Ideias do Milênio

"Os Estados Unidos estão tentando criar uma nova ordem mundial"

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1 de janeiro de 2017, 8h44

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Entrevista concedida pelo diretor de cinema americano Oliver Stone ao jornalista Marcelo Lins, para o programa Milênio — programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

Oliver Stone é um dos grandes diretores de Hollywood em atividade. O ativismo político, o aguçado espírito crítico, aparecem nos temas e figuras que ele filma, com estilo mutante onde não hesita em experimentar técnicas e estéticas diferentes. As lentes de Oliver Stone já focaram da Guerra Civil em El Salvador à banda de rock The Doors. Dos atentados de 11 de setembro ao assassinato de John Kennedy, entre muitos outros. JFK, de Stone, foi aliás, um dos seus grandes sucessos. O diretor teve também a sua cota de fracassos de bilheteria e crítica, como foi o caso do épico Alexandre. Mas no balanço de 70 anos de vida, e quase cinco décadas à serviço do cinema, Oliver Stone tem mais a comemorar do que a lamentar. Recebeu três Oscars. O primeiro como roteirista de O Expresso da meia-noite, ainda em 1979. Vieram mais duas estatuetas douradas de melhor diretor, com filmes sobre um de seus temas prediletos, a Guerra do Vietnã, Platoon e Nascido em 4 de julho. Como veterano do Vietnã, Stone conhece bem o assunto e é até hoje um crítico das ações militares americanas pelo mundo. De passagem por São Paulo em outubro para lançar Snowden – Herói ou traidor?, Oliver Stone falou ao Milênio.

Marcelo Lins — Você acha que seu novo filme ajuda a enfraquecer, a desafiar ou a enfrentar o que o próprio Edward Snowden chamou de “arquitetura da opressão”?
Oliver Stone —
Essa é uma ótima expressão. É apavorante pensar que o conceito de 1984, o livro de George Orwell que li na juventude, pudesse se tornar realidade durante minha vida. E se tornou. E foi além, porque a tecnologia é tão sofisticada e gasta-se tanto dinheiro, principalmente os EUA… Temos satélites a 35 mil km no espaço, temos antenas do tamanho da Torre Eiffel espiando todos os lugares do planeta. Queremos saber tudo, coletamos dados do mundo todo. O motivo não é o terrorismo. Isso é só uma desculpa para construir tudo isso e justificar ao povo americano. Porque não é possível prender um terrorista sem espionagem direcionada. Isso funciona, e sempre funcionou. Isso foi uma desculpa criada pela guerra ao terror para assustar todo mundo e obter dinheiro para construir tudo isso. A NSA nunca recebeu tanto dinheiro na vida como recebeu desde 2001. Foi um sonho para eles, que aproveitaram. Foi o equivalente ao que aconteceu com o complexo industrial militar nos anos 1950: o orçamento foi aumentando cada vez mais. Qual foi mesmo a sua pergunta?

Marcelo Lins — Se acha que o filme ajuda a enfraquecer ou a desafiar a arquitetura da opressão.
Oliver Stone —
Filmes não… Talvez eu seja muito cético, mas fiz muitos filmes impactantes e respeitados por muita gente, mas as pessoas esquecem. Acho que o governo tem o poder da mídia corporativa. Como em 1984, a mídia repete. O filme sai de cartaz e, duas semanas depois, você vê o noticiário, que diz: “Medo, terrorismo, terrorismo, terrorismo, medo, segurança, orçamento, dinheiro.” As pessoas reagem a esse estímulo pavloviano em todas as sociedades. Na França também e principalmente na Inglaterra. É a natureza de como as coisas estão avançando no mundo. Num sentido mais amplo, os americanos diriam que não é só uma guerra ao terror, mas uma nova ordem mundial. Essa foi a expressão que George Bush pai utilizou e ela parece correta. Econômica e culturalmente, uma língua com a qual as pessoas podem ser controladas. Um algoritmo seria criado para uma nova ordem mundial e todo mundo o seguiria. O mesmo respeito à lei, as mesmas sanções, e acho que o pré-crime se tornará popular, a intenção de cometer um crime. Chegaremos aos extremos da ficção científica para solucionar a questão da infração à lei e o crime.

Marcelo Lins — Na sua opinião, qual é o papel do cidadão para tentar entender e questionar o que está acontecendo e tentar reagir? Existe uma saída ou não?
Oliver Stone —
Enquanto mantivermos nossa humanidade haverá resistência. Se nos mantivermos humanos, haverá resistência. Acho que a inteligência artificial, os robôs, certamente nos levarão nessa direção. Haverá menos trabalhos para pessoas, e podemos explorar isso para o bem ou para o mal. Infelizmente, graças à natureza da humanidade, temos o desejo, principalmente nos EUA, de agressão. O que o controle total faz… Quando se coleta essa quantidade de dados no mundo todo, seu objetivo é a mudança de regime em países que não se adéquam ao seu plano. O regime mudou na Ucrânia há alguns anos, no Iraque, na Líbia e na Síria, que é algo relevante e muito perigoso. Mas acho que os EUA estão tentando criar uma nova ordem mundial, e o melhor é destruir tudo. Não importa quantas vidas são perdidas, quanta gente morre… Ponha a culpa no inimigo.

Marcelo Lins — Oliver Stone ficou apreensivo com a vitória de Donald Trump nas eleições americanas, mas já estava desconfortável com os rumos do partido democrata. Ainda durante a campanha e com a polêmica dos e-mails de Hillary, disse que a mulher de Bill Clinton o assustava. Mas rejeita a ideia de que a Rússia tenha influenciado de alguma forma a eleição.
Oliver Stone — Sim, a Rússia e os EUA se hackeiam mutuamente e coletam informações há anos. A Inteligência russa certamente colheria informações sobre as opiniões dos candidatos e suas posições. Serviço de Inteligência é isto: saber o que o próximo líder vai fazer, conhecer as políticas dele, mas dizer que os russos poderiam influenciar as eleições americanas é uma acusação insana que só poderia ser criada na estreia de uma histeria, de um macarthismo da Guerra Fria. Acho que Putin fez o melhor comentário: “Acham que os Estados Unidos são uma república das bananas?” E é nisso que estamos nos transformando, num país frágil muito defensivo em relação a nós mesmos e muito envergonhado com essa eleição. Foi uma eleição vergonhosa, porque não houve nada além de verborragia e insultos em vez de questões. Eles nem falaram sobre o sr. Snowden, não mencionaram o estado de vigilância, o controle do clima, as guerras em que estamos envolvidos…

Marcelo Lins — Não discutiram questões. Só houve ataques.
Oliver Stone —
Foi uma campanha de personalidades, mas você perguntou sobre o FBI. O FBI, até onde eu sei… Muda muito, mas essas acusações não partiram do FBI, e sim da campanha de Clinton e do Comitê Nacional Democrata, que chamaram o WikiLeaks de fantoche dos russos e do sr. Trump. Essas acusações são absurdas e falsas. Se você pensar no quadro mais amplo, seria necessário detestar a Rússia, e muita gente nos EUA passou a detestar, para ir tão longe.

Marcelo Lins — O senhor já foi rotulado de “mestre de assuntos polêmicos” ou simplesmente de cineasta de esquerda. Esse tipo de rótulo o incomoda? O que acha que faz diferente de outros cineastas para levar as pessoas a lhe darem esses rótulos?
Oliver Stone —
 É um filme impactante, muito instrutivo. É sobre o estado de espírito atual do país. E eu contei a história dele da forma como ele nos contou, ou seja, é a versão dele dos fatos. Não posso dizer que é a verdade final. Pode ser outra coisa, mas ele foi o único que surgiu do nada e apresentou provas desse estado de vigilância total e clandestina, que inclui guerra cibernética, guerra de drones… O que ele revelou é muito perigoso. Acho que as pessoas não entenderam a gravidade da mensagem em 2013. Acho que as pessoas se concentraram nele, mataram o mensageiro para matar a mensagem, mas ele não cedeu. É consistente, vem dizendo a mesma coisa desde 2013, acredita na reforma, acredita que fomos longe demais, acredita na vigilância direcionada de terroristas, em todas as coisas certas. Muita gente concorda com ele, mas a questão principal se perdeu. Voltando à sua pergunta sobre ser um cineasta de esquerda, eu sempre me considerei um contador de histórias. Eu mergulho na história e a conto pelo ponto de vista daquela pessoa. Foi assim com Snowden: a história é dele. Não é minha. O meu personagem é bem mais volátil e mais ativo. Snowden tem um perfil mais burocrático, é passivo em algumas coisas… E muito metódico e organizado. Eu contei a história de forma metódica, assim como ele vive. Também fiz um filme sobre Nixon, outro sobre George Bush, pessoas que execram minha maneira de pensar. Mas contei bem, no sentido de serem histórias interessantes. Fiz um filme sobre Jim Morrison, que está no extremo oposto. Então eu faço de tudo. Comecei a vida como conservador. Meu pai era muito conservador e eu cresci assim. Então, ao longo da vida, fui me tornando mais progressista. Ou seja, não importa se conto uma história sobre Gengis Khan, Mao ou Fidel Castro, eu conto a história deles. Eu mergulho em pessoas diferentes.

Marcelo Lins — Stone sempre teve um fascínio pela América Latina e por figuras de poder. Fez alguns documentários que passaram despercebidos pelo grande público, mas reforçam essa faceta da carreira do diretor. Esteve na Venezuela filmando Mi amigo Hugo, sobre Hugo Chaves. E também passou por Cuba, onde filmou “Comandante”, um documentário onde tenta explicar uma das figuras mais emblemáticas e controversas do século XX, Fidel Castro. Qual é a sua relação com a América Latina e como vê a região hoje?
Oliver Stone —
Acho que é a dramaticidade. Salvador é uma ótima história porque conheci um jornalista que estava lá durante a guerra civil, Richard Boyle, que acabou de morrer, lamentavelmente. Boyle me levou para conhecer quatro repúblicas da América Central, e o que eu vi foi assombroso. Porque eu tinha estado no Vietnã. Eu já tinha idade para entender o complexo do Vietnã. Eu vi os soldados americanos, vi os Contras, os esquadrões da morte…

Marcelo Lins — O assassinato do cardeal.
Oliver Stone —
Aquilo foi horrível. A mesma coisa acontecia no Vietnã, e os EUA, infelizmente, estavam sempre do lado errado, com os caras errados! Eu não sabia se voltaria a trabalhar, porque Salvador teve orçamento muito limitado e eu disse tudo que queria dizer, não estava nem aí. James Woods fez um discurso, e foi um belo discurso: “Mesmo se eu morrer amanhã, fico do lado de El Salvador.” Ele se referia ao povo, à mão de obra, aos trabalhadores, aos agricultores, às pessoas decentes que precisam ser tratadas com justiça numa sociedade. É isso que foi perdido, e essa desigualdade é muito presente na América Latina. A população carente é imensa e a classe militar representa a autoridade dos oligarcas. Isso existe em todos os países. As diferenças são muito gritantes na América Latina, e era isso que me interessava. E começamos a ver isso nos EUA. Então esse meu último filme talvez seja sobre voltar para o meu país. Snowden faz parte disso. É um filme sobre os EUA.

Marcelo Lins — Outro assunto que você revisita bastante é o Vietnã. Você esteve lá como soldado e fez alguns filmes sobre o assunto. O que acha que a guerra do Vietnã e o papel dos EUA nela dizem sobre a sociedade americana e a forma como os EUA veem o mundo?
Oliver Stone —
Infelizmente as testemunhas estão morrendo. Pouca gente se lembra tão bem quanto aqueles de nós que servimos no Vietnã, mas aquilo foi um fiasco, foi uma guerra destruidora de almas que durou quase oito anos e foi a pior. Nós bombardeamos, promovemos um genocídio de vietnamitas, matamos muitos laosianos, o Camboja foi muito prejudicado por nossos bombardeios, o que levou ao Khmer Vermelho. Segundo McNamara, entre 3,6 milhões a 3,8 milhões de vietnamitas foram mortos na guerra. Foram 6 milhões de judeus na Segunda Guerra e 10 milhões de russos. 3,8 milhões de habitantes de um país pequeno morreram. Podemos dizer que a culpa foi dos comunistas e tal, mas não estávamos combatendo o comunismo. Estávamos combatendo as reformas. O governo do Vietnã do Sul foi uma invenção dos EUA, assim como fazemos com muitos países: criamos governos que nos convêm, eles não funcionam e gastamos uma fortuna amparando-os, como no governo do Afeganistão ou do Iraque. No Iraque foi diferente, mas estamos tentando o mesmo na Síria. Achamos que, mudando o regime, as pessoas pensarão como nós pensamos. Mas isso não funciona. A vida é tão plural! Permita que ela seja assim, permita que culturas diferentes existam. Qualquer um que queira transformar o mundo num único país é um tirano. E nós estamos indo nessa direção.

Marcelo Lins — Você mencionou Nixon, que é um dos filmes que receberam críticas positivas, mas que não foi um sucesso de bilheteria. O mesmo aconteceu com Alexandre e com algum outros filmes seus. Qual é o papel do fracasso na sua vida? Sei que é muito premiado: ganhou o Oscar três vezes e recebeu várias indicações, mas qual é a importância do fracasso na sua carreira e na sua vida?
Oliver Stone —
Às vezes aprendemos mais com o fracasso. Precisamos de sucesso porque ele ajuda a acreditarmos em nós mesmos. Se só fracassássemos, perderíamos a confiança, mas o fracasso nos ensina, nos mantém humildes. E eu tive vários fracassos, como você sabe. Acho que fazemos filmes bons de qualquer forma. E se deixamos que eles sigam seu curso natural, nos sentimos melhor. Se eu tivesse um imenso sucesso comercial que não deixasse marca nenhuma, não acho que me sentiria bem.

Marcelo Lins — Li em algum lugar que você disse que JFK era seu melhor filme.
Oliver Stone —
Eu nunca disse isso. Eu não tenho um preferido. Todos foram dolorosos de fazer. Cada um teve uma vida própria, um destino diferente.

Marcelo Lins — O que pensa em fazer a seguir? Está cansado da indústria, de fazer filmes? Ou ainda tem curiosidade de contar outras histórias e explorar outros personagens?
Oliver Stone —
Eu continuo curioso, mas acho que esse ramo está se esgotando e que a indústria do cinema nos EUA está morrendo. Está tudo migrando para a TV e outras plataformas. Estamos vivendo uma mudança importante, como a chegada do som ao cinema nos anos 1930. É preciso surfar a onda o máximo possível. Essa é a natureza da vida, ela muda. Eu espero poder contribuir para a cultura se a cultura ainda estiver disposta a ouvir. Snowden não teve uma bilheteria muito boa nos EUA. Recebeu críticas duras. Na Europa recebemos ótimas críticas, porque acho que eles entendem melhor o caso e estamos tendo uma bilheteria melhor.

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