Limite Penal

Dissonância cognitiva no interrogatório malicioso: não era pergunta, era cilada

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17 de fevereiro de 2017, 7h00

Spacca
O interrogatório é tanto meio de prova como meio de defesa, já que indica/confirma a versão dos jogadores[1], oportunidade em que o acusado, por si, narra sua versão do ocorrido. Os limites da cognição são os constantes da imputação, sem que se estabeleça verdadeiro “juízo final” em nome de imaginária verdade real ou para fins de verificação do artigo 59 do CP. Cabe ao juiz e aos jogadores a garantia do fair play no decorrer do interrogatório, ainda que seja muito difícil ao defensor intervir quando se defronta com um inquisidor.

Pode acontecer, assim, que o julgador já esteja convencido da culpa do acusado e se utilize do momento do interrogatório (CPP, artigo 185 e seguintes) para arrecadar significantes ambíguos capazes de se utilizar em qualquer sentido, especialmente para justificar, dado seu duplo efeito, a culpa pressuposta, na linha do que se denomina fenômeno da dissonância cognitiva.

O desafio da cognição judicial imparcial em face da interação processual precisa dialogar com a noção de dissonância cognitiva[2]. Todos nós buscamos internamente manter a coerência entre comportamentos, opiniões, crenças e atitudes, a saber, a cada nova informação advinda do exterior (informação acrescida), precisamos atualizar o nosso conhecimento e, para tanto, realizamos o processo (in)voluntário de manutenção/modificação das nossas premissas do mapa mental. Um exemplo trivial pode auxiliar, parafraseando Callegaro[3]: imagine que você está na chuva e pode procurar proteção (comportamento), mas, não encontrando, pode modificar a atitude, dizendo que ‘como é gostosa uma chuva’; ‘fazia tempo que não tomava banho de chuva’, bem como reduzir a dissonância, inserindo novos elementos cognitivos, no estilo, ‘mais uma adversidade a superar’, ‘a cidade fica mais bonita com a chuva’, e, por fim, evitar a dissonância pensando que ‘nem está chovendo tanto assim’. A postura em face do novo elemento pode variar[4], embora o traço de harmonização cognitiva se mantenha[5]

A cognição e o comportamento humano estão fortemente vinculados, razão pela qual será necessário (re)organizar mentalmente e justificar a coerência interna. As informações novas podem confirmar ou não as nossas premissas. Se buscarmos manter a coerência interna, tenderemos a mitigar a dissonância com a modificação do comportamento, a invalidação do argumento novo, o acolhimento da nova informação, mas com a desqualificação (da fonte/conteúdo) ou criando uma exceção, evitando a dissonância. Dito de outro modo, os mecanismos são, segundo Ritter[6]: “(1) mudança de elementos cognitivos dissonantes; (2) desvalorização de elementos cognitivos dissonantes; (3) adição de novos elementos cognitivos consonantes com a cognição existente; e, (4) evitação ativa do aumento desses elementos dissonantes”.

A força do novo argumento/informação, quando dissonante à cognição pré-existente, faz com que haja maior pressão para se reduzir a dissonância introduzida, impondo ao sujeito que manipule (consciente ou inconscientemente) as razões para manutenção da crença, comportamento, opinião ou atitude. Em geral, o sujeito convence-se de que está certo, obliterando (invalida, distingue, excepciona, nega, evita etc.) o que não convém. O efeito do compromisso se manifesta, justamente porque a premissa é mantida, mesmo com incremento de informação contrária. O que contradiz as premissas entrincheiradas causa desconforto e inquietude, forjando-se mecanismos de defesa capazes de manter a aparente coerência com o novo acrescentado[7]. O novo elemento, contudo, deve ser relevante, com capacidade de derrotar a conclusão antecipada. A consonância/dissonância exige que o material informacional implique a necessidade de revisão das premissas no tocante a opiniões, crenças, comportamentos e atitudes, isto é, que seja relevante. Poderemos ter crenças que não são atingidas no evento cognitivo, por exemplo, o fato de o acusado fumar não muda a opinião de um furto. Deve existir conexão cognitiva entre as novas informações e a premissa que se torna alvo da dissonância, motivo pelo qual as perguntas às testemunhas e os argumentos invocados devem ser convergentes. As razões e motivos que justificam a crença, atitude, comportamento ou opinião tendem a manter a consonância.

A cada subjogo probatório são tomadas diversas decisões pelos jogadores, em especial pelo julgador. Deferir perguntas, acolher/rejeitar pedidos cautelares, decretação de prisões etc., todos os momentos exigem antecipação cognitiva. E a explicação posterior, a saber, pós-decisão, é local adequado para justificativas consonantes forçadas, ao mesmo tempo em que pode implicar na tendência à evitação[8] de novos elementos dissonantes[9], em geral, com viés de confirmação. Quando compramos uma casa podemos ter diversas opções e, depois de feita a compra, tendemos a reconhecer os aspectos positivos, ao invés dos negativos, como forma de confirmar o acerto da escolha[10]. Assim fazemos nas escolhas de profissões, casamentos, namoro, viagens, enfim, procuramos justificar o "acerto" da decisão judicial, da tática processual, pelos mais variados fatores, todos vinculados à manutenção da coerência interna. Pode operar a premissa das hipóteses sobre os fatos, indicada por Cordero[11]. Dito de outro modo, estando o julgador convencido da culpa/inocência, tende a operar selecionando o que convém, muitas vezes sem sequer dar-se conta. Por isso, diante da culpa pressuposta, não se tratam mais de perguntas[12], mas de ciladas de sentido.


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis; Empório do Direito, 2017.
[2] FESTINGER, Leon. Teoria da Dissonância Cognitiva. Trad. Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1975; SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de Direito Penal, Direito Processual Penal e Filosofia do Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013; RODRIGUES, Aroldo; ASSMAR, Eveline Maria Leal; JABLONSKI, Bernardo. Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2010; GOLDSTEIN, Jeffrey H. Psicologia Social. Trad. José Luiz Meurer. Rio de Janeiro: Guanabara Dois, 1983; ÁLVARO, José Luis; GARRIDO, Alicia. Psicologia Social: Perspectivas Psicológicas e Sociológicas. Trad. Miguel Cabrera Fernandes. São Paulo: McGraw-Hill, 2006; BERKOWITZ, Leonard. Psicologia Social. Trad. Magali Rigaud Pantoja Bastos. Rio de Janeiro: Interamericana, 1980; LIMA, Luísa Pedroso de. Atitudes: Estrutura e Mudança. In: VALA, Jorge; MONTEIRO, Maria Benedicta (coord.). Psicologia Social. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004; RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal: Reflexões a partir da Teoria da Dissonância Cognitiva. Porto Alegre: PUCRS (Dissertação: mestrado), 2016.
[3] CALLEGARO, Marco Montarroyos. O Novo Inconsciente. Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 93; GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Prisões cautelares, confirmation bias e o direito fundamental à devida cognição no processo penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 117, ano 23, p. 263-286, São Paulo: RT, nov-dez, 2015, p. 276: “Basicamente, a teoria da dissonância cognitiva trata com relações entre objetos e preferências, a partir do quadro de experiência acumulado pelo intérprete. Um evento que confirma as pressuposições e que faz parte, assim, do conjunto de expectativas do intérprete produz um sentimento de consonância. Quando alguém, por exemplo, encosta sua mão no fogo e queima, ocorre uma relação de consonância entre o intérprete e aquela situação vivida. Entretanto, quando, por exemplo, encosta a mão no fogo e por algum motivo não se queima, ocorre uma situação de dissonância, geradora de intenso mal-estar, uma vez que o evento acaba fraturando o conjunto de experiências acumuladas pelo sujeito, que pressuporiam um acontecimento diverso. Tem-se então uma relação dissonante”.
[4] FREEDMAN, Jonathan L; CARLSMITH, J. Merril; SEARS, David O. Psicologia social. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1977, p. 356: “Daí sua relação com as demais situações de impulso: ‘’se sentimos fome, fazemos alguma coisa para reduzir a fome; se sentimos medo, fazemos alguma coisa para reduzir o medo; e se sentimos dissonância, fazemos alguma coisa para reduzi-la também”.
[5] RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal: Reflexões a partir da Teoria da Dissonância Cognitiva. Porto Alegre: PUCRS (Dissertação: Mestrado), 2016, p. 86: “Partindo de tal princípio (que pressupõe harmonia entre percepções, ações e atitudes), tais teorias estudam as consequências de seu rompimento pelo indivíduo (que experimentará um estado de desarmonia cognitiva), fazendo-se surgir processos involuntários para seu restabelecimento”.
[6] RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal: Reflexões a partir da Teoria da Dissonância Cognitiva. Porto Alegre: PUCRS (Dissertação: Mestrado), 2016, p. 90.
[7] LINDGREN, Henry Clay. Introducción a la Psicologia Social. Trad. Nuria Parés; María Inés de Salas. México: Editorial Trillas, 1978, p. 154: “Como el individuo se esfuerza por mantener armonía o consonância entre los elementos cognoscitivos, la disonancia da lugar a una presión para disminuirla y el grado de presión estará de acuerdo con el grado de disonancia que haya. Festinger señala que la disonancia opera como un impulso, una necesidad o una tensión. Cuando aparece, provoca una acción para reducirla, así como la aparición del hambre lleva a una acción para que disminuya”.
[8] RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal: Reflexões a partir da Teoria da Dissonância Cognitiva. Porto Alegre: PUCRS (Dissertação: Mestrado), 2016, p. 97: "Derradeiramente, como quarto processo a ser analisado, a evitação ativa do aumento de dissonância cognitiva não deixa de ser uma fase antecedente aos procedimentos que se acabou de apreciar. Afinal, somente estando frustrado o processo de evitação, é que sobrevirão os mecanismos de defesa contra a absorção da dissonância oriunda do contato forçado com elementos contraditórios. Enfim, o que deve ser aqui destacado é simples e de fácil compreensão: se há uma pressão intensa para se reduzir ou eliminar a dissonância existente, evidente que concomitantemente a isso haverá também um processo de evitação do seu aumento, caracterizado pela fuga ativa de contato com elementos possivelmente dissonantes".
[9] RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal: Reflexões a partir da Teoria da Dissonância Cognitiva. Porto Alegre: PUCRS (Dissertação: Mestrado), 2016, p. 95. "Afinal, ainda que a adição de elementos cognitivos consonantes a cognição já existente (por meio da exposição voluntária a novas informações congruentes) seja a regra, inúmeras vezes o contato com elementos dissonantes é inevitável, forçado (situação que pode ocorrer tanto na busca frustrada por elementos cognitivos consonantes — casos em que a fonte aparentava trazer um conteúdo e apresentava, de fato, outro — quanto em situações envolvendo a sugestão de terceiros — quando de forma voluntária ou não, transmitem uma informação contrária a que se está procurando), ensejando técnicas diferentes das até aqui observadas, a fim de obstaculizar a incorporação da dissonância. São elas: a percepção errônea, a invalidação e o esquecimento seletivo”.
[10] SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de Direito Penal, Direito Processual Penal e Filosofia do Direito. Luís Greco (coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 208: “Por outro lado, segundo o princípio da busca seletiva de informações, procuram-se, predominantemente, informações que confirmam a hipótese que, em algum momento prévio, fora aceita (<<acolhida pelo ego>>), tratem-se elas de informações consonantes, ou de informações dissonantes, desde que, contudo, sejam facilmente refutáveis, de modo que elas acabem tendo um efeito igualmente confirmador”.
[11] CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Torino: UTET, 1986, p. 51: “A solidão na qual os inquisidores trabalham, jamais expostos ao contraditório, fora dos grilhões da dialética, pode ser que ajude no trabalho policial, mas desenvolve quadros mentais paranoicos. Chamemo-os ‘primado da hipótese sobre os fatos’: quem investiga segue uma delas, às vezes com os olhos fechados; nada a garante mais fundada em relação às alternativas possíveis, nem esse mister estimula, cautelarmente, a autocrítica; assim como todas as cartas do jogo estão na sua mão e é ele que as coloca sobre a mesa, aponta na direção da ‘sua’ hipótese. Sabemos com quais meios persuasivos conta […] usando-a, orienta o êxito para onde quer”.
[12] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 70: “Para diminuir a tensão psíquica gerada pela dissonância cognitiva, haverá dois efeitos (SCHÜNEMANN): efeito inércia ou perseverança: mecanismo de autoconfirmação de hipóteses, superestimando as informações anteriormente consideradas corretas (como informações fornecidas pelo inquérito ou a denúncia, tanto que ele as escolhe para aceitar a acusação pedido de medida cautelar, etc.); busca seletiva de informações: onde se procuram, predominantemente, informações que confirmam a hipótese que em algum momento prévio foi aceita (acolhida pelo ego), gerando o efeito confirmador tranquilizador”.

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  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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