Segunda Leitura

A utilidade da crise econômica para a administração da Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

26 de fevereiro de 2017, 8h00

Spacca
Vladimir Passos de Freitas [Spacca]O Brasil passa por uma crise econômica única em sua história. Mais de 12 milhões de desempregados não deixam dúvidas sobre as dificuldades deste momento da vida nacional. E quem não quiser se dar ao trabalho de ler a respeito, poderá chegar à mesma conclusão ao olhar o aumento de indigentes nas ruas das médias e grandes cidades, sem falar que quase todas as famílias sofrem o drama da perda do emprego.

Crise econômica significa recolhimento menor de tributos e isto significa orçamento e partilha menor entre os órgãos públicos. Todos sofrem de alguma forma, uns mais, outros menos. A reação sempre é de revolta, pois cada órgão da administração pública já se acreditava piamente vítima de uma divisão que não lhe fazia justiça e, portanto, concluirá ser um absurdo duplo vir, agora, a perder recursos.

Porém, atrás disto estão estados endividados ao extremo, liderados pelo Rio Grande do Sul, que destina 82,3% de sua arrecadação ao pagamento de pessoal,[1] e pelo Rio de Janeiro, que vive, desde 17 de junho de 2016, em estado de calamidade pública,[2] sem conseguir pagar os funcionários e pensionistas, fruto não apenas da crise econômica, mas também de uma corrupção sem precedentes, que levou seu hedonista ex-governador Sérgio Cabral a trocar, neste ano, o camarote do desfile carnavalesco por uma cela no presídio de Bangu.

Na atual crise econômica ninguém passa incólume, inclusive o Poder Judiciário. Mas, se à primeira vista isto pode ser considerado lamentável, em um segundo momento pode ser encarado como uma salutar novidade em nossa vida pública. Sim, porque a crise obriga todos a se reinventarem de forma a fazer mais com menos. As empresas fazem isso há muitos anos. Basta ver que, colocada a frase “empresas se unem para reduzir gastos” no Google, surgem nada menos que 733 mil resultados. [3] São muitos exemplos, das mais variadas formas e áreas, de reduzir-se despesas e alcançar-se maior produtividade.

Pois bem, no âmbito dos órgãos das administração da Justiça, especialmente tribunais e Ministério Público, sempre se reclamou que o orçamento era inferior às necessidades, mas nunca houve preocupação séria e efetiva, de redução de custos e melhor aproveitamento das verbas disponíveis. Regra geral, a cada ano apanhava-se o orçamento anterior e promovia-se a correção monetária, encaminhando-o ao Poder Executivo. Depois, faziam-se contatos junto ao Congresso (Justiça da União) ou Assembleias Legislativas (Justiça dos estados), para justificar ou reivindicar algo especial, como a construção de um Fórum.

A crise econômica alterou estes hábitos. Pela primeira vez sem verbas para o essencial, presidentes de tribunais e procuradores-gerais viram-se obrigados a estudar cada gasto, a avaliar a necessidade, a verificar onde havia bens sobrando e onde estavam faltando, de modo a fazer uma distribuição adequada e, principalmente, a estudar e encontrar saídas inteligentes para a inusitada situação.

No entanto, parece que alguns insistem em manter-se alheios à realidade. Recentemente, o procurador-geral da Justiça do Ministério Público do Mato Grosso do Sul, Paulo Cezar dos Passos, encaminhou à Assembleia Legislativa dois projetos de lei, visando aumentar as vantagens existentes. Em um deles “um promotor promovido, ou mesmo removido compulsoriamente, passaria a receber R$ 43.421,32 de 'ajuda de custo em caráter indenizatório' ao mudar da sede da comarca”. [4] Nada mal para uma mudança, principalmente porque, sendo indenização, não incide imposto de renda. Além disto, segundo o mesmo site, propôs que a licença prêmio pudesse ser recebida em dinheiro e, para auxílio educação e saúde, mais R$ 1.447,37 por promotor e R$ 1.523,55 por procurador. Sem ter em conta o fato de que os vencimentos iniciais da classe (R$ 23.512,65, em 2015) são mais que suficientes para uma família viver muito bem, que no Brasil conseguir um emprego de R$ 2 mil é uma conquista difícil e que seu estado encontra-se na modesta posição de 17º colocado no PIB nacional. [5]

Pois bem, à parte medidas como este irreal projeto de lei, que diga-se de passagem não é privilégio do MP-MS, há medidas boas que já vêm sendo tomadas. Vejamos algumas:

a) Alteração de horários de trabalho, de forma a utilizar mais luz natural do que energia elétrica;

b) Troca de lâmpadas, introduzindo-se as que gastam menos energia;

c) Diminuição de horas extras;

d) Renegociação de contratos de locação, buscando preços menores;

Poder-se-ia pensar também em medidas pouco simpáticas, mas necessárias, não só para os agentes políticos (magistrados e agentes do MP), mas também para defensores, procuradores, servidores e outros agentes, como:

a) Criação de equipe (3 membros,1 juiz e 2 servidores) para estudar e propor, em 60 dias, medidas de economia de recursos;

b) Cursos de capacitação, quando possível, on line;

c) Fiscalização maior no pagamento de indenizações por remoções, muitas vezes analisadas formalmente e não na realidade (por exemplo, pede-se indenização para filhos quando se sabe que estes já residem no local da mudança);

d) Criação de uma Secretaria única para diversas Varas Judiciais, economizando e especializando mão de obra, medida esta já tomada nos Juizados Especiais Federais de São Paulo, com sucesso;

e) Vedação do pagamento de férias e licença-prêmio em pecúnia, algo constantemente vedado por leis, mas sistematicamente descumprido;

f) Reanálise da necessidade de entrega de aparelhos eletrônicos em consignação. Por exemplo, qual a necessidade de o diretor de Secretaria de uma Vara receber um celular? Obviamente, todos têm celulares e para uma eventual comunicação com o juiz ou servidores, com certeza será usado o Whatsapp, que é gratuito;

g) Eliminação de carta com AR, algo que, no mundo digital em que vivemos, chega a ser ridículo;

h) Eliminar revistas impressas com acórdãos, uma vez que o acesso às decisões via internet tornou-as obsoletas;

i) Eliminar os copos descartáveis que, além de caros, ainda causam dano ambiental. Para consumo de água, cada um poderá ter seu copo ou caneca;

j) Admissão de voluntários, medida tomada no TRF-4 em 2004, com absoluto sucesso, e que hoje já existe em alguns tribunais;

k) Admissão de estagiários voluntários, contando as horas como prática para fins curriculares, tudo através de convênios com as faculdades de Direito.

No corte de verbas, até onde possível, deverão ser mantidos os chamados “terceirizados, que são os que realizam as tarefas mais simples e que necessitam de seus salários para a própria sobrevivência

Mas tudo isto só terá sucesso se a cúpula do órgão assumir tal posição. Se os que comandam, principalmente o presidente de um tribunal ou o procurador-geral, não derem o exemplo (por exemplo, economizando papel), é óbvio que os comandados não se esforçarão.

De tudo o que foi dito, é possível chegar-se à conclusão de que a crise tem seu lado positivo e pode significar a conscientização dos administradores dos órgãos vinculados à distribuição de Justiça, no sentido de melhor aproveitar o dinheiro público. Para tanto, além da ação positiva dos que detêm poder de mando, é imprescindível que a sociedade colabore com sugestões criativas e com críticas, quando for o caso.


Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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