Opinião

Calvário da Justiça e da política começou bem no início de 2016

Autor

  • Henrique Nelson Calandra

    é desembargador aposentado do TJ-SP especialista em Direito Empresarial e professor emérito da Escola Paulista da Magistratura. Foi presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Associação Paulista de Magistrados (Apamagis).

1 de janeiro de 2017, 5h54

A crise política, econômica, social e moral pela qual passa o Brasil afeta a todos, independentemente da avaliação que façamos e de como gostaríamos que ela fosse superada. O fato é que 2016 foi um ano sofrido para todos. Não se pode distinguir entre vítimas e algozes. Todos podemos ter sido nossos próprios algozes, pelas opções passadas e presentes que levaram aos dilemas atuais. Mas foi um ano cujo final será feliz se soubermos assimilar as lições recebidas e mudar para melhor em 2017.

O calvário da Justiça e da política no Brasil começou bem no início de 2016. A sombra do impeachment que pairava sobre a cabeça da então presidente Dilma Rousseff não aparentava ser mais que uma nuvem passageira. Àquela altura, pesquisa Datafolha mostrava que, entre 138 deputados indecisos, Dilma precisaria conquistar apenas 12 para chegar ao número mágico (171 votos) que barraria seu afastamento na Câmara. Nos meses que se seguiram, porém, o prognóstico piorou sensivelmente. Protestos a favor do impedimento tiveram adesão recorde e Dilma viu seu principal aliado, o PMDB, desembarcar do governo a menos de um mês da votação. Em 17 de abril, deputados aprovaram a abertura do processo, e, em 11 de maio, a presidente foi afastada temporariamente do cargo. Não voltaria mais: Michel Temer, que assumiu interinamente no dia seguinte, foi referendado pelo Senado em agosto.

Dilma foi a sexta pessoa a ser eleita presidente da República e a não concluir o mandato. O processo de impeachment foi o segundo na história do país — o primeiro, de Fernando Collor, ocorreu em 1992.

Cronologia do impeachment
21.out.15  pedido de impeachment assinado por Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal é entregue na Câmara;
2.dez.15 — Eduardo Cunha, então presidente da Câmara, aceita o pedido e dá início ao processo;
17.abr.16 — Câmara dos Deputados autoriza a abertura do processo de impeachment contra Dilma, com 367 votos a favor e 137 contra;
11.mai.16 — Senado decide pela instalação do processo de impeachment, o que leva ao afastamento de Dilma; sessão dura 21 horas;
12.mai.16 — Michel Temer, até então o vice, é empossado como presidente interino;
31.ago.16 — impeachment é aprovado no Senado, e Dilma é afastada da Presidência em definitivo.

Além disso, até novembro de 2016, o total de penas da "lava jato" foi de 1.133 anos de prisão, de acordo com o Ministério Público Federal do Paraná. Quem da classe política passou pela prisão em 2016 foi:

  • Eduardo Cunha (PMDB): foi protagonista de grandes mudanças na realidade nacional. Admitiu e fez processar o impedimento da presidente da República, obteve o afastamento dela e, depois, acabou sacado do cargo de presidente da Câmara e teve o mandato cassado por seus pares. Ele foi preso pela "lava jato" em Brasília, no dia 19 de outubro. A prisão preventiva de Cunha foi decretada pelo juiz Sergio Moro. Na ação, ele responde a acusações de corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Sua defesa considera a prisão um absurdo e alega que foi decretada sem haver fato novo. Ele próprio diz ser vítima de vingança do PT;
  • Sérgio Cabral (PMDB): ex-governador do Rio, foi preso em 17 de novembro, em seu apartamento no Leblon. É acusado na operação calicute de chefiar esquema de propina de empreiteiras em contratos com o Estado;
  • Anthony Garotinho (PR): ex-governador do Rio, foi preso preventivamente pela Polícia Federal na operação chequinho, em 16 de novembro, sob a acusação de comandar esquema de compra de votos em Campos dos Goytacazes (RJ). Após passar mal, se debateu na maca em que seria levado, de ambulância, de volta ao presídio;
  • Guido Mantega (PT): ex-ministro da Fazenda, é acusado de negociar repasses de recursos ilegais. Foi preso em um hospital em 22 de setembro, enquanto acompanhava a mulher, que faria uma cirurgia. Ele foi apontado pelo empresário Eike Batista, na "lava jato", como responsável por pedir doação de R$ 5 milhões para o PT. Após cinco horas, a prisão foi revogada por Moro;
  • Gim Argello (ex-PTB): acusado na "lava jato" de receber propina de empreiteiras, o ex-senador Argello (à época, do PTB) foi preso em 12 de abril, também suspeito de ter blindado a convocação de empreiteiros em CPIs. Em outubro, foi condenado a 19 anos de prisão por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e obstrução à investigação;
  • Antonio Palocci: em 26 de setembro, a Polícia Federal prendeu o ex-ministro da Fazenda e da Casa Civil nos governos de Lula e Dilma. Investigação da "lava jato" apontava indícios de relação criminosa entre Palocci e a empreiteira Odebrecht, com propinas de R$ 128 milhões;
  • Ruy Muniz (PSD): então prefeito de Montes Claros (MG), foi preso sob suspeita beneficiar um hospital de parentes. A PF o prendeu na operação máscara da sanidade II em 18 de abril, um dia após sua mulher, a deputada federal Raquel Muniz, tê-lo elogiado durante seu voto a favor do processo de impeachment de Dilma. Solto, ele concorreu à reeleição municipal e foi derrotado.

Assim, o ano de 2016 foi marcado e termina com pesado passivo político:

  • incerteza sobre a continuidade do chefe de Estado;
  • a devastação causada pela"lava jato" nas lideranças políticas;
  • a crise da esquerda e o consequente reforço do enraizado conservadorismo brasileiro evidenciado nas eleições municipais;
  • a redução da confiabilidade em políticos, partidos, instituições e no próprio sistema representativo vigente;
  • e a demonstração de que, 31 anos após a redemocratização, nossas instituições continuam frágeis e nosso sistema representativo é incapaz de processar os conflitos de interesses inerentes a uma sociedade escandalosamente desigual.

Interessante notar que, de positivo, deve-se apontar a democratização da Justiça. Há que reconhecer que, levando-se também em conta o julgamento do mensalão, pela primeira vez na história do país, ricos e poderosos foram, e continuam indo, para a cadeia, indicador de grande avanço republicano. Também, frente à desmoralização do Legislativo e do Executivo, o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal têm agido em consonância com o grosso da opinião pública. A corte suprema caminha nessa direção, acumulando credibilidade, entretanto, ao aceitar o acordo forçado pelo presidente do Senado, um réu que ela própria terá que julgar, acende o sinal amarelo. Ainda no lado positivo, tendo em vista nossa tradição, há que registrar o silêncio das Forças Armadas.

O ano de 2016 ficará conhecido pelo impedimento da presidente da República, embora troca de presidentes fora do calendário eleitoral não seja novidade entre nós. Basta lembrar que, em 86 anos, de 1930 até hoje, apenas quatro presidentes eleitos pelo povo completaram seus mandatos: Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma no primeiro mandato. Isso quer dizer que nossa República pós-1930, passadas duas ditaduras e 26 anos de governo democrático, continua incapaz de roteirizar a troca de governantes.

Não é por menos que o novo governo herdou a ingrata tarefa de enfrentar a maior crise econômica já vivida pelo país. De início, ele foi visto com moderado otimismo por contar com base parlamentar suficiente para fazer aprovar reformas impopulares exigidas para o reequilíbrio das contas públicas. Mas o presidente logo se viu forçado a enfrentar a reação das ruas às reformas e, sobretudo, o enfraquecimento de sua base pela artilharia da "lava jato". Seu próprio mandato passou a ser colocado em dúvida, agravando-se o estado de incerteza em que vive o país.

Essas dificuldades políticas, por sua vez, têm dificultado a implementação de iniciativas que reponham a economia na rota do crescimento, condição indispensável para reduzir os 12 milhões de desempregados e retomar as políticas sociais.

Ao finalizar o ano, um dos primeiros empresários a ser preso, Marcelo Odebrecht, e todo o grupo de executivos da construtora, implicados nas operações, que ele liderava, fazem aquilo que a mídia classifica como o maior acordo de delação premiada e de leniência do mundo, realizado em um só tempo no Brasil, nos Estados Unidos e em vários outros países. A expressão para finalizar o ano é “eu, pecador, me confesso”, porém, no confessionário do Ministério Público e da magistratura brasileira. Salvar milhares de empregos diretos e indiretos e toda a parte boa de uma megaempresa, punindo os que violaram a lei é o grande presente que as instituições brasileiras darão ao nosso povo e ao mundo. Aqui não serão apenas mãos limpas, será um país mais limpo, no qual se compreenda que vale a pena cumprir a Constituição e as leis.

Em suma, estamos vivendo tempos difíceis para todos, e sofridos. Mas é nesse cadinho das dificuldades que se forjam os espíritos grandes, que têm a capacidade de ver além dos obstáculos e reconhecer o que é preciso mudar. 

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