Observatório Constitucional

Indicação para o STF e a responsabilidade do presidente da República

Autor

25 de fevereiro de 2017, 8h05

A cada vaga que se abre no Supremo Tribunal Federal, renovam-se as discussões em torno do melhor perfil para a corte. A principal variável presente nos comentários e artigos que se dedicam ao tema é a identificação da “ideologia” do candidato e o seu nível de envolvimento político, que, para muitos, provavelmente será projetado no trabalho como ministro do STF. Nessa linha, toma-se como um defeito estrutural do currículo do candidato a sua prévia atuação política ou que resvale em relações com políticos. Assim sendo, juristas que já tenham atuado como secretários, ministros ou mesmo parlamentares são sumariamente descartados. Advogados que já tenham atuado como representantes de políticos ou partidos também são logo considerados inapropriados.

Há uma ingenuidade na sugestão de que pessoas com esse capítulo em suas histórias profissionais não teriam a necessária isenção para atuar como ministros, uma vez que agiriam de maneira a perpetuar as bandeiras político-partidárias de quem os indicou ou das quais se envolveu no passado. No campo acadêmico, esse recorte na avaliação do candidato é acompanhado de argumentos, dados e projeções que tentam demonstrar que, em sua indicação, o presidente da República escolhe o seu nome de maneira a manter sua influência ideológico-partidária (ou mesmo pessoal) nas decisões de governo ou normativas que o STF certamente tomará[1]. Haveria, portanto, uma espécie de “projeto político” de continuidade por trás da indicação de qualquer pessoa ao STF.

Paralelamente, dentre os estudiosos dos trabalhos da suprema corte, há um certo fetiche em tentar enclausurar a dinâmica de decisões da corte em modelos objetivantes de análise, baseados em linhas narrativas que tentam explicar as atitudes de determinados ministros do passado. Nos Estados Unidos, por exemplo, o modelo atitudinal foi já bastante estudado e discutido, separando-se os juízes da Suprema Corte de acordo com suas posturas e visões de mundo[2]. O termo ativismo judicial, por exemplo, foi formatado a partir da classificação de “perfis” dos juízes da Suprema Corte americana feita pelo analista Arthur Schlesinger Jr. em seu famoso artigo de 1947, em um esforço de redução para explicação da postura da Suprema Corte naquele período[3].

Tais modelos de captação empírica do retrato de comportamento do tribunal pode mesmo trazer algum sentido de entendimento em relação ao passado, na tentativa, quase que pedagógica, de explicar a sucessão de julgamentos em um determinado período. Entretanto, sua utilidade fica demasiadamente prejudicada quando tais modelos se dirigem a antecipar decisões ou antever futuros momentos da corte. O equívoco parece se destacar mais ainda quando se presta a prejulgar nomes para o tribunal a partir de descrições de sua personalidade ou visão de mundo.

Não só a própria história contesta a consistência desse tipo de análise como também há sérias dúvidas em relação à possibilidade de importação de modelos americanos de análise na perspectiva de realizar essa “futurologia”[4]. Sistemas binários de avaliação parecem não resumir na sua inteireza toda a complexidade que há no exame de um nome e na forma como esse candidato, se aprovado, encaixará na geopolítica de plenário do STF.

A própria objeção a nomes que tenham atuado como políticos ou trabalhado com políticos ou partidos parece não encontrar qualquer fundo seguro, embora seja subjetiva a avaliação de um “bom” ou “mau” ministro. São inúmeros os ministros de escol do STF que se enquadrariam nesse modelo e que, ao contrário, fizeram história com suas participações: o ministro Nelson Jobim (1997-2006) foi deputado federal pelo PMDB e ministro da Justiça no governo FHC; o ministro Maurício Corrêa (1994-2004) foi senador pelo PDT e ministro da Justiça do governo Itamar Franco; o ministro Francisco Rezek (1983-1990 e 1992-1997), que foi ministro das Relações Exteriores do governo Collor; o ministro Paulo Brossard (1989-1994) foi deputado federal e senador pelo MDB e PMDB e ministro da Justiça do governo Sarney; o ministro Oscar Corrêa (1982-1989) foi deputado federal pela UDN e ministro da Justiça do governo José Sarney; o ministro Adaucto Cardoso (1967-1971) foi deputado federal pela UDN e presidente da Câmara dos Deputados em 1966; o ministro Bilac Pinto (1970-1978) foi deputado federal pela UDN e presidente da Câmara dos Deputados em 1965; o ministro Aliomar Baleeiro (1965-1975) foi deputado federal pela UDN; o ministro Prado Kelly (1965-1968) foi deputado federal da UDN e ministro da Justiça do governo Café Filho; o ministro Carlos Maximiliano (1936-1941) foi deputado federal e ministro no governo Getúlio Vargas. Além desses, vale o registro dos ministros Evandro Lins e Silva (1963-1969), que foi chefe de Gabinete Civil no governo de João Goulart e ministro das Relações Exteriores; Victor Nunes Leal (1960-1969), que foi chefe do Gabinete Civil do governo Juscelino Kubitschek; e Hermes Lima (1963-1969), que foi ministro do governo João Goulart e primeiro-ministro no período parlamentarista. Há de se fazer também aqui o registro da situação impar do ministro Epitácio Pessoa (1902-1912), que foi ministro de Estado antes de sua indicação e, após sair do STF, foi procurador-geral da República, senador e presidente da República entre 1919 e 1922.

É importante destacar ainda que, ao longo da história do STF, criavam-se expectativas em relação à atuação dos ministros por causa de suas posições políticas ou mesmo ideológicas, expectativas negativas essas que nunca se confirmavam. O ministro Ribeiro da Costa, presidente do STF em março de 1964 e advindo de família militar, por exemplo, nunca adotou posição subserviente em relação ao regime dos militares. Ao contrário, surgiu com uma das vozes mais eloquentes e altivas contra a corrosão da independência do tribunal[5]. O ministro Aliomar Baleeiro, egresso no STF por causa das vagas criadas pelo AI 2, de 27/2/1965, e membro da “Banda de Música”, teve atuação liberal no STF sempre voltada à defesa do Estado de Direito[6]. O ministro Adauto Lúcio Cardoso, que fora deputado pela UDN e Arena e indicado ao STF pelo presidente Castelo Branco, foi o protagonista — embora haja controvérsias históricas — do célebre episódio, ocorrido em 1971, de ter abandonado acintosamente o Plenário do STF jogando a sua capa e anunciando a sua aposentadoria, ao se revoltar com a decisão do tribunal pela constitucionalidade da lei da censura prévia editada durante o governo Médici (Decreto-Lei 1.077, de 26/1/1970). Esses são alguns bons exemplos, durante período difícil de nossa história, de atuação digna de ministros que tinham forte vinculação político-partidária antes de suas judicaturas.

Não há, portanto, relação direta, confirmada pelo laboratório da história, entre perfil político ou atuação partidária e eventual indignidade no exercício da judicatura no STF. Ao contrário, a experiência no campo do diálogo, do exercício político de função executiva ou desempenho de mandato eletivo auxilia no necessário bom senso e discernimento que um ministro do STF precisa ter necessariamente ao julgar as questões constitucionais.

Quem estuda e se interessa pela história (no caso, a história do STF), desenvolve certa reverência pela experiência e pela tradição. Existe, nesse contexto, uma espécie de sentido histórico e de inteligência na indicação de um nome à vaga no STF pelo presidente da República (artigo 101, parágrafo único, da CF e que já foi o artigo 48, 12º, da CF/1891; artigo 74 da CF/1934; artigo 99 da CF/1946; e artigo 118, parágrafo único, da CF/1967-1969[7]).

A solidão do presidente da República na escolha que deverá fazer lhe daria também o real alcance de sua monumental responsabilidade. Em um regime democrático, é de se entender que essa responsabilidade não se edifica por meio de mesquinho interesse privado. Não se está a negar que o presidente, no exercício de sua prerrogativa, não tenda a escolher alguém de suas relações pessoais ou políticas. Em realidade, é evidente que assim seja. Desarrazoado seria a indicação de alguém absolutamente estranho à sua pessoal percepção, mesmo que seja um professor renomado de Direito ou um juiz qualificado[8].

Entretanto, a proximidade ou compatibilidade ideológica ou intelectual do candidato com a sua própria deve estar mais orientada ao papel institucional que seu nome desempenhará no STF para além de seu próprio mandato. Esse convencimento pessoal, de foro íntimo, não pode ser restrito por critérios absolutamente irrelevantes para o bom exercício da função de ministro do STF, embora tenha que sê-lo em relação a fatores realmente estruturais para essa função. Um dos mais importantes é a aceitação de seu nome no próprio STF, entre os seus eventuais futuros pares. Essa aceitação, é talvez, mais honrosa, inclusive, do que a própria indicação, como já entendia o ministro Pires e Albuquerque no início do século XX[9].

É esse convencimento pessoal a catalisar a responsabilidade do presidente da República (na expressão de Rui Barbosa, a função “melindrosa e sagrada” do presidente), que é resguardado pelo modelo que adotamos no Brasil de indicação e sabatina e é ele, precisamente, que torna inconveniente alguns formatos e procedimentos de escolha que tentam, ao final, desnaturalizá-lo, como, por exemplo, a publicação de listas pelas associações e corporações (advogados, juízes e membros do MP) e a indicação pelo governo a partir de uma ampla seleção de currículos e entrevistas em que participam, com voz ativa e decisiva, outras autoridades que não sejam o próprio presidente da República.

Desde a sessão de 22/9/1894, quando o Senado brasileiro negou aprovação à nomeação de Barata Ribeiro e se consagrou o sentido da expressão “notável saber jurídico”[10], nosso modelo presidencial e republicano de indicação do postulante à posição de ministro do STF não se alterou. O tempo fez acumular a essência desse modelo de escolha que evita a sua própria vulgarização ou carnavalização. Nas sábias palavras do saudoso ministro Paulo Brossard, em carta escrita ao presidente Itamar Franco, quando da perspectiva da indicação de um nome em virtude de sua própria aposentadoria: “Pode ocorrer que surjam candidatos, mas é preciso não esquecer que ninguém, por mais eminente que seja, tem direito de postular o cargo, que se não pleiteia, e aquele que o fizer, a ele se descredencia; seu provimento é entregue à integridade, descortino e senso de responsabilidade do presidente da República, sujeito apenas ao prazme do Senado Federal”[11].

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] Essa premissa de análise é bem desenvolvida, por exemplo, em TÜRNER, Cláudia; PRADO, Mariana. A democracia e seu impacto nas nomeações das agências reguladoras e ministros do STF. In: Revista de Direito Administrativo – RDA, nº 250, pág. 27-74, jan/abr de 2010.
[2] Ver, nesse sentido, o famoso trabalho de Jeffrey Segal e Harold Spaeth: The Supreme Court and the Attitudional Model Revisited. Cambridge University Press, 2002.
[3] SCHLESINGER Jr., Arthur. The Supreme Court: 1947. In: Fortune Magazine. Janeiro de 1947. Schlesinger classificava os Justices em “judicial activists” e “champions of self restraint”.
[4] Curioso notar que há certa ressalva na adoção dessas visões estrangeiras para o tratamento institucional do STF. Pouco antes do início dos trabalhos constituintes de 1987-1988, por exemplo, a pedido do presidente da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, professor Arinos de Melo Franco, o STF encaminhou sugestões de regulação, em 30/6/1986, do próprio STF e do Poder Judiciário. De maneira a se afastar do modelo das cortes constitucionais, o STF considerou “que o Brasil tem peculiaridades históricas, geográficas, sociológicas, étnicas, com uma formação filosófica, política, econômica, moral e religiosa tão diversificada que é muito perigoso a adoção pura e simples de modelos alienígenas para solução de seus problemas judiciários”. Ver CORRÊA, Oscar Dias. O Supremo Tribunal Federal, Corte constitucional do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1987, pág. 152.
[5] Povoou, por exemplo, no imaginário da comunidade jurídica durante um bom tempo o célebre “episódio das chaves”. Deve-se recordar também seu famoso artigo publicado na Folha de S.Paulo em 19/10/1965 — e, para alguns, a estopim para a publicação do AI 2, de 27/10/1965 — que negava aos militares “nos regimes democráticos… o papel de mentores da Nação”. Ver KAUFMANN, Rodrigo de Oliveira. Memória Jurisprudencial: Ministro Ribeiro da Costa. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2012.
[6] Evandro Lins e Silva em seu O Salão dos Passos Perdidos (Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997, pág. 394), quando questionado acerca de sua relação com Aliomar Baleeiro e Prado Kelly (ministro de vinculação político-partidária radicalmente oposta), assim respondeu: “Era excelente a relação entre nós todos. Hermes Lima era muito amigo do Aliomar havia muitos anos, eram homens quase da mesma geração na Bahia. Eu me dava muito bem com eles. Era um antigo advogado, e eles eram juristas ilustres, eminentes. Havia diferenças pequenas. Diferenças jurídicas, na aplicação das leis e da Constituição, praticamente não havia; eram todos liberais. O próprio Baleeiro, por exemplo, se tornou um juiz extremamente liberal em matéria de habeas-corpus. Ficou famoso por isso”.
[7] Deixa-se de mencionar o artigo 98 da Constituição de 1937 pela inexistência de convocação de eleição para o Conselho Federal.
[8] Citamos o excelente trabalho ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Indicações presidenciais para o Supremo Tribunal Federal e seus fins políticos: uma resposta a Mariana Prado e Cláudia Türner. In: Revista de Direito Administrativo – RDA, Rio de Janeiro, v. 255, pág. 115-143, set/dez 2010, mas discordamos dele também. Sua hipótese dos “fins políticos internos e externos” no presidencialismo de coalisão não parece se sustentar em dados concretos e claros. Em realidade, trata-se de hipótese de dificílima comprovação em virtude da necessidade de se averiguar razões de bastidor que raramente são registradas. O processo de indicação de nome ao STF continua a ser um mistério para quem dele não participa. Talvez, por isso, pesquisadores tentam encontrar uma ratio que permita controlá-lo.
[9] O ministro Pires e Albuquerque foi um dos poucos nomes indicado informalmente pelo próprio STF ao presidente da República e, assim ocorrendo, ameaçou a própria indicação oficial em virtude da aparente interferência do tribunal em assunto que não lhe competia. Teria ele dito a ministro Pedro Lessa, quando ficou sabendo do interesse dos componentes da corte em sugerir o seu nome: “Que preferiria eu? A nomeação para Ministro da nossa mais alta Corte de Justiça ou a honra, sem precedentes, de ser indicado para o cargo pelo Supremo Tribunal, mesmo não sendo nomeado. Eu prefiro esta honra”. GALLOTTI, Luiz. Pires e Albuquerque. In: Sesquicentenário do Supremo Tribunal Federal: conferências e estudos, Universidade de Brasília 11 a 14 de setembro de 1978. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982, pág. 94.
[10] Ver RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo I – 1891-1898, defesa das liberdades civis. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1991, pág. 47.
[11] O caso é narrado por Felipe Recondo em seu artigo Melindrosa e sagrada, publicada no Jota, em 3/2/2015.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!