Direito Comparado

Como se produz um jurista: o modelo japonês (parte 56)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

22 de fevereiro de 2017, 8h00

Spacca
1. O professor de Direito no Japão
Correm algumas lendas sobre o papel, a importância e a representação social do professor no Japão. Uma das que têm percorrido a internet nos últimos anos não é confirmada por japoneses, e duvido mesmo que seja confirmável. Ela diz que o professor é o único profissional que está liberado de se curvar perante o imperador. A razão disso teria sido enunciada pela sabedoria popular japonesa: “Em um país onde não há professores, não pode haver imperadores”. Essa lenda, assim como outras, remonta ao período de reconstrução nacional no pós-guerra, quando havia poucos docentes (a maior parte deles alistou-se nas Forças Armadas Imperiais) e os alunos eram reunidos em amplos espaços abertos, às centenas, para assistir às aulas. Era mais do que necessário o exercício de uma autoridade superior para manter a disciplina de tantos jovens e crianças durante as aulas.

O Japão, de fato, dedicou imensos recursos para educar as gerações do pós-guerra e vencer o abismo histórico aberto pela destruição quase absoluta do país. Em certa medida, isso também ocorreu em Cingapura e na Coreia do Sul, com resultados igualmente positivos. Mais recentemente, a China também adotou essa política educacional de Estado, que combina um modelo rígido de educação, com forte meritocracia e sinais claros para os estudantes sobre as oportunidades de sucesso e os efeitos do fracasso em sua trajetória rumo ao topo do sistema universitário.

O professor universitário japonês é uma figura socialmente respeitada, mas não da forma idealizada como se costuma representar no Brasil, muita vez, de modo mistificador. O professor de Direito, em particular, é também uma pessoa dotada de prestígio social, mas, em termos comparativos ao que ocorre na Alemanha e em Portugal, está longe da influência ou da preeminência de seus homólogos nesses dois países.

A estrutura da carreira docente é muito semelhante a que se utiliza na Europa e no Brasil. A última posição é ocupada pelo professor titular. Abaixo dele está o professor associado. Em seguida, o professor adjunto e o professor assistente. De professor adjunto para cima, é necessário o doutoramento. A estabilidade (tenure) pode ser alcançada mesmo por professores assistentes. As posições correspondem a um número determinado de ocupantes, o que implica a necessidade de vacâncias dos cargos superiores para que haja mobilidade no sistema.

O professor de Direito japonês ministra as aulas no formato tradicional, embora desde 2004 tenha sido encorajada a adoção do modelo norte-americano, o que tem gerado duas reações muito nítidas. A pura e simples indiferença, conservando o professor os antigos padrões de ensino. Ou a tentativa de se implementar o novo sistema, algo que não tem sido alcançado sem maiores problemas.      

A remuneração do professor japonês é universal, independentemente do curso lecionado. Analisando-se a estrutura remuneratória referente à Universidade de Tóquio, o valor mais alto, retribuível ao professor titular, é 18,7 milhões de ienes (US$ 164.464 ou R$ 508.960), em final de carreira, considerando-se a remuneração anual.

O professor titular em início de carreira pode perceber 8,7 milhões de ienes (US$ 77.052 ou R$ 238.585). O valor médio é de 11,7 milhões de ienes (US$ 103.203 ou R$ 319.567). Todos esses valores são anuais. A média etária do professor titular, na mesma instituição, é de 56,2 anos, sendo importante destacar a existência de aposentadoria compulsória aos 65 anos de idade em diversas instituições públicas, aqui incluída a Universidade de Tóquio, o que passou a ocorrer desde o ano 2013.

O professor assistente, primeiro nível da carreira docente no Japão,  tem uma média etária alta para os padrões brasileiros — 40,2 anos. O valor máximo de sua remuneração anual é de 8,5 milhões de ienes (US$ 74.437 ou R$ 230.526). O valor em início de carreira é de 5,1 milhões de ienes (US$ 44.650 ou R$ 138.254) anuais. A média remuneratória é de 7,1 milhões de ienes (US$ 62.330 ou R$ 193.000), também anuais."

Todos os dados acima são de 2015 e foram extraídos do site do Ministério da Educação, Cultura, Esporte, Ciências e Tecnologia do Japão[1]

2. O aluno de Direito no Japão
Outro estereótipo que merece ser revisitado, ao menos no âmbito universitário, é o do aluno japonês como uma pessoa obcecada pelo estudo e dotada de uma disciplina férrea. Isso tem se alterado sensivelmente nas duas últimas décadas, especialmente após o processo de estagflação iniciado na segunda parte dos anos 1990 no Japão. O desinteresse pelo modelo de aulas é também perceptível entre os mais jovens e foi um dos motivos que provocou a reforma universitária de 2004.

O ingresso na faculdade de Direito depende do tipo de curso que se pretende fazer. Se for aquele de modelo tradicional, equiparável ao bacharelado brasileiro, o aluno submete-se a um exame nacional, que é comum a todos os que desejam entrar em uma graduação japonesa. Esse exame abrange matérias como língua japonesa, matemática, estudos sociais, ciências, inglês e outras matérias complementares. Aprovado nesse exame, o aluno terá de se submeter ao processo seletivo específico da faculdade que ele escolheu. Fará, portanto, um duplo exame, o geral e o particular. Quanto a este último, o conteúdo e o grau de exigência são variáveis, a depender do prestígio da escola ou do número de interessados naquele curso.

No modelo pós-2004, o interessado em ingressar na faculdade de Direito não precisa ter uma graduação jurídica. O novo tipo de escola oferece um curso muito parecido com o norte-americano, o que se pode equiparar a uma espécie de pós-graduação. Faz-se um exame nacional, mas com matérias diferentes, como pensamento lógico ou comunicação e expressão. Aprovado nesse primeiro exame, o candidato submeter-se-á a uma seleção específica na faculdade de sua escolha. Em geral, pede-se que o aluno faça uma entrevista e redija um texto, ou apresente um artigo. A aprovação depende do somatório das notas nos dois exames.

O aluno é obrigado a pagar matrícula e anuidade nos cursos de Direito. Nas faculdades que seguem o modelo pré-2004, a anuidade nas universidades públicas pode chegar a US$ 5,3 mil (equivalentes a R$ 16.351,00), e, nas universidades privadas, esse valor pode atingir US$ 8,2 mil ( correspondentes a R$ 25.297,00). 

Se o interessado deseja seguir o modelo pós-2004, ele poderá pagar até US$ 8 mil (correspondentes a R$ 24.680,00) por ano, em uma universidade pública. Em uma universidade particular, esses valores podem ir de US$ 5,5 mil (convertíveis em R$ 16.966,00) a US$ 17 mil (equivalentes a R$ 52.467,00).

3. Processo de formação e de avaliação do estudante de DireitoAs disciplinas tradicionais no Brasil (e na Europa) equivalem às mais importantes no Japão, o que se explica pela valorização do modelo alemão de estudo por códigos. No Japão, encontram-se manuais famosos como os de Direito Civil, elaborados por Wagatsuma Sakae (我妻栄) e Uchida Takashi (内田貴), de Direito Romano, de autoria de Harada Keikichi (原田慶吉), de Direito Constitucional, escrito por Ashibe Nobuyoshi (芦部信喜) e Higuchi Yoichi (樋口陽一), e de Direito Penal, ao estilo dos que escreveram Yamaguchi Atsushi (山口厚) e Ida Makoto (井田良)

Com o sistema pós-2004, tem-se buscado adaptar esse modo de ensino ao estilo de cases dos Estados Unidos, o que não se tem revelado simples.

O Direito Romano é ainda muito importante em várias faculdades japonesas. Os estudos de Teoria do Direito são também destacados em alguns centros. A influência de Hans Kelsen, cuja obra foi traduzida para o japonês ainda na primeira metade do século XX, é também sensível, bem como de autores alemães como Larenz, Savigny e Wezel.

Os alunos, no sistema tradicional pré-2004, são avaliados periodicamente por meio de provas escritas. Eventualmente, são computados pontos pela participação em sala de aula ou pelo comparecimento às disciplinas.

4. O egresso e os exames profissionais
O aluno egresso de uma faculdade de Direito precisa submeter-se a um exame jurídico nacional para exercer a advocacia, cujo ingresso também depende de sua inscrição em uma seccional da Ordem dos Advogados japonesa.

Para as carreiras da magistratura e do Ministério Público, o egresso tem de se submeter a um exame jurídico nacional, obter excelentes notas e posteriormente submeter-se a um exame de Estado após um período de treinamento para esses cargos.

5. Pós-graduação em Direito
O Japão também possui cursos de mestrado (dois anos de duração, em média) e de doutorado em Direito (de dois a três anos). O mestrado é objeto de interesse de quem deseja seguir a carreira acadêmica, magistrados e outros servidores públicos. O doutorado, que é bem mais restrito, tem sido procurado por pessoas com maior interesse na carreira docente. O sistema também prevê a defesa de teses e dissertações para a obtenção desses títulos.

6. Conclusões parciais
Como visto na última coluna, o Japão está em um processo conflituoso de transição entre dois modelos — o alemão e o norte-americano, embora o primeiro deles subsista amplamente em várias faculdades. A profissão docente é respeitada, mas não apresenta sinais de preeminência social como na Alemanha ou em Portugal. Os níveis remuneratórios da docência universitária são padronizados, e a renda do professor é relativamente alta.

Um ministro da Corte Suprema do Japão ganha 20.184.000,00 ienes anuais (equivalentes a US$ 178.567,00 ou a R$ 550.775,00), valor ligeiramente superior aos 18,7 milhões de ienes que recebe o professor titular em final de carreira. O  presidente da Corte recebe 27.648.000,00 ienes (US$ 244.601,00 ou R$ 755.025,00), conforme dados da Agência Nacional de Recursos Humanos do Japão.

As transformações sociais e geracionais também chegaram ao país do sol nascente. Muito da reverência e do tratamento respeitoso que o professor japonês recebe não são propriamente um exemplo de diferenciação específica pela condição de docente, e sim um tratamento compatível com a cultura do povo japonês.

Na próxima semana, estudaremos o ranking das faculdades e as profissões de Estado.

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Esta coluna não poderia ter sido escrita sem o auxílio de Luís Felipe Rasmuss de Almeida, meu ex-aluno e atual monitor de minhas disciplinas de Direito Civil na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Estudioso da cultura e do idioma japonês, tendo feito curso de verão naquele país em 2016, Luís Felipe Rasmuss é a prova de que permanece viva a tradição nipônica nas Arcadas, tão bem representada pelo venerável professor doutor Masato Ninomiya, colega de docência na Universidade de São Paulo, e o maior pesquisador de Direito brasileiro e japonês da contemporaneidade, a quem também deixo minhas homenagens por tantos anos de dedicação às relações e às tradições jurídicas nipo-brasileiras. 


[1] Disponível em:  http://www.mext.go.jp/b_menu/houdou/28/06/attach/1373620.htm. Acesso em 21/2/2017.

Autores

  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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