Observatório Constitucional

É preciso equilibrar meios de coerção
ao executar obrigações pecuniárias

Autor

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

18 de fevereiro de 2017, 7h04

Para que réu pague dívida, juíza suspende CNH e confisca passaporte. Nessa mesma decisão, impôs-se o cancelamento dos cartões de crédito do executado até o pagamento da dívida. Argumentou-se que, “se o executado não tem como solver a presente dívida, também não [tem] recursos para viagens internacionais, ou para manter um veículo, ou mesmo manter um cartão de crédito. Se, porém, mantiver tais atividades, poderá quitar a dívida, razão pela qual a medida coercitiva poderá se mostrar efetiva”. Tal decisão veio a ser cassada pelo Tribunal de Justiça, ao fundamento de que teria havido ofensa ao direito de ir e vir do réu[1]: “em que pese a nova sistemática trazida pelo artigo 139, IV, do CPC/2015, deve-se considerar que a base estrutural do ordenamento jurídico é a Constituição, que em seu artigo 5º, XV, consagra o direito de ir e vir”.

Decisão semelhante foi proferida por juíza do Distrito Federal,  que determinou a suspensão das carteiras de habilitações do ex-senador Valmir Amaral e de seus familiares, além da apreensão dos passaportes, para garantir o pagamento de dívida de mais de R$ 8 milhões[2].

Esses novos ares, na execução, chegaram também à Justiça do Trabalho. O Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (PA/AP), ainda na fase de conhecimento, houve por bem estabelecer que o não cumprimento espontâneo da obrigação de pagamento acarretará multa cominatória (astreintes). Justificou tal medida atípica (no sentido de não prevista expressamente como consequência do não cumprimento de obrigação de pagar prevista na sentença) afirmando que “é dever legal do juízo, para que cumpra e faça cumprir o princípio constitucional da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, da Constituição da República), impor sanção premial sob a forma de multa diária (astreintes) que dê força ao acórdão exequendo, promovendo a celeridade e a efetividade do processo”[3].

Essas e outras decisões que desafiam a visão corrente sobre os meios executivos têm surgido em vista da nova sistemática de execução, em especial considerando o disposto no artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil de 2015, segundo o qual “o juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe […] determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.

É dizer, passou-se a admitir a imposição de medidas coercitivas até mesmo para a efetivação da execução pecuniária (o que antes ficava, ordinariamente, restrito às execuções de obrigações de fazer e não fazer, nos termos do art. 461 do Código de Processo Civil de 1973, com as alterações introduzidas pela Lei no 8.952, de 1994, e, posteriormente, de obrigações de entregar coisa certa, conforme art. 461-A do CPC-73, com o texto dado pela Lei nº 10.444, de 2002).

Tem-se dito que, nesse contexto, o processo civil brasileiro passou a contar com “um poder geral de efetivação”, “permitindo a aplicação de medidas atípicas para garantir o cumprimento de qualquer ordem judicial, inclusive no âmbito do cumprimento de sentença e no processo de execução baseado em títulos extrajudiciais”, como bem sintetiza o Enunciado 48 ENFAM[4].

E, diante de tantas, possibilidades, surgem múltiplas indagações e perplexidades: faz sentido determinar o cancelamento dos cartões de crédito e, ao mesmo tempo, considerar impenhorável o salário? É facultado ao juiz proibir a utilização do elevador e das áreas comuns do prédio pelo condômino inadimplente, sabendo ser lícita a expropriação do imóvel, mesmo que seja bem de família, para pagamento de dívidas condominiais? Seria abusivo proibir o locador de entrar no imóvel locado em face da inadimplência, sabendo que o fiador do locador pode ter seu bem de família expropriado para pagar essa mesma dívida[5]? Sendo legítima a apreensão do carro dado em garantia (alienação fiduciária em garantia), pode o juiz proibir simplesmente que o devedor dirija enquanto não pagar o financiamento? Em que circunstâncias?

Em verdade, a adequada compreensão e aplicação desse propalado poder geral de efetivação não pode depender apenas da criatividade das partes e dos magistrados a respeito das possibilidades semânticas compreendidas na expressão “medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial”. Esse texto deve dialogar com outros referenciais normativos, para fixar os contornos da responsabilidade patrimonial e pessoal do devedor e das razões para tanto. Sendo ínsita ao ordenamento jurídico a ideia de coerência e integridade, cabe conferir unidade e harmonia aos modos de exercício do poder estatal de execução[6], sobretudo no contexto de que “o poder geral de efetivação” passa a atribuir ao intérprete papel relevante nessa tarefa.

Como bem explica a professora Teresa Armenta Deu, catedrática de Processo Civil da Universidade de Girona (Espanha), é fundamental estabelecer a correta configuração das diferentes medidas executivas, para estabelecer um efetivo modelo de tutela de crédito, observando seus pressupostos e finalidades, bem como estabelecer os limites que não podem ser ultrapassados[7].

Observando a finalidade e os pressupostos das diferentes medidas executivas, deve-se levar em conta que a execução forçada há de preferir, inicialmente, os meios de sub-rogação, pelos quais se prescinde da conduta da pessoa que tem o dever de cumprir a obrigação, substituindo sua conduta por uma atividade do Estado-Juiz que produz o mesmo resultado[8].

Nesse aspecto, não é demasia lembrar que a nossa tradição jurídica é fortemente calcada na responsabilidade patrimonial do devedor civil. Carnelutti, falando do direito italiano, enunciava que “no campo civil, por sua vez, o ‘pôr as mãos em cima’, em que se resolve a execução, não refere ao corpo humano, e menos ainda à pessoa, mas exclusivamente ao patrimônio, quer dizer, aos bens que pertencem ao obrigado inadimplente. O caráter puramente patrimonial da execução civil representa uma conquista da civilização, no sentido de que, diferentemente do que ocorria nas fases primitivas do direito, considera-se o corpo do homem como um bem intangível em todos os casos”[9].

De seu turno, os meios de coerção buscam vencer a resistência ao cumprimento da obrigação mediante uma pressão direta ou indireta sobre a pessoa obrigada, podendo admitir-se até mesmo sua incidência em obrigações pecuniárias, mas sempre com o propósito primário de estimular o cumprimento da determinação judicial e não de castigar uma conduta ou omissão já produzida (no que se distingue da sanção processual)[10].

É preciso reconhecer que, em nossa tradição jurídica, o manejo de meios de coerção no processo civil, para o cumprimento de obrigações de pagamento, sempre encontrou resistências.  O Supremo Tribunal Federal já decidiu, por exemplo, que “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”, em vista do disposto no “art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)”[11].

Já em relação à utilização de medidas coercitivas que importem restrição de direitos para cumprimento de obrigação pecuniária, é possível identificar, na nossa prática, algumas possibilidades. Já é antiga a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça que reputa legítima a legislação de trânsito quando autoriza que seja obstada a renovação da licença de veículo se pendentes multas, impondo-se apenas a observância do devido processo legal administrativo (exige-se a prévia notificação do devedor a respeito da multa).

Esse entendimento, que diz respeito aos poderes da administração pública, lança luzes para o tema aqui tratado, sobre os limites que devem ser observados pelo Estado-Juiz no manejo dos meios executivos. Havendo legislação específica, é lícita a imposição de medidas coercitivas no cumprimento de obrigações de pagar. Mas, conquanto seja condição necessária a existência de legislação, não é ela suficiente para satisfazer o devido processo legal. No caso do licenciamento de veículo, como se viu, a prévia notificação do devedor, a respeito da existência de multa, impôs-se como requisito para adoção dessa medida coercitiva no âmbito da administração pública, a indicar não apenas a necessidade de observância do contraditório, mas também que a medida coercitiva são subsidiárias.

No âmbito da administração tributária, é possível identificar outros parâmetros que podem se mostrar úteis para estabelecer limites às medidas coercitivas à disposição do Estado em obrigações de pagar.  O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência firme no sentido de que é inadmissível a interdição de estabelecimento ou a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para cobrança de tributo (Súmulas nos 70 e 323 do STF). Entende, também, a Corte que se mostra arbitrária e abusiva que se proíba o contribuinte em débito de adquirir estampilhas, despachar mercadorias nas alfândegas e exercer suas atividades profissionais (Súmula 547 do STF). Essa orientação, vale destacar, se justifica a partir do que dispõe os artigos 5º, inciso XIII (segundo o qual “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão”), e 150, inciso V (segundo o qual é vedado ao Estado “estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens, por meio de tributo”), ambos da Constituição[12].

O que o entendimento jurisprudencial revela é que há, por assim dizer, vedação a meios desproporcionais para cobrança de dívida, impondo-se ao Estado a necessidade de observar o devido processo legal substantivo. E mais importante, já há certa densidade normativa nas nossas práticas para orientar o que se entende, em concreto, como desproporcional, arbitrário e abusivo.

Há, ainda, outros campos a serem explorados. É possível cogitar da utilização dos meios coercitivos, na execução pecuniária, na descoberta do acervo patrimonial do devedor. A esse respeito, parecem corretas as ponderações do professor Manuel Ortells Ramos, catedrático de Direito Processual da Universidade de Valência, de que, nas execuções pecuniárias, a maior dificuldade que se encontra para a tutela do crédito é ter transparência sobre a situação patrimonial do devedor, sendo os meios de coerção úteis (ou mesmo imprescindíveis) para forçar a colaboração do devedor ou de terceiros na indicação de patrimônio (ao invés de focalizar na própria satisfação da obrigação). Nessa situação, pode-se argumentar que a medida violaria o direito à intimidade ou ao sigilo, cabendo refletir se é legítimo invocar tais direitos como forma de elidir ou dificultar o exercício da jurisdição e da imputação da responsabilidade do devedor por suas próprias condutas[13].

Há um vasto campo de possibilidades para “o poder geral de efetivação”, o que indica a necessidade de acurada reflexão sobre os limites de seu exercício. Não obstante a efetiva tutela do crédito represente uma legítima pretensão do credor, as medidas coercitivas derivam do reconhecimento do poder de império inerente à jurisdição, que deve ser exercido de forma equilibrada. Nesse passo, para prestigiar a jurisdição e dignificar o processo executivo — nessa tensão entre garantir a efetividade do direito do credor e a observância da integridade do devedor —, o regime de execução que se está a construir deve emergir a partir de um real diálogo com nossos demais referenciais normativos.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


[1] Inteiro teor da decisão disponível em http://s.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/decisao-suspendeu-carteira-habilitacao.jpg
[2] Inteiro teor da decisão disponível em http://cache-internet.tjdft.jus.br/cgi-bin/tjcgi1?MGWLPN=SERVIDOR1&NXTPGM=tjhtml34&ORIGEM=INTER&CIRCUN=5&SEQAND=256&CDNUPROC=20140510096830
[3] TRT8, processo nº 0000492-62.2016.5.08.0008 (RO).
[4] Em agosto de 2015, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) promoveu o Seminário “O Poder Judiciário e o novo CPC”, reunindo mais de 500 magistrados, com o objetivo de fixar diretrizes sobre a respeito da interpretação e aplicação do novo Código (confira notícia: http://www.enfam.jus.br/2015/09/enfam-divulga-62-enunciados-sobre-a-aplicacao-do-novo-cpc/)
[5] A respeito do assunto, o que o Supremo Tribunal Federal decidiu que “a penhorabilidade do bem de família do fiador do contrato de locação, objeto do art. 3º, inc. VII, da Lei nº 8.009, de 23 de março de 1990, com a redação da Lei nº 8.245, de 15 de outubro de 1991, não ofende o art. 6º da Constituição da República” (RE 407688, Rel.  Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, DJ 6/10/2006)
[6] Como leciona Leo Rosenberg, “a prerrogativa da execução forçada corresponde unicamente ao Estado. Ao credor, acorre apenas a pretensão executiva, de exigir do Estado a realização do seu direito de crédito (ROSENBERG, Leo. Tratado de Derecho Procesal Civil. Tomo III. Buenos Aires: EJEA, 1955. P.4)
[7] Teresa Armenta entende que esses limites são dados tanto em função dos direitos e das garantias do devedor quanto também por eventuais políticas públicas que busquem dar tratamento ao problema do endividamento (ARMENTA DEU, Teresa. Ejecución y medidas conminativas personales: un estudio comparado. RDUCN,  Coquimbo,  v. 22, n. 2, p. 23-54,    2015 . pp. 51-52. 
Texto disponível em: <http://www.scielo.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0718-97532015000200002&lng=es&nrm=iso>. com acesso em 12  de fevereiro de  2017. 
[8] ARMENTA DEU, Teresa. Ejecución y medidas conminativas personales: un estudio comparado. RDUCN,  Coquimbo,  v. 22, n. 2, p. 23-54,    2015 . pp. 24-25. 
[9] CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. São Paulo: Edijur, 2015. p. 113.
[10] ARMENTA DEU, Teresa. Ejecución y medidas conminativas personales: un estudio comparado. RDUCN,  Coquimbo,  v. 22, n. 2, p. 23-54,    2015 . pp. 24-25.
[11] STF, RE 466343 RG, Rel.  Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 3/12/2008, DJ 5/6/2009.
[12] Para apreender o sentido dessas Súmulas no contexto da Constituição de 1988, sugere-se a leitura do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal nos autos da ADI 395, Relatora Ministra Cármen Lúcia (Tribunal Pleno, julgado em 17/5/2007, DJ 17/8/2007).
[13] RAMOS, Manuel Ortells. La ejecución forzosa civil: três cuestiones sobre qué ejecutar, quién puede o debe hacerlo e cómo. Revista de Derecho de la Universidad de Montevideo, Año 12, nº 22, 2013, pp. 109-125. P. 120.

Autores

  • é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional. Doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito do Estado pela UnB. Professor de processo civil e advogado.

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