Opinião

Eleição direta deve ser convocada caso chapa Dilma-Temer seja cassada

Autor

  • Glauco Salomão Leite

    é professor de Direito Constitucional da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) da graduação e do programa de pós em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade de Pernambuco. Foi pesquisador visitante na Universidade de Toronto (Canadá). Membro do grupo Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq).

6 de janeiro de 2017, 7h56

Um dos traços mais salientes das democracias constitucionais contemporâneas tem sido o crescimento político-institucional dos Tribunais. Como reflexo disso, constata-se uma transferência sem precedentes de poderes decisórios das instâncias de representação para os juízes, dando ensejo ao que Ran Hirschl denominou “juristocracia” [1]. Além disso, não se cuida do mero deslocamento de questões simples ou corriqueiras para o âmbito judicial, mas de controvérsias complexas e de elevada voltagem política (megapolitics). Em resposta a esses estímulos, provenientes de vários fatores, convém ressaltar, as Cortes podem assumir posturas distintas, oscilando entre práticas ativistas ou de autocontenção, o que repercute invariavelmente no nível de interferência judicial na esfera dos outros atores estatais.

Nesse contexto, encontra-se em pauta um tema de enorme relevância político-jurídica. Como é de conhecimento público, provavelmente o Tribunal Superior Eleitoral julgará nesse semestre a ação em que se pede a cassação da chapa Dilma-Temer. Se esta corte concluir pela cassação, isso acarretará a perda de mandato de Temer, tornando-se vagos os cargos de presidente e de vice-presidente da República. O aspecto que nos interessa nessa oportunidade consiste em discutir qual o procedimento adequado de escolha do novo Chefe do Poder Executivo, supondo eventual condenação decretada pela Corte Eleitoral. A pergunta pode ser formulada da seguinte forma: deve-se convocar eleição direta, de modo que os cidadãos possam escolher livremente um novo representante ou, ao contrário, tal escolha será realizada, indiretamente, pelo Congresso Nacional?

Uma possível resposta à pergunta acima tem como fundamento o artigo 81, da CF, que disciplina a hipótese de dupla vacância no comando do Poder Executivo federal:

Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.

§ 1º. Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei.

Depreende-se, em primeiro lugar, que a CF demanda novas eleições quando os cargos de presidente e vice-presidente da República estiverem definitivamente vagos. Dessa maneira, se a dupla vacância ocorrer nos dois primeiros anos do mandato presidencial, haverá eleições diretas 90 dias após aberta a última vaga. Porém, se ela se verificar nos últimos dois anos, as eleições serão indiretas, pelo Congresso Nacional, 30 dias após a abertura da última vaga. Nas duas situações, os eleitos apenas completarão os mandatos dos seus antecessores (artigo 81, §2º, CF). A ser desse modo, eventual cassação da chapa Dilma-Temer, no segundo biênio do mandato presidencial, ensejaria a incidência da regra que determina a realização de eleições indiretas pelo Congresso Nacional.

Por outro lado, a Lei 13.165/2015 (Minirreforma Eleitoral) introduziu significativa mudança no artigo 224 do Código Eleitoral, precisamente no capítulo atinente à nulidade da votação. Referido comando, em seu caput, inicialmente prevê situação que torna prejudicado o pleito eleitoral quando a nulidade atingir mais da metade dos votos do país nas eleições presidenciais. Porém, logo adiante determina que sejam realizadas novas eleições na hipótese de perda de mandato decorrente de condenação pela Justiça Eleitoral, por decisão transitada em julgado, seja qual for o número de votos anulados. Eis o seu teor:

Art. 224

(….)

§ 3º A decisão da Justiça Eleitoral que importe o indeferimento do registro, a cassação do diploma ou a perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário acarreta, após o trânsito em julgado, a realização de novas eleições, independentemente do número de votos anulados.

§ 4º A eleição a que se refere o § 3º correrá a expensas da Justiça Eleitoral e será:

I – indireta, se a vacância do cargo ocorrer a menos de seis meses do final do mandato;

II – direta, nos demais casos.

Com a alteração legislativa acima, seria adotada como regra geral a eleição direta, salvo se a vacância se concretizar a menos de seis meses do final do mandato presidencial. Desenha-se, com isso, um aparente conflito normativo na hipótese de o TSE decretar a cassação da chapa Dilma-Temer, pois, seguindo-se o disposto no artigo 81, CF, a forma de escolha se daria pela eleição indireta, ao passo que o Código Eleitoral impõe eleição direta.

Em mais um episódio de judicialização da megapolítica, o Procurador-Geral da República (PGR) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.525), em que defende a inconstitucionalidade dos §§ 3º e 4º, do artigo 224, na redação conferida pela Minirreforma Eleitoral, por contrariarem o artigo 81, da CF, que prevê uma disciplina específica para a dupla vacância dos cargos de presidente e de vice-presidente da República. Segundo seu entendimento, por haver um regime constitucional próprio para tal situação, seria inadmissível qualquer mudança por lei de menor hierarquia.

O pressuposto dessa linha argumentativa é de que a CF, ao regular a dupla vacância no Poder Executivo federal, não atrelou tal situação a qualquer fato específico que lhe dê causa. Dito de outro modo, a dupla vacância poderia ser resultado de algum fato posterior às eleições reputadas legítimas (morte, renúncia ou impeachment dos titulares), bem como de vícios existentes nas próprias eleições e que viessem a justificar a cassação do diploma ou a perda de mandato por decisão do TSE (como se daria nos casos de compra de votos ou “caixa dois”, por exemplo). O ponto central dessa tese é que, ofertando tratamento exaustivo à dupla vacância no âmbito federal, a CF não deixou espaço para disciplina extravagante através de lei infraconstitucional. Por isso, a Minirreforma Eleitoral seria, nessa parte, inválida.

Dissentimos, contudo, dessa posição. Com efeito, essa interpretação apenas considera a textualidade dos diplomas normativos em questão, não levando em conta as distinções realizadas na própria prática jurisprudencial desde longa data e que salientam as diferenças entre a dupla vacância tal como prevista no artigo 81, CF e a perda de mandato ou cassação do diploma por decisão da Justiça Eleitoral. De fato, apenas a título de exemplificação, em 2008, o TSE cassou o mandato do então governador da Paraíba, Cássio Cunha Lima, e do seu vice, José Lacerda Neto, em decorrência da prática de abuso de poder econômico durante as eleições. De acordo com a decisão, o cargo de governador deveria ser ocupado por José Maranhão, que ficou em segundo lugar no pleito eleitoral. Adotando o mesmo entendimento, em 2009, a Corte Eleitoral atribuiu a chefia do Poder Executivo estadual à Roseana Sarney, em virtude da cassação do governador eleito no Estado do Maranhão, Jackson Lago, e do seu vice, Luís Carlos Porto, por terem cometido abuso de poder político também nas eleições. Esses dois casos são suficientes para se perceber que existe um entendimento consolidado na jurisprudência eleitoral segundo o qual a perda de mandato oriunda de eleições ilegítimas é situação distinta daquela prevista na CF referente à dupla vacância. Aqui se observa que nos casos antes referidos, o TSE não os compreendeu como dupla vacância, pois, do contrário, não teria determinado a imediata posse aos candidatos vencidos nas eleições. Caso o Tribunal compreendesse que aquelas situações se enquadrariam no conceito de dupla vacância, deveria ter determinado a realização de novas eleições, que poderiam ser diretas ou indiretas, conforme cada constituição estadual.[2]

Em reforço ao que se afirmou, convém rememorar que, de acordo com o Supremo Tribunal Federal, a sucessão para os cargos do Poder Executivo estadual e municipal, em decorrência de dupla vacância, é tema que se insere na autonomia de cada ente federativo, cabendo-lhes regulamentá-la nas respectivas Constituições e Leis Orgânicas. Dessa maneira, embora a CF preveja, para a dupla vacância do Poder Executivo Federal, eleições diretas nos primeiros dois anos e indiretas no último biênio, tal norma não é de reprodução obrigatória para os outros entes federativos, não se adotando, aqui, o princípio da simetria [3]. Assim, por exemplo, uma Constituição estadual poderia determinar eleições diretas nos três primeiros anos e indiretas apenas no último ano do mandato do governador. O fundamental, contudo, é que exista nova eleição, mas se esta será direta ou indireta é questão a ser disciplinada pelos Estados e Municípios. Não se trata, portanto, de matéria de Direito Eleitoral, situada na competência privativa da União (artigo 22, I, CF) e sim de auto-organização dos poderes locais, enquanto projeção de sua autonomia político-constitucional. Ora, se a sucessão dos governadores eleitos (Cássio Cunha Lima e Jackson Lago) foi regida pela legislação federal vigente à época, que resultou na posse do candidato que ficou em segundo lugar, não tendo sido realizado novo pleito eleitoral, é porque não se cuida de dupla vacância, porque, se o fosse, seriam aplicadas as constituições estaduais e feitas eleições suplementares (diretas ou indiretas, a depender da Carta local).

Portanto, o argumento utilizado pelo PGR na ação direta acima mencionada se fragiliza ou, pelo menos, esbarra em contradição. Se, no seu entender, não cabe à lei infraconstitucional (Minirreforma Eleitoral) disciplinar dupla vacância de presidente e vice-presidente da República, por existir regramento próprio na CF, também não poderia ser aplicada a legislação eleitoral federal às situações como as dos governadores referidos, pois, nas constituições de seus Estados, também há tratamento próprio para a sucessão dos seus mandatos, tal como existe na CF em relação ao presidente da República e seu vice. Ou, então, seremos obrigados a concluir que todas as situações nas quais a Justiça Eleitoral cassou chapas de prefeitos e vice-prefeitos e governadores e vice-governadores, aplicando a legislação eleitoral para definir a forma de sucessão, inclusive dando posse ao derrotado nos pleitos (em vez de convocar eleição extraordinária), se deram em total contrariedade à ordem constitucional.

Todo esse embaraço, ao nosso ver, decorre da tentativa de misturar situações que, juridicamente, são distintas e se apoiam numa jurisprudência robusta, que tem orientando os processos eleitorais no país. Desse modo, há de se distinguir a sucessão, cujos contornos são traçados pela CF e que depende de motivos posteriores a uma eleição legítima, como renúncia, morte ou impeachment do presidente e do vice-presidente, daquela outra hipótese em que a sucessão decorre de perda de mandato decretada pela Justiça Eleitoral, fundada na ilegitimidade do próprio processo eleitoral. Neste caso, cuida-se de desinvestir aqueles eleitos irregularmente numa função política da maior grandeza para o país. A primeira situação é afeta ao Direito Constitucional; a segunda, ao Direito Eleitoral.

Importante destacar que a interpretação construída no âmbito da Justiça Eleitoral nem é das mais condizentes com o princípio democrático, ao menos no que toca à maneira como a sucessão vinha ocorrendo. Retomando os exemplos anteriores, observe-se que, com a determinação judicial para que os cargos de governador fossem ocupados pelos candidatos vencidos nas eleições (José Maranhão e Roseana Sarney), subverteu-se o sistema majoritário, investindo no exercício do poder aqueles que foram rechaçados pela maioria dos eleitores. Construiu-se uma ficção jurídica para explicar que o candidato vencido passou a ter a maioria dos votos válidos, em virtude da anulação dos votos dados ao seu opositor. E já que o sistema majoritário brasileiro exige a maioria dos votos válidos¸ quem era vencido, passa a ser, subitamente, o vencedor. Como resultado paradoxal, tem-se um governo das minorias.

Analisada a situação sob esse prisma, percebe-se que a sobrevinda da Minirreforma Eleitoral é compatível com a CF, pois continuou disciplinando matéria que já era tratada na própria legislação eleitoral (perda de mandato decorrente decisão da judicial eleitoral), sem invadir o terreno da CF. Além disso, ela há de ser compreendida como uma correção democrática para tais situações, pois, agora, restaura-se o princípio democrático através de novas eleições, em vez de, como nos casos antes citados, investir no poder justamente o que foi recusado pela maioria dos eleitores. Em outras palavras, a nova lei tão-somente modificou, e para melhor, as consequências jurídicas advindas da perda de mandato decretada pela Justiça Eleitoral, impondo-se a realização de eleições diretas, salvo nos últimos seis meses do mandato eletivo, quando a eleição será indireta.

Apesar de tudo que foi dito, suponhamos que o STF, ao julgar a ação direta proposta pelo PGR, promova uma guinada no entendimento acerca da dupla vacância e sucessão presidencial, reconhecendo que o artigo 81, da CF, foi omisso quanto às causas dessa vacância. Desse modo, o que importa é o resultado (vacância), independentemente de sua causa. Ora, nada impede que o legislador promova um recorte, totalmente coerente com o que já existia no plano legislativo e jurisprudencial no Direito Eleitoral, destacando das hipóteses possíveis de dupla vacância aquela oriunda de perda de mandato decretada pela Justiça Eleitoral, para fins de disciplinar o processo de investidura dos novos representantes. E mais, nesse caso, entre as duas posições (a do STF e a do Congresso Nacional), é a do legislador a que mais se conforma com o espírito democrático da CF por estabelecer a eleição direta como a regra geral a ser seguida na escolha dos novos mandatários. Com efeito, é preciso observar nossa história constitucional e notar que, após a superação de duas décadas de governos ilegítimos e autoritários, constituídos na força e não no voto, um novo pacto constituinte foi celebrado, fincando suas bases nos valores que informam um sistema democrático e republicano. Coerente com esse ideário, a CF estabelece logo de início o princípio democrático como um dos seus fundamentos, ao dizer que: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (art. 1º, parágrafo único). Portanto, na sistemática adotada pela CF, a eleição direta possui primazia na forma de investidura nos cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, sendo a eleição indireta a exceção. E como exceção deve ser interpretada restritivamente. Vê-se, então, que a Minirreforma Eleitoral, ao exigir eleição direta, salvo nos últimos seis meses do mandato presidencial, reflete exatamente o princípio democrático fixado no documento constitucional. E por exigir uma eleição direta, dando voz aos cidadãos para que decidam os rumos de sua vida política, estaria a contrariar a Constituição cidadã?

Reconhecer como ilegítima a interpretação legislativa é caminhar rumo a uma supremacia judicial, em que o Tribunal se apresenta não apenas como o defensor da CF, mas também como seu intérprete exclusivo, o que representa um grau elevado (e ilegítimo) de ativismo judicial. Após um ano em que o STF assumiu um questionável protagonismo em muitas questões constitucionais, convém exercer a virtude da prudência, lembrando, na esteira de Bickel4, que a interpretação constitucional não é monopólio dos juízes, existindo uma espécie de “colóquio socrático” entre Cortes, instituições políticas e a sociedade em geral.


1 HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Harvard University Press, 2004.

2 Cf. ADI n. 1.057, rel. Min. Celso de Mello, d. j. 20.04.94.

3 Sobre o princípio da simetria, cf., por todos, ARAÚJO, Marcelo Labanca Corrêa de. Jurisdição Constitucional e Federação: o princípio da simetria na jurisprudência do STF. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p. 116.

4 BICKEL, Alexander M. The least dangerous branch: the Supreme Court at the Bar of Politics. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1962.

Autores

  • Brave

    é advogado e professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco, da Universidade Federal da Paraíba e da Faculdade Damas de Instrução Cristã. Possui mestrado em Direito Constitucional pela PUC-SP e doutorado em Direito Público pela Universidade Federal de Pernambuco. É membro do grupo Recife de Estudos Constitucionais.

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