Tribuna da Defensoria

Defensoria deve rever cobrança de honorários de quem pode pagar advogado 

Autor

  • Bruno de Almeida Passadore

    é doutorando em Teoria do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Processual pela mesma instituição defensor público estadual em Curitiba e diretor da Escola da Defensoria Pública do Estado do Paraná.

14 de fevereiro de 2017, 10h43

No presente estudo, nos propomos a estudar a questão da condenação em honorários em prol da Defensoria Pública em caso de patrocínio de defesa criminal em situações nas quais o defendido reúna condições para arcar com os custos de um profissional particular. Esta imposição pode ser vista, por exemplo, no artigo 23 da Deliberação 19 de 2014 do Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado do Paraná[1], do artigo 4º da Deliberação 89 de 2008 da Conselho Superior da Defensoria Pública do Estado de São Paulo[2], bem como no artigo 7º, da Resolução 85 do Conselho Superior da Defensoria Pública da União[3].

Tais enunciados normativos, em nosso entender, passam por ver a atuação do membro da Defensoria Pública sob o exclusivo aspecto da substituição do advogado particular em favor do economicamente hipossuficiente. Assim, considerando as ondas renovatórias de Cappelletti e Garth, trata-se de relacionar a atuação da Defensoria Pública apenas à primeira delas.

Esta, por sua vez, consiste, exatamente, em combater a máxima de Ovídio segundo a qualCura Pauperibus Clausula Est” (“O tribunal está fechado para os pobres”). Assim, teríamos a imposição direcionada à Administração Pública de tomar medidas efetivas para garantir o livre acesso do cidadão aos tribunais e que, além de uma posição passiva de não efetuar cobrança de valores para que o indivíduo pobre possa acessar as cortes de Justiça – a ideia de gratuidade de custas e demais encargos processuais -, perpassaria pelo custeio estatal de profissionais do direito àqueles incapazes de suportar os honorários de um advogado particular.

Assim, se, de um lado, consideremos que a atuação da Defensoria Pública visa apenas garantir um advogado àquele incapaz de suportar seus honorários, e, de outro, a ideia de que ninguém poderá ser processado criminalmente sem uma defesa técnica — conforme artigo 261 do CPP[4], caímos em um dilema. A Defensoria Pública ao defender o acusado criminal rico estaria agindo ao arrepio de suas funções institucionais, caindo-se em atuação “atípica”, logo, necessário se faz, ao menos, contornar esta situação impondo a cobrança de honorários. Não mais equivocado, porém.

Inicialmente, inegável que a atuação defensorial na seara criminal se relacionava a tão-só “patrocinar a defesa criminal” dos acusados em geral (conforme redação revogada pela LC 132/09 do artigo 4, IV da Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública – LONDP[5]). Todavia, conforme bem reconhece Rodrigo Azambuja Martins com as alterações da LONDP de 2009, a Defensoria Pública, especificamente na seara criminal, deixa de se relacionar à ideia de “advogado da parte” para se tornar verdadeira “curadora da liberdade”, tendo em vista o reconhecimento de que a tutela deste direito passa a ser tão relevante ao sistema, quanto o interesse público de reestabelecer a ordem jurídica através da condenação dos culpados[6].

Assim, passa-se a admitir, inclusive, a atuação da instituição não apenas nas hipóteses em que o acusado criminal não tenha advogado constituído, mas em todas as situações, no intuito de reequilibrar a relação Estado-acusador vs. acusado[7]. Igualmente, necessária se faz a atuação do órgão na realização e requerimentos de diligências durante a fase de inquérito policial não com o objetivo de demonstrar materialidade do crime e indícios de culpa do indiciado, como tradicionalmente ocorre, mas refutar tais aspectos[8].

Nesta mesma linha, a Defensoria Pública passou a ser considerada órgão da execução penal[9], sempre no intuito de garantir o pleno exercício dos direitos dos reclusos, sejam estes de caráter individual ou coletivo, independentemente da situação econômica do apenado[10].

Indo além, apontamos que a Convenção Americana de Direitos Humanos, ao contrário de seu similar europeu, não condiciona o dever de o estado garantir defesa técnica apenas ao acusado financeiramente incapaz, sendo, portanto, absolutamente desnecessário no âmbito de aplicação do Pacto de San José que haja prova da situação econômica do réu para atuação da Defensoria Pública ou de órgão similar[11][12].

Há de se concluir, portanto, que não se mostra adequada as disposições acima apontadas. Assim, em nosso entender, impor o pagamento de honorários ao acusado criminal economicamente capaz usuário dos serviços da Defensoria Pública, antes de significar uma forma de “fortalecimento” institucional decorrente da verba que ingressa na instituição, representa, em realidade, um verdadeiro menoscabo do papel da instituição e, em tal medida, merece ser revistos pelos órgãos superiores da Defensoria Pública do país.


[1] “Artigo 23. O exercício da curadoria especial processual, da defensa criminal, a atuação nos feitos relacionados à execução da pena e a atuação nos processos socioeducativos relacionados às Varas da Infância e Juventude não dependem de considerações prévias sobre a situação econômico-financeira do interessado. Parágrafo Único – A atuação nos casos acima de quem não é hipossuficiente não implica a gratuidade constitucionalmente deferida apenas aos necessitados, devendo ser promovida a oportuna cobrança de honorários advocatícios a serem revertidos ao Fundo de Aparelhamento da Defensoria Pública do Estado do Paraná” – grifos adicionados.
[2]Artigo 4º. O exercício da defesa criminal não depende de considerações prévias sobre a situação econômico-financeira do interessado. Parágrafo único. O exercício da defesa criminal de quem não é hipossuficiente não implica a gratuidade constitucionalmente deferida apenas aos necessitados, devendo ser promovida a oportuna cobrança de honorários advocatícios, nos termos do artigo 3º, inciso II da Lei Estadual nº 12.793 de 04 de janeiro de 2008” – grifos adicionados.
[3]Artigo 7º Nos processos criminais, se restar constatado que a pessoa natural ou jurídica não é necessitada econômica, deverá o Defensor Público Federal provocar o juízo criminal para o arbitramento de honorários, os quais passam a constituir fonte de receita do Fundo de Aparelhamento e Capacitação Profissional da Defensoria Pública da União” – grifos adicionados.
[4]Artigo 261.  Nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor”.
[5]Artigo 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: […] IV – patrocinar defesa em ação penal; […]”. Este inciso, como dito, foi alterado pela LC 132/2009.
[6] Uma História da Defensoria Pública. In Os Novos Atores da Justiça Penal, coord. Maria João Antunes et. alii., Coimbra: Ed. Almedina, 2016, p. 250 e 259.
[7] Sobre esta questão, apontamos que já defendemos esta posição em outra oportunidade e partir do posicionamento de Luigi FERRAJOLI, momento em que nos posicionamos pela necessidade do órgão defensorial atuar em processos criminais não apenas quando for o caso de suprir a ausência de advogado privado, mas intervir sempre no processo penal, ainda que o réu conte com patrono particular, funcionando como “órgão complementar” à defesa privada, e tendo por objetivo trazer maior isonomia e proteção a valores constitucionalmente protegidos (PASSADORE, Bruno de Almeida, A Defensoria Pública enquanto Custus Vulnerabilis. in Revista Eletrônica “Empório do Direito” de 26/03/2016, disponível em http://emporiododireito.com.br/defensoria-publica-custus-vulnerabilis/, acesso em 17/10/2016). Em sentido próximo: MAIA, Maurílio Casas, A Intervenção de Terceiro da Defensoria Pública nas Ações Possessórias Multitudinárias do NCPC. In Novo CPC: doutrina selecionada, coord. Fredie Didier Jr., Salvador: Ed. Juspodivm, 2016, vol. I – parte geral, p. 1278.
[8] MARTINS, Rodrigo Azambuja, Uma História da Defensoria Pública. In Os Novos Atores da Justiça Penal, coord. Maria João Antunes et. alii., Coimbra: Ed. Almedina, 2016, p. 258 e seguintes.
[9] Artigo 61, VIII, da Lei de Execuções Penais, com redação dada pela L. 12.313/2010.
[10] Artigo 4º, VIII da LONDP, com redação dada pela LC 132/09.
[11] Veja-se que a questão da assistência jurídica sempre foi um tema de grande relevância no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), algo que já se percebia na Carta de Bogotá – instrumento internacional criador da OEA -, e que previa em seu artigo 45, i, o dever de seus Estados-membro tomar medidas para que toda pessoa tivesse garantida assistência legal para garantir seus direitos. A corroborar a interpretação, cumpre também registrar que a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos fez aprovar a Resolução 2.821/2014 com o fito de recomendar a todos seus estados partes que não contem com uma Defensoria Pública em seus territórios que o façam e àquelas em que a instituição já está presente, deve-se garantir a autonomia e o fortalecimento institucional.
[12] Neste sentido: MARTINS, Rodrigo Azambuja, Uma História da Defensoria Pública. In Os Novos Atores da Justiça Penal, coord. Maria João Antunes et. alii., Coimbra: Ed. Almedina, 2016, p. 250/251.

Autores

  • é mestre em Direito (USP), defensor público auxiliar do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania da Defensoria Pública do Paraná e presidente da comissão de Prerrogativas da Defensoria Pública do Paraná.

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