Opinião

Simples reação ao ilícito não é suficiente para controlar corrupção

Autor

  • Igor Tamasauskas

    é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo ) mestre e doutor em Direito do Estado pela mesma instituição. Vencedor do Prêmio Capes de tese em 2021. Integra o Instituto dos Advogados de São Paulo. Foi corregedor administrativo e procurador-geral ambos do município de São Carlos e subchefe-adjunto para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República de 2005 a 2007. Também é autor dos livros “Corrupção Política” publicado em 2019 e “Acordo de Leniência Anticorrupção” publicado em 2021.

23 de fevereiro de 2017, 6h01

Escrevo esse artigo ainda no calor dos fatos, em momento talvez não muito indicado para análises definitivas sobre qualquer aspecto do universo jurídico e político em nosso país. Mas o ensejo da manifestação pública do presidente da República, quanto à manutenção no cargo de ministros envolvidos em processos criminais, traz uma provocação irresistível para quem estuda a intersecção entre direito e política ou mesmo milita em causas dessa natureza.

Com a palavra, o presidente: “Se houver denúncia, o que significa um conjunto de provas que eventualmente possam conduzir ao seu acolhimento, o ministro que estiver denunciado, será afastado provisoriamente. Logo depois, se acolhida a denúncia, aí sim a pessoa se transforma em réu na operação 'lava jato' e o afastamento é definitivo”.

Em outras palavras, pretendeu-se estabelecer padrões para lidar com situações envolvendo previsíveis envolvimentos de ministros de Estado em atos ilícitos. Padrões informais, todavia, porque assentados apenas no discurso presidencial.

Diversos estudos sobre o enfrentamento da corrupção indicam que a simples reação ao ilícito não é suficiente para a efetividade no controle desse problema que é ordem global. Pelizzo e Stapenhurst (2014) anotam que, ao lado da persecução do ilícito, é fundamental que se estabeleçam mecanismos de melhoria no ambiente onde se desenvolve a política, mediante accountability adequada, sob pena de mitigar a legitimidade daqueles indivíduos responsáveis pela condução das atividades de um país.

O exercício de atividades políticas de relevo é o objetivo central de disputas eleitorais em qualquer parte do planeta e a lisura de eleições é garantia de uma democracia onde a vontade dos eleitores é manifestada com a menor interferência de fatores de desequilíbrio. Controlar os destinos de um país significa imprimir uma visão própria de cada corrente política, como maior ou menor interferência do Estado na economia, adoção ou rejeição de políticas de igualdade, mecanismos de tributação voltados à redistribuição de renda, enfim, os mais diversos aspectos que uma determinada orientação política pode vir a concretizar, legitimamente, acaso aprovada pelo sufrágio popular. Controlar o ferramental do Estado pode, todavia, permitir que, além de visões legítimas sobre a condução de um país, determinados grupos apropriem-se, em detrimento da sociedade, de regulações, de fontes de financiamento, enfim, de decisões de Estado em benefício exclusivo de determinada casta com poder econômico ou político, ou seja, de mecanismos inerentes à corrupção.

Geralmente, essa apropriação de utilidades públicas em proveito privado vem claramente proscrita na legislação ou, ao menos, para se concretizar exige a transgressão de determinada norma. Portanto, para além de um problema no campo político — por exemplo, sobre a representatividade ou legitimidade de determinado staff governamental — há também um problema jurídico, que é a persecução administrativa ou judicial do ato ilícito praticado para atingir o objetivo de dominação de postos políticos.

A grande questão que surge nessas situações é como lidar com os princípios inerentes ao processo judicial — notadamente a presunção de inocência, o devido processo legal, o contraditório — e a justa expectativa de quem delega as funções de comando de seu país, mediante o voto, para os seus representantes. É legítimo aguardar as delongas de um processo judicial para, aferida a culpabilidade, exercer-se o juízo político sobre o representante? Ou, de outro lado, é razoável que do representante seja exigida uma confissão pública de culpa — ainda que meramente política — ao se impor a auto renúncia ao cargo político que esteja exercendo, com inegáveis reflexos, ainda que indiretos, no processo judicial?

Lomba (2008), por exemplo, ao tratar da responsabilidade política de detentores de cargos públicos de elevada hierarquia aponta que qualquer procedimento envolvendo ministros gera, ao mesmo tempo, um processo político paralelo. A forma como se desenvolverá esse processo político paralelo parece ser a grande dificuldade das democracias modernas, e não é demérito para o Brasil encontrar-se nessa encruzilhada que enfrentamos. Tanto melhor que debatamos esses problemas — como estamos a fazer certamente na última década — do que esconder nossas sujeiras por debaixo de tapetes institucionais mal-ajambrados, como ocorria no plano federal, e ainda ocorre nos diversos Estados e municípios brasileiros.

Há que se observar uma necessária clivagem entre a atuação da responsabilidade política de um indivíduo e a responsabilidade jurídica pela prática de um ato ilícito. Sem que se proceda a essa tarefa — árdua, hercúlea — dificilmente se obterá a resposta política satisfatória, com ganhos à legitimidade do sistema político; tampouco, o processo judicial de apuração e responsabilização pelo ato ilícito ficará imune a tentativas de interferências para condenações a qualquer custo.

Autores, como Gisbert, apontam que o governante, como agente fiduciário ou trustee da sociedade, mantém uma relação mais do que especial com o direito que o restante dos cidadãos. Enquanto todos estão submetidos ao princípio da presunção de inocência, o agente político, justamente por exercer cargo de relevo no Estado, está sob permanente escrutínio público, razão pela qual deve render provas constantes de sua inocência e não simplesmente aguardar que o Estado forme sua convicção sob um rígido processo judicial (como é — ou deveria ser — regra corrente nos processos sancionatórios regidos pelo direito). Foi mais ou menos essa a compreensão que o Supremo Tribunal Federal exprimiu durante o julgamento da constitucionalidade da Lei Complementar 135, conhecida como Lei da Ficha Limpa, como se verifica no voto da ministra Cármen Lúcia (ADC 29/DF):

“Tanto a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral quanto a deste Supremo assentou o sentido do instituto jurídico político da inelegibilidade, salvo naqueles casos de cominação realmente concebidos como a restrição ao direito político do cidadão, e, por isso, não se confundindo sequer com condições de elegibilidade, ultrapassando-se a estrita concepção de titularidade dos direitos políticos e funcionando como mecanismo de tutela da coletividade e, ao final, da própria pessoa político-estatal.”

Naquela ocasião, em que se discutia a possibilidade de obstar a candidatura de pessoas com determinada situação jurídico-processual — notadamente os condenados por órgão colegiado, ainda que sem trânsito em julgado — a nossa Corte Constitucional estabeleceu que, para fins eleitorais, o princípio da presunção de inocência deve ser interpretado em extensão diversa daquela empregada em termos penais, por exemplo. Embora essa distinção esteja cada dia mais tênue — sobretudo depois da compreensão, pelo mesmo STF, da possibilidade de início do cumprimento de pena após condenação em segunda instância — trata-se de elemento importante que estabelece uma premissa: ao exercente de função política de relevo é exigido um grau maior de atributos que do cidadão comum, no intuito de proteger a coletividade do mau uso dos poderes de Estado, notadamente para os casos em que já pairam elementos desfavoráveis sobre a atuação pretérita do agente.

Essa premissa, como mencionado, já foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal para situações de ingresso em determinados cargos públicos. Foi utilizada como regra de acesso, quando vedou a candidatura de pessoas que não atentassem às condições fixadas na referida Lei Complementar.

Ainda não há disposição para a consequência da perda das referidas condições durante o exercício dos cargos políticos. E a fala do presidente da República, no último dia 13 de fevereiro, expõe noções relacionadas às compreensões acima expostas. Inúmeras críticas surgiram acerca das motivações presidenciais, desde uma tentativa de evitar decisão desfavorável em mandado de segurança impetrado contra recente nomeação de investigado ao cargo de ministro de Estado, até busca por blindar-se pessoalmente de possíveis acusações. Ainda que essas críticas possam ostentar fundo factual, a tão-somente discussão desses temas — e das possíveis soluções — é importante para nosso país.

Morillo (1998) faz um importante histórico acerca da criação de institutos voltados à responsabilidade política, destacando-a como um produto da civilização, posto que passa a disciplinar determinadas condutas que, em tempos mais remotos, eram reservadas à aferição da instância criminal. Cita, como exemplo, o de um determinado dirigente público francês que restou confrontado com a ineficiência de obra pública iniciada sob sua gestão; judicialmente foi cobrada a sua responsabilidade e, como se tratava de pessoa abastada, acabou anuindo com um pagamento ao erário. Note-se que não se tratava de desvio ou má aplicação de recursos públicos; apenas a obra não surtiu o efeito esperado pela coletividade. Era tema para ser apreciado unicamente sob o aspecto político, mas que se desdobrou em responsabilidade judicial (ainda que na esfera cível-reparatória).

Segundo esse autor, a construção de uma responsabilidade política propicia a que determinados temas, impossíveis de serem apropriados pelo rígido discurso do processo judicial, recebam o tratamento adequado em ordem a promover a satisfação de legítimo questionamento dos cidadãos.

A questão se complica quando se adicionam elementos típicos de crimes ou de ilícitos no agir dessas altas autoridades. Necessariamente, hão de se instaurar processos para a responsabilização também nas esferas judicial e administrativa, além da política.

Em uns expedientes — os marcados pelo discurso jurídico — incide todo o regramento rígido indispensável à validade do procedimento sancionatório. Em outros, em que grassam a informalidade e a dinâmica cada vez mais frenética dos tempos atuais, a responsabilidade política é exigida muitas vezes — senão todas — contaminada por disputa política, em que campos adversários se digladiam pelo desgaste da contraparte, ao mesmo tempo em que disputam não a primazia pela razão, mas pela contagem numérica que resolve as disputas parlamentares.

Nesse não-diálogo entre ambos os sistemas, não raro é a utilização do elemento jurídico — novamente a presunção de inocência — para elidir a responsabilidade política. E verifique-se que essa realidade não é exclusiva do Brasil, como analisa Morillo, citando exemplos da Europa: “en realidad, el desplazamiento del terreno de lo político hacia lo jurídico es una táctica frecuentemente utilizada para eludir la responsabilidad política”.

A presunção de inocência é um princípio muito nobre no direito porque regula a intervenção do Estado no núcleo mais íntimo das liberdades do cidadão e, por essa mesma razão, merece todo o respeito possível. Todavia, em temas relacionados à responsabilidade no plano político, aguardar-se o desenrolar de um processo judicial para, somente depois, cumprir-se a responsabilização política não parece soar adequado. Dentre inúmeros argumentos, como sacado por Gisbert (2013), está a substituição do juízo político pelo penal, com todas as consequências deletérias possíveis, como o traslado das discussões do parlamento para os tribunais, instâncias não preparadas institucionalmente para dar cabo à abertura do discurso político.

Conquanto a literatura sobre responsabilidade política sugira uma possibilidade de autoimposição do sancionamento, como a renúncia ao cargo, há inegável necessidade de se prever mecanismos que imponham o acionamento automático, senão do sancionamento político (cessação do exercício), ao menos da possibilidade de medidas acautelatórias não voluntárias (suspensão do exercício). E é função do Direito estabelecer esses mecanismos, para que não se dependa das intenções transitórias de quem exerça o poder.

Em tempos passados, o então ministro da Casa Civil, Henrique Hargreaves, voluntariou-se e se afastou do cargo, no caso que envolvia seu nome em situações potencialmente irregulares. Prestou as explicações necessárias, colheu inocência, e retornou ao exercício. Infelizmente, como na atual quadra, e passados quase um quarto de século, ainda não se regulou pelo direito soluções para esse tipo de problema, que se repete cotidianamente.

A fala presidencial, quanto ao afastamento do envolvido em ato ilícito, não nos é completamente desconhecida. No regramento da magistratura nacional, há disposição expressa no sentido de, recebida a denúncia contra juiz acusado de ilícito, haja a avaliação quanto à conveniência de se determinar o seu afastamento (Lei Complementar 35, artigo 29). Os magistrados, no Brasil, conquanto regra geral não se submetam ao processo eleitoral para ingresso na carreira, são reconhecidamente agentes políticos porque exercem parcela relevante dos poderes do Estado.

A solução proposta pelo presidente da República aponta para um caminho ao direito para equacionar a responsabilidade política na persecução de ilícitos envolvendo altas autoridades. Todavia, por se arrimar somente no discurso presidencial, e por se limitar ao Poder Executivo, ainda há muito o que se desenvolver nessas terras.


Referências bibliográficas:

BERDUGO GÓMEZ DE LA TORRE, Ignacio; BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. (orgs) Estudios sobre la corrupción: una reflexión hispano brasileña. Centro de Estudios Brasileños, Salamanca: 2013.

LOMBA, Pedro. Teoria da Responsabilidade Política. Coimbra: Coimbra, 2008.

MORILLO, Joaquin Garcia. Responsabilidad política y responsabilidad penal. Revista Española de Derecho Constitucional. Año 18. Num 52. Enero-Abril 1998. p. 81-110

PELIZZO, Riccardo. STAPENHURST, Frederick. Corruption and legislatures. Routledge, New York, 2014.

Ministros citados na Lava Jato só serão demitidos se virarem réus, diz Temer, em http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/02/1858296-ministros-citados-na-lava-jato-so-serao-demitidos-se-virarem-reu-diz-temer.shtml, acesso em 14/02/2017

Hargreaves sai ileso e deve voltar ao governo, em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/1/22/caderno_ especial/16.html, acesso em 14/02/2017

Autores

  • é advogado formado pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo ), mestre e doutor em Direito do Estado pela mesma instituição. Vencedor do Prêmio Capes de tese em 2021. Integra o Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo). Foi corregedor administrativo e procurador-geral, ambos do município de São Carlos, e subchefe-adjunto para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República de 2005 a 2007. Também é autor dos livros “Corrupção Política”, publicado em 2019, e “Acordo de Leniência Anticorrupção”, publicado em 2021.

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