Interesse Público

Projeto que propõe mudanças no
registro de preços requer atenção

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

23 de fevereiro de 2017, 8h00

Spacca
A presente coluna discute a proposta de alteração legislativa no sistema de registro de preços. Para tanto, após considerações iniciais, será analisado o regramento atual e, enfim, a mudança sugerida. Toma-se por referência o PL 6.814/2017, que no Senado recebera o número 559/2013.

Hoje, o artigo 15 da Lei 8.666/1993 prevê o Sistema de Registro de Preços (SRP) voltado para as compras públicas. Hoje, após período de discussão sobre o alcance do SRP, não mais se discute sua utilização para serviços comuns, em especial após o advento da Lei 10.502/2002 (artigo 11).

As vantagens decorrentes da utilização do SRP são sempre decantadas pela doutrina e pelos órgãos de controle. Entre elas destacam-se a redução do número de licitações, uma vez que um só certame pode atender às demandas de mais de um órgão ou entidade; e a redução de estoque possibilitando-se a entrega/execução se e quando desejado pela administração pública.

Também se poderia apontar, como vantagem adicional, a eliminação de qualquer discussão fundada no princípio da confiança legítima sobre o direito à contratação. Isso porque, ainda que Lei 8.666/1993 não imponha expressamente o dever de contratar o vitorioso, e mesmo que a doutrina e jurisprudência não tenham estendido com a força esperada o raciocínio que hoje protege o aprovado em concurso público dentro do número de vagas, a homenagem ao princípio da boa fé e da confiança legítima favorece o vencedor, que poderá questionar a sua não contratação.

No caso do Registro de Preços, o parágrafo 4º do artigo 15 da Lei 8.666/1993 afasta a postulação quanto à obrigatoriedade de contratação, facultando-se à administração a utilização de outros meios para obter o objeto desejado, assegurando ao beneficiário do registro apenas a preferência em igualdade de condições.

Todavia, o maior benefício do SRP, a nosso ver, decorre da facilidade com que se pode exercer o controle de qualidade sobre o objeto licitado. Insatisfatória a experiência inicial com determinado produto, não mais se acionará o fornecedor para novas entregas/execuções, situação que, em ambiente contratual típico, imporia à administração pública a instauração de processo administrativo para fins de rescisão prematura do contrato, se a falha assim sugerisse.

A abordagem legal sobre o SRP é extremamente tímida. A despeito de algumas diretrizes fornecidas pelos parágrafos do artigo 15, o legislador optou por deslocar a regulamentação do SRP para momento posterior, quando os Chefes do Poder Executivo, nas três esferas de governo, editariam Decretos, cujo teor consideraria as peculiaridades regionais. A Lei 8.666/1993 omitiu-se inclusive de conceituá-lo, de indicar as situações que convidam para seu uso e de prever os possíveis atores nele envolvidos.

Na esfera federal, o Decreto 7.892/2013, editado em substituição ao Decreto 3.931/2001, trouxe importante contribuição para a disciplina do SRP. Entre pontos positivos, destaca-se a menção à intenção para registro de preços (IRP), aos diversos atores que podem estar presentes durante a fase de preparação do certame, durante sua evolução e após a existência da ata de registro de preços.

A intenção para registro de preços, procedimento não previsto na Lei 8.666/1993, mas criado pelo Decreto Federal 7.892/13, é instrumento, em princípio obrigatório,  por meio do qual o órgão gerenciador, responsável pela preparação e condução do certame, sinaliza para os demais órgãos e entidades a pretensão de licitar determinado objeto, permitindo-lhes manifestar seu eventual interesse na licitação que está sendo gestada, situação em que os assim desejosos enviaram as informações necessárias para o atendimento de sua pretensão (artigo 4º caput e parágrafo 1º combinado com artigos 5º, incisos II e V  e 6º, inciso II).

O escopo é evidente. Oportuniza-se ao eventual interessado no objeto da licitação embrionária dela tomar assento, desde seu nascedouro, evitando-se a futura e polêmica adesão à ata de registro de preços.  Prestigia-se a participação desde o momento preparatório em desprestígio à adesão à ata por órgão estranho ao certame (carona).

Não se discute que a participação prévia de outros órgãos e entidades revela-se muito mais ajustada do que a adesão à ata, na qualidade de órgão não participante, ainda para aqueles que, como eu, não identificam na adesão à ata os malefícios que usualmente lhe são imputados. A contribuição que o órgão/ente participante pode oferecer quando da estimativa de custos e da definição das especificações basta para se identificar vantagem na atuação compartilhada desde o momento da concepção do certame.

Originalmente, antes das alterações provocadas pelo Decreto 8.250/2014, somente órgãos e entidades da administração pública federal poderiam ser participantes. A redação estreita atraía críticas. Já afirmei:

Diante da opção político-administrativa realizada, escapam da possível catalogação como órgãos participantes aqueles encontrados em esferas de governos estaduais e municipais.

A redação parece inofensiva não fosse pelo fato de que, ao assim se materializar, órgãos estranhos ao aparato federal e que, desde os primórdios, ainda na fase preparatória da licitação, poderiam dela tomar assento, na condição de participantes, são impedidos e, consequentemente, “lançados” a, se for o caso e observados os limites, atuar como “caronas”.

Afirmamos em capítulo anterior, em que examinamos as diretrizes gerais do Registro de Preços e a IRP, a inconveniência da decisão adotada, sobretudo considerando que o Decreto atual nasce em boa medida a partir de recomendações do TCU, crítico da proliferação de “caronas”.[1]

Solução mais ajustada, sobretudo diante do espírito cooperativo que está nos meandros da nossa Constituição, seria a de estimular a presença e a atuação, ainda na fase interna, de distintos órgãos a quem a licitação poderia interessar.

 

A atual redação do inciso IV do artigo 2º do Decreto 7.892/13 não mais adjetiva o órgão participante, porque removida a palavra “federal” que o caracterizava. No projeto de alteração proposto pelos Senadores e sobre o qual debruçaram os deputados federais há importantes sugestões de mudança na disciplina do SRP, embora se preservem suas características iniciais, inclusive quanto à liberdade relativa assegurada à administração pública para não contratar, facultando-lhe realizar licitação para a aquisição pretendida, desde que motivadamente (artigo 74).

O PL 6.814/2017 menciona o Registro de Preços Permanente, hoje adotado em alguns Estados, como Minas Gerais, Maranhão e Rondônia, ferramenta importante porque afasta o retrabalho com novas licitações, quando a necessidade supera o prazo de 12 meses de validade da ata, admitindo-se o ingresso de novos licitantes. A redação do PL 6.814/2017 sobre o tema é bastante econômica. Faltam maiores detalhes que provavelmente serão objeto de regulamento.

A proposta admite expressamente  o SRP para a contratação de obras comuns (artigo 5º, inciso XLIV) o que não está previsto na Lei 8.666/1993 e por razões óbvias também não fora afirmado pela Lei 10.520/02. Tal alteração guarda relação com a maior amplitude proposta para o pregão, que também passaria a ser utilizado para obras comuns (artigo 5º, inciso  XL).

Vale comentar que, para serviços de engenharia e obras comuns, o pregão somente seria admitido (artigo 26 §2º) quando a contratação envolvesse valores inferiores a R$150 mil. O legislador, assim, oferece com uma mão, alargando o uso do pregão, mas retira com a outra porque não apenas as obras comuns, mas os serviços comuns de engenharia que hoje podem ser licitados mediante a utilização da citada modalidade, independentemente do valor estimado da contratação,  estariam sujeitos ao limite máximo ali indicado.

A intenção para registro de preços também ganha amplitude porque passaria a ser utilizada de forma cogente por todas as esferas de governo. Municípios e estados tornam-se obrigados a institui-la, a despeito de outra eventual opção politica que tenham adotado. Trata-se previsão ajustada à ideia de centralização de procedimentos de aquisição e contratação de bens e serviços a que se refere o artigo 17, I da proposta legislativa.

O PL 6.814/17 apresenta os conceitos de órgão gerenciador e participante no artigo 5º, incisos  XLVI e XLVII e atribui ao  órgão ou  entidade gerenciadora realizar o procedimento público de intenção de registro de preços que será dispensável quando o gerenciador for o único contratante (artigo 77 caput e parágrafo 2º). A redação é diversa da contida no Decreto 7.892/13, que prevê a obrigatoriedade da divulgação da IRP, salvo se dispensada justificadamente (artigo 4º,§1º), o que pode ocorrer não apenas na hipótese hoje aventada no PL 6.814/17 (ser o único contratante).

O PL 6.814/2017 remete para o regulamento o detalhamento da disciplina do IRP, mas, diante da definição de órgão participante, vê-se que não há o interesse em inibir que órgãos e entes estaduais e municipais compareçam na etapa preparatória de licitação federal, indicando sua necessidade. O regulamento, em princípio, poderá restringir a participação de órgãos interessados no certame, não pelo aspecto subjetivo, mas considerando fatores operacionais, tal como hoje prevê o Decreto 7.892/13 (artigo 4º,parágrafo 3º, inciso I).

Alerta-se para o fato de que eventuais restrições na participação de órgãos participantes os lança a condição de prováveis caroneiros, se a lei assim vier a permitir. Isso porque, diversamente do Decreto 7.892/2013, o PL 6.814/2017 nada diz sobre órgão não participante. Ele não é conceituado junto aos demais e não é mencionado nos artigos que abordam o procedimento do SRP (artigo 73 a 77).

A ausência de referência poderá ser interpretada como o banimento da adesão à ata (carona). Haverá, todavia, espaço para entendimento diverso uma vez que a lei atual também não alude ao órgão não participante, cuja existência e limites decorrem dos textos dos decretos editados por cada esfera de governo. Logo, será possível aduzir, sobretudo quando o PL menciona futuro regulamento, que o carona não está de plano vedado, podendo ser previsto em decreto futuro.

Evidente que para se evitar discussão o ideal é a futura lei tratar expressamente a matéria, ora proibindo, ora estabelecendo os contornos e limites. O silêncio, em terreno tão árido, propiciará calorosos debates e dará respaldo para que se revisitem velhas alegações de ilegalidade de decreto superveniente que venha a sobre o tema dispor.

A definição sobre a possibilidade ou não da adesão tardia é crucial porque, uma vez permitindo-a, a lei deverá indicar as balizas, evitando regras aqui ou acolá que não considerem as orientações e recomendações do Tribunal de Contas da União, especialmente condensadas no Acórdão 1487/07-Plenário, com relatoria do ministro Valmir Campelo.

No nosso sentir, a pretensão de extirpar o carona merece cuidadosa reflexão. Não se pode ignorar as dificuldades dos municípios de pequeno porte, desprovidos de corpo funcional quantitativa e qualitativamente ajustado à solução das demandas com as quais se defrontam. Diante do risco de um certame mal conduzido, fruto, por exemplo, de definições imprecisas ainda na etapa de planejamento, melhor seria admitir a motivada adesão, observados limites legalmente fixados.


[1] FORTINI, Cristiana. Aprimoramentos do Decreto Federal: órgão gerenciador, órgão participante, carona e outros dispositivos. In: FORTINI, Cristiana (coord.). Registro de Preços: análise da Lei n. 8.666/93, do Decreto Federal n. 7.892/13 e de outros atos normativos. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. P. 186-187.

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Tem pós-doutorado na Universidade George Washington (EUA).

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