Opinião

Exigir torcida única nos estádios é decretar a falência do Estado

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  • Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga

    é advogado Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa Professor CBF Academy; Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo; Presidente da Comissão de Direito Desportivo do IAB; Secretário Geral da Comissão de Direito Desportivo do Conselho Federal da OAB.

27 de fevereiro de 2017, 6h16

Os episódios de violência nos estádios de futebol provocam consequências inusitadas. Infelizmente, a violência é uma característica do ser humano e que pode se manifestar de forma exagerada quando há uma reunião de pessoas.

Todavia, a medida que impõe a proibição de comparecimento de uma das torcidas em jogos de alto grau de rivalidade, além de pouco inteligente, demonstra a falência do Estado no tocante ao cumprimento de um de seus deveres: a segurança pública.

Os atos selvagens praticados por determinadas torcidas organizadas não podem prejudicar os torcedores que queiram comparecer ao estádio com crianças e idosos para assistir a um espetáculo, devendo ser ressaltado que lei federal, no caso o Estatuto do Torcedor, afirma que “o torcedor tem direito a segurança nos locais onde são realizados os eventos desportivos antes, durante e após as realizações das partidas”.

Isso sem falar da própria Carta Magna que prevê, no artigo 217, parágrafo 3º, que o lazer deve ser incentivado pelo poder público, como forma de promoção social, fazendo com que o desporto seja uma importante ferramenta de inclusão social, e não de segregação social.

Não é justo que uma pequena horda de vândalos a arruaceiros prejudique milhares de pessoas que querem apenas se divertir.

No intuito de se evitar essa manifesta injustiça, é necessária a punição severa desses agressores, bem como a adoção de práticas eficazes no intuito de proibir que tais atos se repitam.

Inicialmente, deve ser destacado que a segurança desses espetáculos é de responsabilidade de entidade privada. Contudo, em razão da grande concentração popular, também é responsabilidade do Estado, razão pela qual trata-se de uma cooperação mista entre ente público e privado com o objetivo de assegurar a segurança e integridade física da população.

É necessário que a polícia esteja devidamente preparada para impedir e evitar esses atos. Por outro lado, a identificação dos agressores permite a adoção das penas mais severas. Caso isso não seja possível, o clube mandante também tem que ser penalizado, pois assim consta do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, mas especificamente no artigo 213, que pune o clube que deixar de tomar providências para prevenir e reprimir desordens em sua praça de desporto.

Contudo, estudos demonstram que a violência praticada por torcedores de clubes, na maioria das vezes, acontece longe dos estádios de futebol, o que afasta a responsabilidade dos clubes e atrai a responsabilidade do Ministério Público para fiscalizar e denunciar os membros de torcidas organizadas.

Com efeito, a responsabilidade pela segurança do torcedor em evento desportivo é da entidade de prática desportiva detentora do mando de jogo e de seus dirigentes. As penas aplicadas aos clubes que tenham integrantes de suas torcidas como participantes de atos de violência são de competência do STJD, cabendo ao Ministério Público denunciar os infratores que deverão responder criminalmente pelos atos de vandalismo e violência.

Insta salientar que as entidades responsáveis pela organização da competição, o detentor do mando do jogo e os dirigentes são solidariamente responsáveis, de forma objetiva — ou seja, independentemente da existência de culpa — pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de faltas de segurança nos estádios.

Talvez o grande problema seja a sensação de impunidade de bandidos travestidos de torcedores, que espantam o cidadão de bem que vai ao estádio torcer para a realização de um belo espetáculo, mesmo quando o seu time não está entre os protagonistas.

É de fundamental importância que o artigo 39-A do Estatuto do Torcedor (Lei 10.671 de 15/5/2003) seja rigorosamente cumprido, pois se trata de medida que poderá inibir a prática de violência, na medida em que sua disposição prevê que “a torcida organizada que, em evento desportivo, promover tumulto; praticar ou incitar a violência; ou invadir local restrito aos competidores, árbitros, fiscais, dirigentes, organizadores ou jornalistas será impedida, assim como seus associados ou membros, de comparecer a eventos esportivos pelo prazo de até 3 (três) anos”.

Outra atitude manifestamente equivocada é a criminalização das torcidas organizadas. Com efeito, são elas as grandes responsáveis pelo espetáculo nas arenas desportivas. Infelizmente, algumas pessoas infiltradas podem praticar atos criminosos, razão pela qual essa conduta é que deve ser reprimida, sendo injusta a generalização, ou tentativa de banimento das torcidas organizadas, tendo em vista que todos os órgãos da sociedade estão passíveis de serem infiltrados de criminosos. Prevenir é mais eficiente do que remediar.

Chega a ser ingênuo o comportamento daqueles que pregam a extinção das torcidas organizadas. Tal ato pode ser comparado ao ato do marido que flagra a mulher o traindo com uma pessoa no sofá de sua sala e sua atitude é a de se livrar do sofá.

Certamente que os criminosos que estavam infiltrados naquelas organizações atuarão em outra frente, e o problema continuará.

De acordo com o sociólogo Maurício Murad, o banimento das torcidas organizadas não é o caminho certo, pois, de acordo com pesquisa por ele elaborada nas últimas décadas, apenas 5% a 7% dos membros das torcidas organizadas são "bandidos" que cometem delitos e, por isso, não seria justo punir a maioria por causa dos atos de uma minoria.

Com efeito, não seria justo postular a extinção do Ministério Público diante de eventual conduta criminosa praticada por um ou dois de seus membros.

Tal situação não é exclusividade do Brasil. Nas décadas de 1970 e 1980, o futebol inglês experimentou dias difíceis com a violência de torcedores conhecidos como hooligans.

Pelo menos duas tragédias envolvendo times britânicos fizeram o país tomar medidas drásticas para combater o problema. A primeira delas ocorreu durante a final da Copa dos Campeões em 1985, em Heysel, quando 35 torcedores da Juventus morreram em uma briga com torcedores do Liverpool.

A segunda ficou conhecida como a tragédia de Hillsborough, quando 96 torcedores do Liverpool morreram na cidade de Sheffield, durante a final da Copa da Inglaterra, esmagados contra as grades por causa da superlotação do estádio no ano de 1989.

Este último incidente inspirou a elaboração do relatório Taylor, apresentado no Reino Unido, tendo sido comprovado, naquela ocasião, que a tragédia não foi provocada por venda de bebidas alcoólicas ou por violência praticada por torcidas organizadas, mas em razão de desorganização, despreparo e superlotação.

Coube a então primeira-ministra, Margareth Thatcher, adotar medidas drásticas, na década de 1990, para acabar com os hooligans e a violência no futebol inglês. A primeira medida anunciada foi a reforma nos estádios. Em vez das tradicionais arquibancadas de cimento e alambrados, foram introduzidas as cadeiras. A segunda medida (de eficácia comprovada) foi a punição severa a torcedores envolvidos em confusões e ingressos mais caros.

Por fim, cumpre reiterar que, de acordo com o Estatuto do Torcedor, é dever do Estado, das entidades desportivas e dos seus dirigentes garantir e implementar planos de ação sobre a segurança aos torcedores,

Com efeito, a adoção de “torcida única” em clássicos é o mesmo que assumir a incapacidade de praticar um ato inerente à própria atividade. É como um atacante dizer que não consegue chutar a bola em direção ao gol.

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