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A nova Declaração País a País (DPP) e suas consequências para os contribuintes

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15 de fevereiro de 2017, 7h00

“A morte é a curva da estrada/
Morrer é só não ser visto.”
(Fernando Pessoa)

“De ossos e Sol, não de vida, se faz o Tempo.
Porque a Vida é feita contra o Tempo.
Sem medida, tecida de ínfimos infinitos.”
(Mia Couto, in A confissão da Leoa).

No último dia 1º de fevereiro, realizou-se em Lisboa o I Encontro Tributário Brasil-Portugal em homenagem ao professor Alberto Xavier, promovido pela Associação Fiscal Portuguesa (AFP) e pela Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF). Parabenizo os presidentes, respectivamente, professores Rogério Fernandes Ferreira e Gustavo Brigagão pela iniciativa, e agradeço-lhes pela oportunidade de participar do evento.

Foi mais uma bonita celebração da memória de um grande jurista que nos deixou precocemente, em setembro do ano passado. Homenagem que fecha um ciclo e marca o retorno à sua Lisboa natal, deixada em 1974, para uma conhecida aventura além-mar no Brasil. Alberto cruzou o mar salgado, o mar de lágrimas de Portugal, passou do Bojador, além da dor, e o que construiu valeu, valeu muito a pena. A grandeza de sua alma, a dedicação incansável ao estudo, ao constante aprendizado, sem deixar de apreciar — e muito — o mundano, forjaram uma figura ímpar, um homem único, especial, lembrado com saudade por todos. Saudade às vezes com tristeza, às vezes com algum riso, sempre com lamento pela perda de uma grande companhia.

O Brasil, país de sua escolha, seu destino e porto seguro, onde recomeçou a carreira profissional e acadêmica e foi reconhecido como uma das maiores autoridades do Direito Tributário. Brasil, país de que tinha orgulho de também ser nacional: se em sua qualificação escrevessem “português”, logo reclamaria dizendo que estava errado, que era “brasileiro”. Essa dupla nacionalidade produzia pérolas de ironia, como bem recordou o amigo André Oliveira em sua intervenção no encontro. Uma vez questionado por que depois de tantos anos no Brasil não tinha perdido seu “sotaque de português”, Alberto retrucou dizendo que ele falava o original e quem tinha “sotaque” eram os brasileiros.

Alberto dobrou a curva da estrada, deixou de ser visto em pessoa, mas seguirá sendo visto em sua obra jurídica, seu maior legado para futuras gerações, inspiração para aqueles que estão começando a trilhar suas carreiras na profissão e que ainda não fazem ideia do quanto da construção científica de nosso Direito Tributário saiu da caneta desse grande jurista luso-brasileiro.

Sua capacidade de construção científica foi fruto de muito estudo, criatividade e coragem. Sem medo, Alberto esmerilhava conceitos jurídicos, estudava profundamente os civilistas — admirava sobretudo Galvão Telles, Antunes Varella e Orlando Gomes —, queria conhecer a fundo os conceitos e formas de Direito Privado, que nosso cinquentenário CTN reconhece, e bem, serem inalteráveis quando servem para demarcar competências tributárias. O Direito Tributário, como direito de sobreposição que é, exige do aplicador o conhecimento de outros ramos do Direito e esse desejo de conhecimento era uma das forças motrizes do professor.

Anotei em minha intervenção naquele encontro que, infelizmente, cada vez mais se dá menos valor ao conhecimento dos outros ramos do Direito. Abstendo-se de discutir os conceitos jurídicos formais, as administrações bastam-se em acusar os negócios jurídicos de simulados, imbuídos de propósito exclusivamente fiscal e, hélas, surgem brutais pretensões de arrecadação. Vivemos no Brasil atual um ambiente dominado pela mais profunda insegurança jurídica. Ironicamente, há previsibilidade da ação estatal. É previsível que o contribuinte será sempre prejudicado pelo Estado.

Insegurança jurídica essa que não se limita ao plano doméstico, diga-se de passagem. A guerra fiscal tão criticada no plano interno — mas isso é outra história, que, aliás, gerou intenso debate no encontro de Lisboa — já se iniciou no plano internacional. Estados soberanos, abandonando elementos formais da previsão legal, avançam sobre pessoas, negócios ou operações feitas em outros Estados para pretender também assegurar para si a tributação de toda ou parte da riqueza produzida.

Essa foi uma das questões mais profundamente discutidas no segundo dia de eventos em Portugal. Com efeito, na sequência do referido I Encontro Tributário Brasil-Portugal, realizou-se um seminário sobre o atualíssimo tema “Tax Morality and Legal Certainty in 21st Century” por ocasião do encontro do Comitê Científico Permanente (PSC), preparatório do Congresso da IFA do Rio de Janeiro, a ser realizado entre os dias 27 de agosto e 1º de setembro de 2017, em que o tema será amplamente discutido[1].

A questão do que vem a ser uma “justa” repartição de receitas entre as nações deve levar em conta inúmeros fatores, mas, sem sombra de dúvidas, deve necessariamente considerar, em primeiro lugar, que as nações são heterogêneas, cada Estado soberano tem seu perfil, suas peculiaridades, suas aptidões, e tratar igualmente desiguais conduz necessariamente a injustiças. Não se pode esperar que o mesmo perfil de negócios em países industrializados como Estados Unidos, Alemanha e China se repita em países que são tradicionalmente centros de holdings e tradings como Holanda, Luxemburgo e Suíça, ou centros de capital tecnológico como a Irlanda. Também não se podem comparar os países exportadores de commodities como Brasil, Rússia e Austrália com as economias do leste europeu, como a Hungria, Polônia e República Tcheca. Também não se pode esquecer que no mundo desmaterializado da revolução digital o ambiente físico perdeu a relevância e que exigir de sociedades substância com base em conceitos arcaicos é negar a realidade em nome de uma quimera.

O Direito Tributário Internacional pós-Beps tornou-se um Direito que se baseia em atos normativos infralegais editados pelas administrações tributárias que impõem cada vez mais aos contribuintes o preenchimento de relatórios recheados de informações patrimoniais e contábeis. Em nome da transparência e da eficiência, a burocracia estatal faz pesar sobre os ombros dos contribuintes o ônus de informar sem saberem ao certo as consequências da revelação dessas informações.

O mais recente relatório que surgiu no Brasil foi a Declaração País a País (DPP), instituída pela Instrução Normativa do Secretário da Receita Federal do Brasil 1.681, de 28 de dezembro de 2016 (IN 1.681/2016), que corresponde ao Country-by-country Report (CbC), preconizado na Ação 13 do Plano Beps.

O envio da DPP é obrigatório para as entidades residentes fiscais no Brasil que sejam controladoras finais de um grupo multinacional, assim entendidas as entidades que detenham diretamente, ou através de outras controladas, direitos de sócio que lhes assegurem, de modo permanente, preponderância nas deliberações sociais e o poder de eleger a maioria dos administradores (artigo 2º, II).

Por sua vez, grupo multinacional, nos termos do inciso I do artigo 2º, “refere-se a 2 (duas) ou mais entidades relacionadas por meio de controle direto ou indireto que possuam residência para fins tributários em jurisdições diferentes ou a 1 (uma) entidade que seja residente para fins tributários em uma jurisdição e esteja sujeita à tributação em outra jurisdição em relação às atividades econômicas desempenhadas por meio de um estabelecimento permanente”.

Nos termos do artigo 4º da IN 1.681/2016, a DPP é obrigatória para as entidades integrantes residentes no Brasil cuja receita consolidada total do grupo multinacional no ano fiscal anterior ao ano fiscal de declaração, conforme refletido nas demonstrações financeiras consolidadas do controlador final, seja superior a (i) R$ 2,26 bilhões, se o controlador final for residente no Brasil para fins tributários; ou (ii) 750 milhões de euros, ou o equivalente convertido pela cotação de 31 de janeiro de 2015 para a moeda local da jurisdição de residência para fins tributários do controlador final.

Nos termos do parágrafo 1º do artigo 3º da IN 1.681/2016, uma entidade residente fiscal no Brasil integrante de um grupo multinacional poderá ser obrigada a apresentar a DPP, mesmo não sendo controladora final, se ocorrer uma das seguintes situações: (i) o controlador final do grupo não esteja obrigado a apresentar DPP pela jurisdição de seu país; (ii) a jurisdição de residência para fins tributários do controlador final tenha firmado acordo internacional com o Brasil, mas não tenha acordo de autoridades competentes com o país até o prazo final de entrega da Declaração País a País; ou (iii) tenha ocorrido falha sistêmica da jurisdição de residência para fins tributários do controlador final do grupo multinacional que tenha sido notificada pela RFB à entidade integrante residente para fins tributários no Brasil.

No que concerne ao conteúdo, o artigo 9º da IN em questão estabelece que a DPP deverá conter:

“I – informações agregadas por jurisdição na qual o grupo multinacional opera relativas:

a) aos montantes de receitas total e das obtidas de partes relacionadas e não relacionadas;

b) ao lucro ou prejuízo antes do imposto sobre a renda;

c) ao imposto sobre a renda pago;

d) ao imposto sobre a renda devido;

e) ao capital social;

f) aos lucros acumulados;

g) ao número de empregados, trabalhadores e demais colaboradores; e

h) aos ativos tangíveis diversos de caixa e equivalentes de caixa;

II – identificação de cada entidade integrante do grupo multinacional, mediante a indicação:

a) da sua jurisdição de residência para fins tributários e, quando diferente desta, da jurisdição sob cujas leis a entidade integrante está estabelecida; e

b) da natureza de suas principais atividades econômicas; e

III – informações em texto livre, para prestação de esclarecimentos adicionais, a critério do grupo multinacional”.

A DPP será uma importante ferramenta para os Fiscos conhecerem como estão alocadas as receitas dos grupos multinacionais. Resta saber o que farão com essas informações. Serão utilizadas para justificar suas pretensões de incremento de arrecadação? O que determinará o direito de um determinado estado a tributar receitas auferidas pelas empresas multinacionais em outro Estado? Poderá certo Estado ignorar a existência jurídica de uma holding, por exemplo, alegando que a entidade carece de substância, porque tem poucos ou nenhum empregados, por exemplo, e querer tributar seus lucros no país onde a atividade industrial se exerce? Ou seria possível acusar falta de substância porque certos serviços intergrupo como jurídico e contabilidade são desempenhados por funcionários alocados em empresas em jurisdição de baixa tributação?

Acresce que ainda não está muito claro em que circunstâncias as entidades brasileiras integradas em grupos multinacionais, ainda que não sejam controladoras, deverão preencher a DPP no Brasil, já que a regulamentação, como se leu acima, cria certos condicionalismos que não dependem de uma ação do particular, antes se prendem à atuação dos estados soberanos, notadamente a celebração de acordos multilaterais de intercâmbio de informação e/ou a existência de falha sistêmica em outras jurisdições.

Ou seja, muitas questões ainda serão debatidas em relação à DPP e sua obrigatoriedade para os contribuintes brasileiros integrantes de grupos multinacionais, bem como sobre suas consequências para esses mesmos contribuintes e para o Brasil vis à vis terceiros estados.

***

Esse é o mundo pós-Beps, o mundo internacional globalizado dotado de uma nova dinâmica que, como tem reiteradamente anotado o colega professor Heleno Torres, é irreversível e que impõe, por isso mesmo, aos operadores do Direito Tributário um trabalho intenso de interlocução internacional. Esse novo mundo será amplamente debatido aqui no Brasil, no Rio de Janeiro, em agosto de 2017, por ocasião do 71º Congresso da International Fiscal Association (IFA). Estaremos lá e espero que aqueles que militam na área também possam vir ao Rio. Mais informações no site www.ifa2017rio.com.br.


[1] Sobre a temática da “ética fiscal”, muito oportuna a coluna de Gustavo Brigagão da semana passada.

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