O símbolo Leviatã: o quanto de não dito há nas palavras da operação "lava jato"
18 de fevereiro de 2017, 7h05
Segundo ela, o epiteto seria uma referência — homenagem?! — ao filósofo Thomas Hobbes, “quando este afirmou que o homem é o lobo do homem”.
Não é de hoje que os investigadores ligados de alguma forma à "lava jato" (sic) dão demonstrações públicas de rigor intelectual ao dar nomes às suas operações. Erga omnes, alétheia, catilinárias foram algumas das palavras sofisticadas utilizadas pelos doutos. Isso, certamente, é algo alvissareiro. Talvez, seja inclusive um sintoma de que nossos programas de pós-graduação, em nível de mestrado e doutorado, estejam produzindo algum impacto também na formação desses profissionais. Sem embargo, não deixa de ser interessante observar a ginastica intelectual feita por repórteres e comentaristas políticos para tentar explicar e justificar o emprego de tais termos para a malta. Impossível não lembrar da célebre metáfora atribuída a William Bonner que retratava o personagem Homer Simpson como o arquétipo do espectador médio.
De todo modo, não há como saber se o problema está na fonte que fornece tais justificativas para os jornalistas ou na falta de talento dos profissionais que se ocupam de traduzir essa sofisticada linguagem para as massas. O fato é que os discursos que se sobrepõem para discutir essa intricada questão gera algumas situações interessantíssimas.
A mais recente é uma delas. Leviatã, como se sabe, não é uma palavra inventada por Hobbes. Foi usada por ele para dar nome à sua obra mais conhecida e comentada. Todavia, já existia no léxico religioso/político muito antes de Hobbes ter nascido. Sua origem está relacionada à Bíblia hebraica, sendo que a palavra aparece nos livros sapienciais, mais especificamente no de Jó. Quer ela significar uma espécie de monstro (discute-se se sua aparência seria mais próxima à de um crocodilo ou a de um dragão) representativo do mal que ameaça toda a criação. Nenhum ser humano seria capaz de enfrentá-lo. Apenas o próprio Deus o teria derrotado, confinando-o nas águas. O Leviatã, junto como o Beemot, é criatura com a qual o Deus ambíguo do Antigo Testamento procura assustar os humanos (vale lembrar que esse Deus hora é descrito como o Deus da bondade, hora como o Deus que repele as faltas de seus fiéis com o terror mais implacável. Ele deve ser adorado, mas, também, temido).
No capítulo 41 do Livro de Jó, encontramos a seguinte descrição do Leviatã: “Seus espirros lançam faíscas, e seus olhos são como a cor rosa da aurora. De sua boca irrompem tochas acesas e saltam centelhas de fogo. De suas narinas jorra fumaça, como de caldeira acesa e fervente. Seu bafo queima como brasa, e sua boca lança chamas. Em seu pescoço reside a força, e diante dele dança o terror. Os músculos do seu corpo são compactos, são sólidos e imóveis. Seu coração é duro como rocha e sólido como pedra de moinho” (Jó 41, 10-17).
Como afirma Harold Bloom, “Beemot e Leviatã representam, nitidamente, a tirania santificada da natureza em relação ao homem”[1]. Não é por simples acaso que os dois, Beemot e Leviatã, estão presentes na obra de Hobbes. Os antagonistas de Hobbes, contra os quais ele construiu seu pensamento político, eram pessoas letradas vinculadas à igreja e versadas em Teologia. Daí que as metáforas por ele utilizadas para descrever sua fórmula política fossem retiradas desse contexto religioso. Todavia, é possível notar, no emprego desses símbolos, uma flagrante ironia: enquanto a Bíblia retratava o Leviatã como um ser monstruoso que foi derrotado por Deus (Deus protege), mas que pode voltar a atacar os humanos caso coloquem à prova a ira divina (Deus castiga); para Hobbes, um Estado que se impõe como Leviatã é a única forma de os seres humanos sobreviverem ao Estado de Natureza. Portanto, a salvação não está em confiná-lo nos oceanos, mas, sim, em soltá-lo e deixar que reine sobre a terra.
Nessa medida, o Leviatã é a representação lírica do Estado Absolutista na forma arquitetada por Thomas Hobbes. Um Estado de poder ilimitado em favor do qual os súditos transferem toda a sua liberdade na expectativa de que terão, como contrapartida, a garantia de segurança e preservação da vida.
Ou seja, a assertiva “o homem é o lobo do homem” não é um derivativo da palavra Leviatã. Na verdade, essa frase aparece no contexto da antropologia hobbesiana que descreve os seres humanos como propensos à destruição mútua. Em Estado de Natureza, prevalece a situação de guerra de todos contra todos, de modo que cada ser humano vive o constante medo de ser vitimado por uma morte violenta. Deixados à mercê de sua liberdade, os seres humanos, individualmente ou em bandos, matam-se entre si. Para se livrarem do medo constante, devem entregar sua liberdade para o Soberano, e este, enquanto personificação do Estado Leviatã, deve, em contrapartida, garantir a segurança de todos. Por isso, Leviatã não significa que “o homem é o lobo do homem”. Ao contrário, em razão do homem ser o lobo do homem, organizar-se em bandos que produzem constantes conflitos em Estado de Natureza, sua única chance de sobreviver em paz (controlando racionalmente o medo) é entregando-se às forças do Estado Leviatã.
O divertido disso tudo é que, consciente ou inconscientemente, aqueles que nomearam essa mais nova operação como Leviatã conseguiram significar, com invejável precisão semântica, a transformação do nosso sistema de Justiça em tempos de "lava jato" (sic). Prisões preventivas que se arrastam por mais de um ano e se mostram verdadeiras antecipações da pena; conduções coercitivas determinadas ao arrepio da lei; vazamentos estratégicos de delações premiadas, entre muitas outras coisas, mostram que apenas de maneira muito precária é que podemos dizer que ainda hoje temos a integralidade de um Estado de Direito entre nós. Ao contrário, a impressão é que o Leviatã foi solto e pode, a qualquer momento, entrar nas nossas casas para efetivar uma busca e apreensão ou uma condução coercitiva.
Vale frisar: o monstro Leviatã representa a metáfora absolutista a ponto de o súdito trocar a sua liberdade — e, no limite, tudo que possui — por segurança. Ups: a Polícia Federal tem razão. Não é isso que estamos fazendo? Estamos vivendo em uma “democracia delegativa” similar àquele de que fala Guillermo O’Donell. Uma paradoxal “democracia hobbesianista”. Trocamos até nossa liberdade e nossas garantias constitucionais para apoiar, com discursos que atropelam o (nosso) Direito em favor da moral, a hobbesianização de nosso país. Devemos lembrar, também, uma outra coisa: o Leviatã pode proteger mesmo os pequenos animais… Mas, quando tem fome, devora-os.
Portanto, sem querer querendo, como diria o filósofo contemporâneo Chaves do Oito, a PF acertou. Veja-se como um nome pode dizer tanta coisa. O não dito é sempre maior do que o dito. O implícito é gritante.
P.S. Ficaríamos muito decepcionados se a palavra Leviatã tivesse sido utilizada para dar nome à operação em razão de um dos envolvidos chamar-se Lobo, quer dizer, Lobão. Seria como dar o nome de Estagirita a uma operação que envolvesse alguém chamado Ari.
[1] BLOOM, Harold. Onde Encontramos a Sabedoria? Rio de Janeiro: Objetiva, 2005, p. 27.
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