De modo geral, a atuação do Ministério Público brasileiro tem melhorado bastante, até pouco direito dos animais era um tema marginal, porque a maioria dos promotores era antropocêntricos, defendendo a natureza não como benefício da natureza, mas para o homem. Então, a preocupação com animal era vista com desconfiança, mas agora os promotores estão se especializando. 

Conjur – Como o senhor avalia a discussão sobre direitos animais nos tribunais superiores?
Heron Gordilho —
Há pouca jurisprudência. A maioria dos juízes é antropocentrista. A fauna ainda é vista como um bem ambiental, como objeto do direito. Esse é um grande debate. Mas já tivemos aqui na Bahia o precedente da chimpanzé Suíça, que foi muito importante. Pela primeira vez, um animal foi reconhecido como sujeito de direitos. Foi reconhecida a relação jurídica entre um homem e um animal. Essa é uma grande questão. O direito é muito influenciado por Immanuel Kant, que não admitia uma relação jurídica entre um homem e um animal, então o caso Suíça rompe com esse paradigma kantiano.

ConJur — O senhor disse que o caso Suíça é um precedente relevante. Já foi usado para em outros julgamentos?
Heron Gordilho —
Está sendo usado na Argentina e Nova Iorque. No Brasil, já houve uma tentativa de casos Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.

ConJur — Uma pesquisa feita em 2007 pela presidente do Instituto Abolicionista Animal (IAA), Danielle Tetü Rodrigues, mostra que 181 universidades nos Estados Unidos tinham o direito dos animais como disciplina obrigatória nas faculdades de direito. As universidades brasileiras deveriam adotar essa obrigatoriedade?
Heron Gordilho —
No Brasil ainda estamos começando. Já temos cinco professores de direitos dos animais, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro, Santa Catarina, na Paraíba e eu na Bahia. Mas isso para mais de mil faculdades de direito que temos no país não é nada em relação aos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, têm 200 faculdades e mais de 100 já têm a disciplina direito animal. Estamos extremamente atrasados na proteção dos direitos animais. Com a Constituição houve uma demanda social muito grande sobre essa questão, porque só de animais de estimação têm uma população enorme. Se for animal de produção, como boi, temos muito mais do que gente. Então, os conflitos decorrentes dos interesses dos animais têm crescido muito e temos que preparar o profissional para saber essas questões.

ConJur — O que o senhor pensa sobre sacrifício de animais em rituais religiosos?
Heron Gordilho —
É uma questão difícil. Em princípio, sou contra. Acho que o candomblé deveria substituir e tem muita gente que defende o sacrifício vegetal. Então, em princípio, sou contra. Embora reconheça a dificuldade de o Estado proteger os animais, até porque nesses casos se atingirá uma minoria. Não é só candomblé que sacrifica animais. Tem também os judeus e os muçulmanos. São três religiões importantes que sacrificam animal para comer, diferentemente da vaquejada e da briga de galo, que causam mal ao animal pelo simples prazer de vê-los sofrer. Sou vegetariano e a acredito que a tendência é as pessoas vão entender que matar animal para comer é desnecessário. 

ConJur — O senhor acredita que no futuro o Estado pode proibir a morte de animais para consumo?
Heron Gordilho –
 Não. Para ocorrer isso teria que ter uma maioria muito forte. Isso vai demorar muito tempo. A alimentação é uma necessidade básica. A gente pode viver sem vaquejada, mas a alimentação, não, e se não comer, morre. São duas dimensões muito diferentes.

ConJur — O que senhor pensa sobre o uso de animais vivos em experiência científicas?
Heron Gordilho —
Sou contra também. Já escrevi sobre isso. Tem um dilema muito grande nessa questão. Se faz experiência animal para usar no homem, estão dizendo que há semelhança entre os dois. Se existe semelhança entre ambos, não pode tratar um de uma forma e outro diferente. O direito trabalha com tratamento igual entre semelhantes. Esse é um princípio básico. Agora, se admitimos que o homem e animal são diferentes, então não podemos usar o resultado de um experiência no outro. É um dilema. Temos recursos alternativos, como uso de células embrionárias, para não precisar causar tantos sofrimentos aos animais. 

ConJur — O que o senhor pensa sobre deixar bens para animais?
Heron Gordilho —
Nos Estados Unidos, é muito comum. No Brasil, pode se deixar para uma entidade com o compromisso de que o beneficiário seja o animal. É como uma criança. Não se deixa os bens no nome dela, mas para cuidado de terceiros, que vai administrar. Isso pode no Brasil. Não vejo nenhum empecilho.

ConJur — No caso de pensão alimentícia para animais…
Heron Gordilho —
Hoje já se trabalha com ideia de família pluriespécie. Os animais são tratados como membros da família. Também não vejo nenhum empecilho para isso.

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