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"Legalização de todas as drogas aumentaria o número de crimes violentos"

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25 de fevereiro de 2017, 13h13

*Este é o oitavo texto da série produzida pela ConJur sobre a relação entre a guerra às drogas e a superlotação dos presídios. Para ler os outros textos, clique aqui.

A pena de prisão não gera efeitos positivos para a sociedade. A alta recente dos índices de criminalidade, mesmo com o aumento no número de presos neste milênio, deixa isso claro. Para mudar esse cenário, o Estado tem que criar punições que tragam benefícios à população. E isso deve ser feito tanto para condenados pobres quanto para ricos. Essa é a opinião do advogado criminalista Bruno Rodrigues, sócio do Bruno Rodrigues Advogados.

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Com relação aos pobres, o Poder Público tem que realmente investir em educação e trabalho dos presos. E promover políticas para ajudá-lo a se reinserir na sociedade e não ter que voltar a cometer delitos, defende o advogado. Caso contrário, continuaremos tendo níveis elevados de reincidência, aponta.

“Muitas vezes, o preso é solto, mas não tem nem dinheiro para ir para casa. O Estado não está ali para abraçar essa pessoa, não existe uma Secretaria de Assistência Social na saída do presídio para lhe dar um vale-transporte, comida, direcioná-lo para palestras de inclusão social, cursos técnicos. Sem isso, às vezes o primeiro instinto do sujeito é cometer outro delito para pagar a passagem para ir para casa", afirma, em entrevista à revista Consultor Jurídico.

Quanto aos ricos, Rodrigues avalia que seria mais eficaz que eles transmitissem seus conhecimentos ou ajudassem a economia do que trancafiá-los na prisão. 

“Por que o empresário que sonega não pode, de acordo com a especialidade dele, ir dar aula em uma escola pública? Dar palestras no Sebrae?", sugere. "Outra opção seria apertar o bolso dele, que é onde mais dói, obrigando-o a gerar um certo número de empregos, por exemplo. Agora, não precisa colocar aquelas penas alternativas que a sociedade gosta, como botar o cara com roupa de gari para varrer rua, botar o cara para pintar muro. A pena não pode ser humilhação. Pena bem cumprida é aquela que faz o condenado sozinho entender o que fez de errado, sem precisar ser exposto para ninguém.”

Bruno Rodrigues tomou posse no dia 14 de fevereiro como representante da Ordem dos Advogados do Brasil no Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro. Criada em 1924 por decreto presidencial, a entidade tem o poder de fiscalizar a execução penal de quatro maneiras: pela produção de pareceres sobre redução e perdão de penas, que são elaborados com base nos decretos presidenciais de indulto natalino e comutação de penas publicados a cada dezembro e encaminhados ao Judiciário; relatórios sobre as unidades penais, feitos a partir das inspeções e enviados ao Executivo estadual e federal; cerimônias de livramento condicional nas unidades, e acompanhamento dos chamados egressos do sistema prisional, que cumprem pena em liberdade condicional.

Nesta entrevista à ConJur concedida em um restaurante do hotel Copacabana Palace, Rodrigues também criticou o discurso de ódio que reina na sociedade. Disse que usualmente o direito de defesa é respeitado em acusações de tráfico de drogas e atacou o uso de militares em presídios.

Leia a entrevista:

ConJur — Um levantamento do CNJ mostra que 24,4% dos condenados voltam a cometer crimes em até cinco anos. A pena de prisão funciona?
Bruno Rodrigues
— Se funcionasse, não teríamos um sistema carcerário com 622 mil presos. Por que existe pena de prisão? Para tirar essas pessoas do convívio com a sociedade. Ninguém fez um estudo aprofundado para verificar se a prisão é a melhor forma de combater o crime. A prisão não funciona, o sistema faliu. Agora, por que os presos voltam a cometer crimes? Quem está acostumado a visitar os presídios sabe que, muitas vezes, o preso é solto, mas não tem nem dinheiro para ir para casa. O Estado não está ali para abraçar essa pessoa, não existe uma secretaria de assistência social na saída do presídio para lhe dar um vale-transporte, comida, direcioná-lo para palestras de inclusão social, cursos técnicos. Sem isso, às vezes o primeiro instinto do sujeito é cometer outro delito para pagar a passagem para ir para casa. Diversas vezes eu tirei dinheiro do meu bolso para o cliente ter um mínimo quando sai da prisão. Enquanto o Estado não fizer essa inclusão, essa reinserção do preso na sociedade, não irá conseguir que ele não volte para a cadeia. Tem que pensar: o seguinte: o nosso sistema de execução penal funciona?

ConJur — Funciona?
Bruno Rodrigues — 
O juiz que faz toda a instrução do processo, que dá a sentença, nunca mais vai saber se aquela decisão foi eficaz, se ela atingiu sua penalidade, se o condenado preso não voltou a cometer delitos, pois ele não acompanha a progressão desse preso. Por que o juiz que deu a sentença não pode acompanhar a progressão? Daí a vara de execução penal ficaria apenas aqueles presos com condenações altíssimas. Outra coisa, a progressão de regime tem que ser administrativa, não tem nada de judicial nisso. Poderia ser tratada entre o diretor da penitenciária e o Ministério Público, sem ter que passar pelo juiz. Afinal, é o diretor que atesta o bom comportamento do preso. E o outro requisito necessário para progressão é o tempo cumprido da pena, algo matemático, que qualquer um pode fazer. Por que precisa passar por uma vara de execução penal que tem milhares de processos, o que faz com que o sujeito fique presos meses a mais do que deveria?

ConJur — O senhor é um defensor de penas alternativas e políticas de desencarceramento. Defende isso para casos de corrupção também?
Bruno Rodrigues — A corrupção virou o inimigo número um da sociedade. Falar de corrupção hoje é pisar em ovos. Agora, qual é a vantagem de se ter um empresário preso por corrupção? Expô-lo para a sociedade? Será que não seria melhor colocar esse empreiteiro para dar palestras gratuitas? Outra opção seria apertar o bolso dele, que é onde mais dói, obrigando-o a gerar um certo número de empregos, por exemplo. Agora, não precisa colocar aquelas penas alternativas que a sociedade gosta, como botar o cara com roupa de gari para varrer rua, pintar muro. A pena não pode ser humilhação. Pena bem cumprida é aquela que faz o condenado sozinho entender o que fez de errado, sem precisar ser exposto para ninguém. Tirar a pessoa do convívio social já é uma pena enorme. Experimenta ficar um mês sem sair de casa para ver o quanto isso já te faz mal.

ConJur — Como melhorar o sistema prisional brasileiro?
Bruno Rodrigues
No curto prazo, conscientizando os juízes de que prisão provisória não é solução. Não pode ser regra, tem que ser exceção. Os juízes precisam conhecer como funciona o sistema carcerário. Visitas a presídios deveriam fazer parte do programa das escolas de magistratura. Se o juiz não tiver um conhecimento do atual sistema carcerário do país, de como aquilo é uma masmorra, de como não ressocializa ninguém, não vai ter solução. Temos uma bola de neve. Um crescimento vertiginoso da população carcerária: 167% nos últimos 14 anos. E 40% dos 622 mil presos são provisórios.

ConJur — E no longo prazo?
Bruno Rodrigues —
É necessário garantir um mínimo de dignidade aos presos. Isso não é regalia para ninguém. Eles têm direito de ser tratados de forma digna. Se queremos ressocializar os presos, precisamos assegurar que tenham trabalho na prisão, compreendam o impacto dos crimes que praticaram. Caso contrário, os detentos sairão da prisão ainda mais revoltados.

ConJur — Como avalia as medidas anunciadas pelo governo para combater a crise nos presídios, como a construção de presídios federais, repasses para a construção de uma penitenciária em cada estado, instalação de aparelhos que bloqueiam sinal de celulares e uso de militares para fazer vistoria nos presídios?
Bruno Rodrigues
Os militares não são treinados para isso, são treinados para a guerra. Colocar militar para ter contato com famílias de presos, que são famílias de baixa renda, não vai dar certo. Tivemos experiências muito ruins com militares nas favelas do Rio de Janeiro.

ConJur — Construir presídios pode ajudar a resolver o problema?
Bruno Rodrigues —
É uma medida paliativa, mas nada vai mudar se não tivermos uma cultura educacional de se ensinar efetivamente para a sociedade o caminho. Temos que dar educação, cultura, esporte às crianças pobres. A criança da comunidade carente ainda tem o traficante como ídolo. Desde pequeno, ele enxerga positivamente aquele chefe do tráfico do morro, porque é o camarada que distribui remédio quando a família dele precisa, que faz festa do Dia das Crianças, está sempre ostentando aquela moto imponente. Só com educação e cultura é possível fazer com que o traficante deixe de ser o modelo dessa criança. Espero pelo menos que a construção de novos presídios saia do papel. Mas tenho uma restrição com relação aos presídios federais

ConJur — Por quê?
Bruno Rodrigues —
Não pela existência deles, mas pela forma como os presos são mantidos durante tanto tempo em regime disciplinar diferenciado. A lei é clara ao estabelecer que o preso não pode ultrapassar 360 dias seguidos em regime disciplinar diferenciado, ou cumprir mais de um sexto da pena dessa forma. Isso causa sérios problemas mentais ao preso, pois ele fica sem convívio com outros presos, sem convívio com seus familiares, sem poder se comunicar com ninguém. O ser humano foi feito para viver em coletividade. E ninguém se preocupa com isso, porque o sujeito está preso, então, para a sociedade, ele precisa pagar o que deve, não importando se ele vai sair de louco, se vai precisar ser internado em um tratamento psiquiátrico. O problema é que o Poder Público espera explodir uma crise para agir. Se daqui a pouco tudo voltar ao “normal”, eles vão deixar o assunto de lado.

ConJur — O sistema penal brasileiro é muito rígido? Há crimes punidos com prisão que poderiam ter penas alternativas?
Bruno Rodrigues
— Sim. Vou te dar um exemplo muito simples: sonegação fiscal. Por que não poderia ter uma pena alternativa para esse crime? Na verdade, não deveria nem ser crime. Ao transferir a responsabilidade para o Direito Penal, o Estado está  reconhecendo sua ineficiência nas execuções fiscais. É evidente que existem crimes que só tiveram as suas penas elevadas em razão de um fato social que chamou a atenção em um determinado momento. Foi o caso do artigo 273 do Código Penal [falsificação ou alteração de medicamentos]. A pena foi aumentada de forma absurda logo depois da questão das pílulas de farinha. Existem, sim, crimes que deveriam ser punidos com penas alternativas, não prisão. Por que o empresário que sonega não pode, de acordo com a especialidade dele, ir dar aula em uma escola pública? Dar palestras no Sebrae? Ele estaria retribuindo a sociedade de maneira mais eficaz do que se ficasse preso.

ConJur — A cada novo crime de grande repercussão ou onda de crimes aparece a mesma sugestão de sempre: aumentar penas. Aumentar penas reduz a criminalidade?
Bruno Rodrigues
— Nunca reduziu. Aumentar penas só aumenta o número de recursos. Aumenta a preocupação do julgador, porque muitas vezes o próprio juiz fica incomodado com aquela pena, porque sabe que ela não corresponde ao tipo de delito. E às vezes fica todo mundo sem saber o que fazer com aquele processo. Por exemplo, advoguei em um caso que apurava a venda de anabolizantes em uma academia. Todo mundo tem o poder constitucional de fazer o que quiser com o próprio corpo. O doping não é crime no esporte. Por que a pessoa que toma um anabolizante de cavalo não é punida, mas a pessoa que me vendeu o produto é? E o artigo 273 do Código Penal coloca uma pena altíssima para quem vende anabolizantes [reclusão de 10 a 15 anos].

ConJur — E o que aconteceu com o cliente que vendeu anabolizante?
Bruno Rodrigues — 
Os juízes ficaram sem saber como lidar com aquele processo, porque a testemunha que comprou disse que fez isso porque quis, porque achava “bonito ter um braço todo definido”. Então, aumentar a pena não é solução para nada. Só serve para dar uma resposta para parte da sociedade que adota um discurso de ódio, que quer ver o preso sem direitos, o corrupto morto, que quer ver matar. Só que essas pessoas se esquecem que amanhã aquela pena pode ser aplicada a elas também.

ConJur — O que acha de presídios privados, ou administrados por empresas privadas?
Bruno Rodrigues Preso não é mercadoria. A responsabilidade do preso é do Estado, e ele não pode transferi-la para ninguém. Obviamente, é possível ter uma parceira público-privada onde uma empresa forneça alimentação, faça manutenção das celas etc. Mas segurança, revista dos familiares, responsabilidade pela integridade física do preso, isso não pode ser delegado. “Ah, mas tem um caso onde a experiência foi muito boa, em Minas Gerais”, dizem os defensores desse modelo. Mas é um caso isolado. Sou contra presídios administrados por empresas. E no final das contas, quem tem que se responsabilizar se um preso for morto lá dentro é o Estado. Agora, também sou contra esse discurso de que o aumento de presídios administrados pelo setor privado iria influenciar no número de presos. Esse discurso não é verdadeiro porque quem prende é o Poder Judiciário. A penitenciária não tem nenhuma ingerência sobre o número de presos.

ConJur — 28% dos presos cometeram tráfico de drogas. A regulamentação das drogas, em vez da proibição, ajudaria a aliviar o sistema carcerário?
Bruno Rodrigues
Na verdade, a questão das drogas precisa ser dividida em três figuras: usuário, mula e traficante. O usuário hoje não é mais preso, essa questão está completamente resolvida. Ele é encaminhado para o Juizado Especial Criminal, recebe uma advertência, participa de algumas palestras. Quanto à mula, em tese, o problema estaria resolvido com a questão do tráfico privilegiado, onde bastaria esse preso não se dedicar exclusivamente a atividades de tráfico e não fizesse parte de nenhuma facção para que ele tivesse a redução de um terço ou dois terços de sua pena. O fato é que existe, no Poder Judiciário, a sensação de que se a mula receber uma pena baixa, eles estarão incentivando o tráfico. É preciso conscientizar os juízes de que o tráfico privilegiado é um direito. Basta que você preencha os requisitos, não tem que levar em conta a quantidade de droga. Mas esse entendimento não é aplicado, principalmente na primeira instância. Então, o grande número de presos por tráfico de drogas se dá, primeiro, porque muitos são presos em flagrante e ficam presos por seis, sete meses. Segundo, os juízes precisam reconhecer que o tráfico privilegiado é um direito. Mas isso é diferente do traficante, do cara que se dedica exclusivamente ao tráfico, que faz disso a sua fonte de renda. Esse sujeito tem que ser apenado sem qualquer benefício.

ConJur — O senhor falou que o Estado não pode proibir uma pessoa de usar anabolizantes, pois cada um faz o que quiser com o próprio corpo. O mesmo raciocínio não se aplica às drogas? É legítimo o Estado proibir que uma pessoa use uma substância que só irá prejudicar a ela mesma?
Bruno Rodrigues
Na questão das drogas a preocupação do Estado é um pouco maior, não é só com o uso que essa pessoa tem, mas a violência que é gerada por causa do tráfico.

ConJur — Mas se as drogas fossem regulamentadas, essa violência não acabaria?
Bruno Rodrigues
Mas se legalizarem as drogas, vão ensinar os traficantes a fazer alguma coisa? Porque eles só sabem fazer isso. Diversas comunidades foram ocupadas por UPPs no Rio, mas os traficantes saíram delas, foram para o interior do estado e continuaram exercendo normalmente suas atividades.

ConJur — Eles não poderiam trabalhar no mercado legal de drogas, por exemplo?
Bruno Rodrigues
— Eles não sabem trabalhar. Ninguém os ensinou a trabalhar. O dinheiro deles vem fácil.

ConJur — Sem o tráfico, os traficantes poderiam passar a cometer crimes mais violentos, como roubo e sequestro?
Bruno Rodrigues
Sim. Certamente haveria um aumento no número de roubos, de latrocínios, pode voltar a ter uma onda de sequestros. O traficante não sabe fazer outra coisa. Se não houver um programa de inclusão social desses traficantes junto com a legalização, o problema da criminalidade não será resolvido. É preciso ensinar os traficantes a trabalhar, a exercer algum ofício. E os usuários também querem ter o gostinho de fazer algo ilegal. Surgem novas drogas a cada dia. Não é possível legalizar todas as drogas. Então, certamente surgiriam novas drogas e um mercado negro.

ConJur — Alguma droga poderia ser legalizadas?
Bruno Rodrigues
 A maconha poderia, até porque tem efeitos medicinais, e faz tão mal ao ser humano quanto o álcool e o cigarro. Então, por que não legalizar? Legaliza, tributa. O Estado não está em crise financeira? Seria uma forma de aumentar a arrecadação. Da mesma forma, acho que deveriam legalizar jogos de azar. Você só vai ao cassino se quiser, ninguém te obriga a entrar no cassino. Como ninguém te obriga a fazer o uso da drogas, como ninguém te obriga a fazer uso de anabolizantes. Você faz isso se quiser.

ConJur — Esse argumento não favorece a legalização das drogas?
Bruno Rodrigues
— Bom, mas a Lei de Drogas só aplica medidas administrativas para o usuário. Não há pena. A intenção é ensinar que para as pessoas que o uso de drogas não é bom. Mas quem for pego não vai preso. O sujeito vai para a delegacia e, posteriormente, irá a uma audiência no Jecrim. Ali, o juiz exerce função administrativa. Ele tem a função de dar um puxão de orelha, de dar uma advertência àquele usuário. Só isso. Mas não dá para legalizar todas as drogas. Isso pela questão médica. A cocaína, por exemplo, causa muitos malefícios ao organismo. Apesar de você ter poder discricionário de fazer o que quiser com seu corpo, a cocaína e outras drogas sintéticas causam um malefício muito grande no organismo. Fora toda a violência que o tráfico gera. Tem o setor de comércio de armas por trás disso. Existe aqui no Rio o tribunal do tráfico, pelo qual traficantes impõem suas regras à comunidade. Isso gera uma onda de violência e de insegurança não só naquela comunidade, mas em toda a sociedade. Então, o Estado precisa reprimir o tráfico. 

ConJur — Aqueles contrários à legalização das drogas afirmam que isso explodiria o número de usuários, causando uma espécie de epidemia social. O que pensa desse argumento?
Bruno Rodrigues
— Não acredito nisso. Até porque, junto com essa legalização completa, o Estado obteria uma grande verba com a tributação dessas drogas, a qual seria destinada ao programa de conscientização. A legalização por completo não geraria um boom de usuários. Isso não aconteceu em nenhum país onde a maconha foi legalizada, por exemplo. Agora, volto a dizer: outros crimes subiriam. Os traficantes não sabem fazer outra coisa. E o Estado não vai conseguir fazer a reinclusão dessas pessoas, afinal, isso ele já não cuida dos egressos do sistema penitenciário.

ConJur — Estima-se que o PCC fature R$ 240 milhões por ano. Desse total, avalia-se que 80% venham da venda de drogas. A guerra às drogas é responsável pelo crescimento de facções criminosas como o PCC? Legalizar as drogas não seria uma forma de desarticular essas facções criminosas?
Bruno Rodrigues
Como essas facções vão recuperar essa perda? Esses 20% vêm de outros tipos de crime, afinal, eu não acredito que o PCC faça nada lícito. Eles vão aumentar a participação deles em outros crimes. Não dá para imaginar que eles vão ter essa queda e ficar inertes.

ConJur — Que outras medidas podem ser tomadas para desarticular essas facções criminosas?
Bruno Rodrigues
— Dentro da política criminal, não vejo nenhuma. Só há saída via educação, cultura e integração com esporte. Vai aumentar ainda mais a pena para tráfico? Isso foi feito na Lei de Drogas, que aumentou a pena mínima de três para cinco anos. Mudou alguma coisa? Não. Aumentar pena não muda nada. Tanto que temos casos de brasileiros que aceitam ser mulas para países onde há pena de morte. As pessoas sabem disso e mesmo assim vão.

ConJur — De acordo com uma pesquisa do Ibope de 2014, 79% das pessoas são contra legalizar a maconha. Além disso, o Congresso brasileiro atual é o mais conservador desde 1964, segundo o Diap. Nesse cenário, a única saída é esperar que o Supremo Tribunal Federal tome alguma providência sobre o assunto, tal como fez com a união entre homossexuais e as doações empresariais para políticos?
Bruno Rodrigues
O STF só vai descriminalizar o uso. Daí a legalizar existe uma diferença enorme. Penso que só o Congresso pode legalizar as drogas. Não há como o STF legalizá-las. A corte só pode proibir as medidas administrativas que hoje são aplicadas aos usuários. Alguns poderão dizer “mas não há risco de a polícia passar a enquadrar todos os usuários como traficantes?”. Tiveram esse mesmo receio com a Lei de Drogas, mas, na prática, isso não ocorreu. Quando a Polícia Militar pega um pequeno usuário, nem perde tempo de levá-lo para a delegacia. Os próprios policiais dão uma advertência, dizem que a droga não é boa, e liberam o sujeito. Perto do número de abordagens, os casos de usuários levados à delegacia são infinitamente inferiores. Agora, deveríamos fazer um plebiscito ou um referendo sobre a legalização da maconha.

ConJur — Há justificativa para que o tráfico de drogas seja considerado crime hediondo?
Bruno Rodrigues
— O STF reconheceu que o tráfico privilegiado não é hediondo. Crime hediondo é aquele cometido com violência, que a sociedade rejeita mais. Os crimes foram sendo considerados hediondos de acordo com o ódio da sociedade no momento. O tráfico também entrou nesse discurso. Agora, com o grande número de presos por tráfico e com a crise no sistema carcerário, tirar o tráfico de drogas do rol de crimes hediondos pode ser uma boa medida. Até porque se o sujeito for reincidente, ele já vai ter uma progressão de regime mais retardada.

ConJur — A maioria das prisões em flagrante por tráfico de drogas ocorre apenas com base em testemunhos de policiais. Levantamentos da USP e do juiz Luís Carlos Valois apontam que isso ocorre em 74% dos casos. E 91% dos processos decorrentes dessas detenções terminam com condenação. É legítimo prender ou condenar alguém apenas com base em testemunhos de policiais? Ou isso viola o contraditório e a ampla defesa?
Bruno Rodrigues
Ninguém é condenado exclusivamente com base no depoimento policial, sempre há outras provas. Tem o material apreendido, que foi constatado pela perícia que é uma substância proibida. O juiz também leva em conta a forma como a droga estava envelopada, a quantidade de dinheiro que foi apreendida com a pessoa. O depoimento do policial só vem para ratificar o material que foi apreendido. Se não tiver mercadoria, o juiz não condena. Agora, é necessário que revejamos a valoração que é dada ao depoimento dos policiais dentro do sistema processual. Os policiais gozam de uma presunção de veracidade muito forte. O depoimento de policiais tem que ser valorado como um depoimento de uma testemunha comum. Eles não podem gozar de uma presunção de veracidade superior porque são agentes da lei.

ConJur — No tráfico de drogas, não é analisado se há dolo. Com base na quantidade de droga apreendida, policiais definem se o acusado vai ser classificado como usuário ou traficante, sem se preocuparem em verificar a conduta dele. Isso é coerente com o sistema penal brasileiro?
Bruno Rodrigues
— Eu não vejo como alguém vai fazer o comércio de drogas e não agir com dolo. Mas como o tipo penal do tráfico é muito amplo, é possível que algumas condutas deem margem a abusos. Por exemplo, “manter em depósito”. Nem sempre a pessoa sabe que está mantendo drogas em depósito em sua casa. Mas há outras condutas que são impossíveis de serem praticadas sem dolo, como “produzir”, “fabricar” e “exportar” entorpecentes.

ConJur — Deixar que o policial decida se a quantidade de droga apreendida configura tráfico ou uso, sem tabela de quantidades, viola o direito de defesa?
Bruno Rodrigues
Dá margem a arbitrariedades, mas não viola o direito de defesa. Violar o direito de defesa seria tabelar, porque cada um tem um organismo diferente. É a mesma coisa da Lei Seca. O índice de álcool permitido é zero. Tem gente que toma duas taças de vinho e já fica completamente alcoolizado, mas tem gente que toma duas taças de vinho e ainda está novo, perde menos de 1% do reflexo. Então tabelar isso prejudica aquele que tem uma resistência maior à droga, que consome mais, e dificulta sua defesa de uma acusação de tráfico. Agora, deixar que o policial decida se é tráfico pela quantidade é completamente arbitrário. Essa função tem que ser do delegado. E este, antes de decidir, tem que conversar com o acusado, entender as circunstâncias da abordagem policial. Tem muitos casos que chegam à delegacia como tráfico e o delegado verifica que é uso.

ConJur — Mas se houvesse essa tabela, quem estabeleceria essas quantidades? A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)? Ou o Congresso?
Bruno Rodrigues
— Teríamos que levar em consideração a velocidade em que surgem novas drogas. O Congresso não conseguiria acompanhar essa evolução. Uma agência reguladora tem muito mais agilidade para isso. Eu já tive um caso, por exemplo, em que o cliente foi preso com uma substância dita como entorpecente, mas como ela não estava no rol das substâncias proibidas da Anvisa, o sujeito foi solto e absolvido. Imagine quanto tempo iria levar para o Congresso incluir essa nova droga na lei? Aí ficaria um vácuo. E nesse tempo, o comércio dessa droga ficaria liberado, e a polícia não poderia fazer a repressão. Geraria uma insegurança jurídica muito grande.

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