Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo japonês (parte 55)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

15 de fevereiro de 2017, 7h10

Spacca
1. Formação jurídica japonesa: Da Prússia a Nova York?
Em um comentário recorrente sobre os japoneses, diz-se que eles são os “alemães da Ásia”, a significar que compartilham de alguns traços culturais “típicos” dos germânicos, como a organização, a disciplina e o senso de hierarquia. Abstraindo-se de explicações estruturalistas, que identificam um “caráter nacional” dos povos, algo em relação a que se deve guardar muitas reservas, talvez uma das razões dessa associação entre japoneses e alemães esteja na prussificação do país levada a efeito pela dinastia Meiji no final do século XIX e que se estendeu até meados do século XX.

Um dos exemplos mais flagrantes da adoção de modelos prussianos no Japão está no Exército Imperial, remodelado inteiramente após a Restauração Meiji. No entanto, esse não é mais um modelo válido, na medida em que, após a derrota japonesa para os aliados na Segunda Guerra Mundial, as estruturas militares foram transformadas radicalmente. Não há mais Forças Armadas, e sim Forças de Autodefesa. Os arquétipos prussianos foram substituídos pelos norte-americanos. Remanesce, porém, um campo no qual a influência alemã é ainda hoje presente, a despeito de modificações implementadas na última década, que é o Direito e a formação dos juristas.

O Japão, até a reforma de 2004, era um verdadeiro parque temático da educação jurídica germânica transplantada para a Ásia. Após a mudança legislativa de 2004, esse modelo não é mais monolítico e passou a conviver com estruturas tipicamente norte-americanas. Pode-se dizer que o Japão experimenta hoje uma complexa e difícil transição entre Berlim e Nova York.

2. A evolução do modelo japonês (ou raízes de uma reforma malsucedida?)
Qual o espaço do Direito, da Justiça, dos aparatos judiciários e dos advogados em uma nação marcada por índices reduzidos de criminalidade, baixa litigiosidade privada e um senso de dever individual arraigado? A resposta parece ser óbvia. Esse “problema” — se é que se pode assim qualificá-lo — foi devidamente registrado em uma curiosa matéria no The Wall Street Journal, edição de 3 de abril de 2016, cujo título é autoexplicativo: “Japanese lawyers’ problem: too few cases” (O problema dos advogados japoneses: tão poucos casos)[1].  

É interessante explicar essa situação de um modo retrospectivo.

Até 1945, a formação jurídica japonesa era estritamente baseada no modelo alemão, com a instituição de exames de admissão para a advocacia e para as carreiras da magistratura (juízes e promotores). No pós-guerra, unificaram-se os exames profissionais e democratizou-se o acesso ao ensino superior. No ano 2000, havia 93 faculdades de Direito e 45 mil estudantes a cada ano nos cursos jurídicos[2].

A graduação em Direito durava quatro anos e, à semelhança do ensino alemão, a matriz curricular era primordialmente voltada para o estudo da Constituição, dos códigos Civil, Penal, Comercial, de Processo Civil e de Processo Penal. A estrutura das aulas era magistral. As aulas eram voltadas para os códigos e o estudo de doutrina. Havia uma nítida distinção entre formação teórica e formação prática, sendo que esta última não era objetivo da faculdade. O egresso então aprovado no Exame de Ordem (Shihou shiken) ou no Exame de Estado para ingressar na magistratura tinha acesso a um período de instrução prático-profissional[3].

O sistema pré-reforma de 2004 era considerado restritivo ao acesso às carreiras jurídicas: nos anos 1990, o número de aprovados no Exame de Ordem era limitado a 500 por ano, com um índice de 3% de aprovação, considerado o universo de candidatos. Com isso, um número considerável dos formados em Direito encontrava ocupação no serviço público ou como empregado de companhias privadas[4].

Como resultado desse tipo de formação e de recrutamento profissional, o número de advogados no Japão era incrivelmente baixo, especialmente se comparado ao de outros países: a) 13.800 (1990); b) 15.108 (1995); c) 21.185 (2005). A comparação torna esses números ainda mais eloquentes. No ano de 1997, tinha-se a seguinte distribuição de advogados por país: a) Japão (20 mil); b) Estados Unidos (941 mil); c) Reino Unido (83 mil); d) Alemanha (111 mil); e) França (36 mil)[5].  

Esse quadro levou a que a reforma do ensino jurídico japonês avançasse, com apoio de professores e magistrados, o que se materializou em 2004. Com o novo modelo, adotou-se a alternativa de um curso jurídico pós-graduado de três anos, conforme o equivalente norte-americano, com uso do método socrático em pequenas turmas. Um novo Exame de Ordem seria instituído a partir de 2010, com maior facilidade de aprovação. Paralelamente, manter-se-ia a matriz curricular atual de graduação[6].

Passados 10 anos dessas mudanças, a reforma radical do modelo japonês apresentou mais externalidades negativas do que imaginaram seus idealizadores. Não deixa de ser interessante comparar os resultados pouco eficazes de uma mudança dessas proporções na estrutura da formação jurídica de um país com as ideias que comumente se divulgam no Brasil sobre a “crise do ensino jurídico”, o abandono dos métodos tradicionais e a superação do modelo atual, muitas delas sem apoio em base empírica ou qualquer parâmetro objetivo de impacto regulatório.

Os números sugerem fortemente a falta de sucesso da reforma, ao menos em relação aos objetivos que ela almejava atingir, segundo dados de 2015: a) havia 36.415 advogados no Japão, mais do que o dobro dos existentes em 2001; b) 78% dos advogados atuam em escritórios com menos de 10 integrantes. Não ocorreu uma mudança no caráter artesanal e liberal da profissão de advogado no Japão; c) apenas 9 firmas de advocacia empregam mais de 100 advogados no Japão; d) os serviços jurídicos privados correspondem a 0,1% do Produto Interno Bruto (PIB) japonês, equivalentes a US$ 5 bilhões. Em comparação, esses serviços nos Estados Unidos chegam a US$ 221 bilhões, um percentual de 1,27% do PIB; e) no âmbito cível, de 2004 a 2014, houve um crescimento de 2,5% na litigância cível nos juízos de primeiro grau; f) houve uma queda acentuada no número de ingressantes nas faculdades de Direito japonesas na última década[7]; g) houve uma queda na renda média anual dos advogados japoneses, entre 2006 e 2014, de 17,5 milhões de ienes (US$ 153.751,50 ou R$ 476.525) para 9 milhões de ienes (US$ 79.072,90 ou R$ 245.070). Em razão disso, muito escritórios fecharam, com profissionais deixando a advocacia[8].

As faculdades que se converteram ao novo modelo têm encontrado enorme dificuldade de se adaptar ao método socrático importado dos Estados Unidos. As turmas com poucos alunos são apenas uma parcela visível desse problema. Há ainda a dificuldade de se ensinar aos alunos, especialmente do primeiro ano, com base no método norte-americano quando eles não possuem base prévia de conhecimentos jurídicos. Some-se a isso a dificuldade de compatibilização desse modelo de ensino com uma cultura jurídica fortemente influenciada pela tradição de civil law[9].  

Muitas das faculdades de Direito terminaram por recuar na adoção do novo modelo e se mantiveram ou retornaram ao modelo pré-2004. O modelo tradicional continua prevalente no Japão. Outro aspecto que causou desconforto foi a perda de centralidade das faculdades de Direito, pois o aluno pode ser graduado em outros cursos e só fazer um curso “pós-graduado”, como se dá nos Estados Unidos. Muitos professores que apoiaram a reforma hoje não a defenderiam se pudessem voltar no tempo. Quanto aos estudantes, há um número expressivo que considera o modelo antigo pouco interessante e antiquado. O câmbio no sistema também implicou uma guinada no modo como o conteúdo jurídico é transmitido. O novo modelo é considerado mais tecnicista e pragmático.

3. Número de faculdades de Direito no Japão
Após a reforma de 2004, segundo o questionário que se formulou a Takashi Kojiro, atualmente há 42 faculdades de Direito públicas e 77 instituições particulares no Japão, as quais seguem o modelo clássico de ensino jurídico. Ao passo em que se têm 18 instituições públicas e 24 faculdades privadas seguindo o modelo pós-2004.

As faculdades japonesas experimentam hoje uma crise sem precedentes. O número de interessados em ingressar em cursos jurídicos no Japão caiu de 72.800, no ano de 2004, para 11.450 candidatos, no ano de 2014, conforme pesquisa desenvolvida por Masahiro Tanaka, da Universidade de Tsukuba[10].

***

Não se pode declarar o fracasso da reforma educacional japonesa. É cedo para afirmá-lo peremptoriamente. Se comparados seus efeitos com os objetivos da reforma, poder-se-ia defender, exclusivamente quanto a esse ponto, o insucesso do novo modelo. Independentemente de um juízo favorável ou desfavorável ao novo modelo, devem-se pôr luzes sobre outros aspectos, esses sim muito mais aderentes à realidade brasileira e ao nível de discussão aqui existente.

Primeiramente, a reforma japonesa é um bom exemplo de como o debate sobre a educação jurídica pode ser capturado por jogos de palavras, belos discursos, lugares-comuns e a falta de impacto regulatório. Ensino participativo, novos métodos, ataques ao formalismo ou à aula magistral integram um jargão comum e quase sacrossanto quando esse tema é publicamente discutido. O problema é que não há base empírica para se avaliar o sucesso dessas teses quando aplicadas à realidade em um país de tradição de civil law. Tais experimentações localizadas são muito bem-vindas como formas de se demonstrar a validade de certas teorias educacionais. Quando elas se transformam em regra geral, o risco de efeitos colaterais como os encontrados no Japão se enormes.

Em segundo lugar, é notável a contradição entre discursos de “humanização” da educação jurídica e novos métodos de ensino-aprendizagem. Abstraindo-se o que signifique realmente a “humanização”, veja-se que a reforma japonesa deu-se em nome de um maior tecnicismo e de uma maior preocupação com a “prática” na formação dos alunos. Finalmente, a questão do impacto regulatório e de bases estatísticas para se proceder a reformas no ensino jurídico deveria ocupar a centralidade em qualquer estudo governamental sobre o tema. Não há séries históricas de dados, não se encontram estudos rigorosos de impacto regulatório, bem como inexistem estudos comparatísticos prévios a tais mudanças.


[1] Disponível em: https://www.wsj.com/articles/japanese-lawyers-problem-too-few-cases-1459671069. Acesso em 14/2/2017.
[2] MATSUI, Shigenori. Turbulence ahead: The future of Law Schools in Japan. Journal of Legal Education, v.62, n.3, p.3-31, 2012. p.4.
[3] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.4.
[4] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.5.
[5] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.6.
[6] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.11.
[7] Disponível em: http://blogs.wsj.com/briefly/2016/04/03/the-legal-industry-in-japan-the-numbers/. Acesso em 14/2/2017.
[8] Disponível em: https://www.wsj.com/articles/japanese-lawyers-problem-too-few-cases-1459671069. Acesso em 14/2/2017.
[9] MATSUI, Shigenori. Op. cit. p.20-21.
[10] TANAKA, Masahiro. Japanese law schools in crisis: A study on the employability of law school graduates. Asian Journal of Legal Education, v.3, n.1, p.38-54, 2016. p.38-40.

*Texto alterado às 12h44 do dia 15/2 para correções.

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    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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