Interesse Público

Sem planejamento orçamentário,
licitação não evita corrupção

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

16 de fevereiro de 2017, 7h01

Spacca
Há uma mística em torno da licitação, como se ela fosse uma garantia de honestidade. Não é. Uma licitação viciada, combinada entre todos os corruptos e corruptores, é o meio mais seguro de praticar a corrupção, pois, quando o contrato resulta de uma licitação, há uma presunção de licitude e, caso haja algum problema, algum questionamento, a responsabilidade é diluída.

A utilização do procedimento licitatório como instrumento da corrupção está evidenciado pelo que se conseguiu apurar, até agora, com relação às maiores empreiteiras do Brasil. Fui advogado dessas empresas há muito tempo, quando as licitações eram para valer e havia, sim, uma séria disputa pela obtenção do contrato. Mas perdi meus clientes quando as licitações passaram a ser meras encenações, com resultado já acertado entre todos os interessados. Quando não há disputa, para que serve o advogado?

No momento atual, há uma grande preocupação com o aprimoramento do procedimento licitatório, com foco na alteração da legislação vigente, especialmente da Lei 8.666/1993, com os penduricalhos que foram sendo a ela agregadas ao longo do tempo. Entre tais penduricalhos destaca-se a Lei 12.462/2011, que instituiu o chamado RDC, Regime Diferenciado de Contratações, o qual  facilitou, enormemente, o descaminho das contratações públicas e, exatamente por facilitar negociações espúrias, teve a sua área de abrangência ampliada ao longo do tempo, perdendo seu originário caráter emergencial, para se tornar prática permanente.

A farsa do caráter emergencial fica bem evidente quando se pondera que os eventos esportivos que justificaram as “facilidades” dessa lei, nada tinham de surpreendentes a exigir medidas excepcionais, pois foram agendados a, pelo menos, mais de cinco anos antes e, todos eles, quando o Brasil postulou sediá-los, já deveriam ter uma programação de eventos e obras e um estudo de viabilidade econômica. Este é o ponto que se quer destacar neste artigo: nenhuma licitação para obra de grande vulto pode ser aberta de repente, sem que esteja inserida em um processo de planejamento.

A pergunta que não pode deixar de ser feita é a seguinte: a  simples melhoria do procedimento licitatório vai, efetivamente contribuir para a moralização das contratações públicas? Entendo que, com a experiência haurida dos erros do passado, é possível, sim, o aprimoramento da legislação sobre o procedimento licitatório e, principalmente (pois isso é absolutamente essencial), a restauração da  credibilidade das contratações públicas. Mas é preciso evitar dois perigos: o excesso de cuidados com detalhes e a falta de cuidados com o essencial.

Não se pode tomar a exceção como regra. Ou seja, houve muita corrupção, mas, paralelamente, creio que na grande maioria dos casos, licitações e contratações honestas continuaram ocorrendo. O perigo é o de que, para barrar os desonestos, se criem dificuldades, barreiras, cautelas e exigências despropositadas para a grande maioria de gestores públicos e contratados honestos. O excesso de detalhamento pode ensejar desestímulo à participação das empresas em licitações e gerar nulidades comprometedoras do princípio da eficiência.

Cuidados maiores merecem as grandes contratações, de vultoso valor, nas quais o procedimento licitatório, em si mesmo, é apenas um detalhe. Com efeito, já se percebeu que o procedimento licitatório começa muito antes da publicação do edital e tem reflexos muito além da celebração do contrato. As condições de participação no certame são definidas, logicamente, antes da publicação do edital, na chamada fase preparatória, podendo restringir ou ampliar a competição entre o universo de eventuais interessados. Também logicamente, a execução do contrato depende daquilo que foi estipulado durante o desenvolvimento da licitação, compreendendo as condições contidas no edital e na proposta vencedora.

Entretanto, as contratações de obras e serviços de grande vulto dependem da existência de recursos orçamentários para seu atendimento. A experiência tem mostrado que a corrupção começa no momento da definição de prioridades governamentais e da correspondente definição das dotações orçamentárias. Há, inegavelmente, uma ligação direta entre licitação, corrupção e orçamento público.

Não basta melhorar o procedimento licitatório. É absolutamente essencial que se ponha em prática, para valer, todo o sistema de planejamento orçamentário previsto no artigo 165 da Constituição Federal, compreendendo o plano plurianual de investimentos, a lei de diretrizes orçamentárias e o orçamento anual. A principal lei disciplinando a elaboração e a execução do orçamento público é a Lei 4.320, de 1964, que está obviamente defasada e, muito pior que isso, completamente desacreditada, fazendo com que o orçamento anual acabe sendo uma obra de ficção.   

A desordem orçamentária foi bastante reduzida com o advento da chamada Lei de  Responsabilidade Fiscal, LC 101/2000, a qual, entretanto, foi sendo solapada pouco a pouco. Em síntese, a Lei de Responsabilidade Fiscal funcionou, durante algum tempo, como uma advertência no sentido de que as normas constitucionais sobre o sistema de planejamento orçamentário deveriam ser obedecidas. Porém, as repetidas reclamações e manifestações de tolerância com as transgressões, especialmente no plano federal, levaram ao desastre que se observa atualmente.

Os mais antigos talvez se recordem das obras públicas intermitentes, que eram comuns no passado. Uma obra de grande vulto era iniciada quando havia recursos para seu início, mas seu prosseguimento dependia da previsão orçamentária e, como não havia um sistema de planejamento orçamentário, a dotação orçamentária era decidida a cada ano, podendo ser, ou não consignada no orçamento anual. Isso fazia com que obras eram iniciadas, ficavam paralisadas, tinham uma nova etapa executada, paravam novamente e assim por diante, dependendo exclusivamente de pressões de legitimidade duvidosa, com acentuado aumento dos custos.

Os mais novos não se lembrarão disso, mas poderão contemplar a realidade atual que, no fundo, se apresenta como uma volta ao passado. Como é de conhecimento geral, nos dias de hoje, grandes obras públicas normalmente extravasam completamente tanto a previsão de custos quanto o tempo estimado para sua execução. Uma grande obra pública, como uma refinaria, uma linha de metrô, um porto ou aeroporto,  quando não obedecem a um planejamento, causam enorme lesão ao erário e grande  abalo na economia, pela frustração das expectativas e, principalmente, para  aqueles que, acreditando na efetiva execução da obra, investiram em futuras atividades complementares.

Como que para remediar a irresponsabilidade reinante no momento da contratação, passou-se à utilização desmedida das anacronicamente chamadas “cláusulas exorbitantes” do contrato administrativo, com a celebração de aditamentos, subcontratações e a concessão de reajustes, que, em seu conjunto, são reconhecidos como o campo mais fértil para a corrupção.

Tudo isso poderia ser evitado se as disposições constitucionais sobre o sistema de planejamento orçamentário fosse efetivamente observado. Políticas públicas e, por conseguinte, prioridades governamentais, deveriam ter raízes no plano plurianual, num momento ainda distante da licitação, para depois passar pelo crivo da lei de diretrizes orçamentárias, que deve ser efetivamente havida como condicionante do orçamento anual e, por decorrência, da efetiva execução dos projetos e programas orçamentários. Não é possível garantir que a corrupção seria extirpada, mas, pelo menos, seria bastante dificultada, com ganhos substanciais para o erário e para a coletividade.

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