Opinião

Posição da OAB sobre bônus de eficiência a auditores é ambígua

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14 de fevereiro de 2017, 7h29

Diga-me os fatos e eu te direi o direito. Esse aforismo latino, comum no meio jurídico, é corolário do espírito de imparcialidade que deve presidir a interpretação das leis. A distorção do ideal de justiça começa quando, além de escrutinar os fatos, o intérprete resolve modular o direito em conformidade com os sujeitos envolvidos. 

Há alguns dias, a Comissão de Direito Tributário da Ordem dos Advogados do Brasil divulgou parecer no qual propugna pela inconstitucionalidade da gratificação de eficiência dos auditores fiscais da Receita Federal, sob o argumento de que tal verba afronta algumas das diretrizes do ordenamento jurídico nacional: a impossibilidade da destinação de receita tributária para fins privados, o princípio da não afetação de impostos a gastos específicos, a vedação de vinculação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público e a primazia do princípio da impessoalidade da Administração.

Até aí, nada surpreendente se, em ato quase simultâneo, o mesmo comitê não tivesse saído em defesa da gratificação atécnica e genericamente denominada “honorários de sucumbência”, atribuída a advogados da União — categoria, por disposição estatutária, obrigatoriamente vinculada à entidade.

Tais "honorários de sucumbência", malgrado a denominação, que remete a um instituto típico de Direito Privado, constituem um fundo que alberga bem mais do que a simples verba devida pela parte perdedora aos patronos da parte vencedora em litígios judiciais: inclui também os encargos legais acrescidos aos créditos das autarquias, das fundações públicas e da União – decorrentes na quase totalidade de tributos – tão logo sejam inscritos em Dívida Ativa, ainda que esses créditos não venham a ser objeto de execução fiscal.

Pela disciplina do Decreto-Lei 1.645/1978, os encargos legais – cujo montante é de 20% sobre a totalidade do crédito inscrito – substituem a condenação do devedor em honorários sucumbenciais, na cobrança executiva da Dívida Ativa da União, ou seja, já na fase litigiosa do processo. Não na fase administrativa. Assim, é incontroverso que os encargos cobrados (e pagos) antes do ajuizamento da dívida possuem natureza mais assemelhada à penalidade moratória do que propriamente de ônus de sucumbência.

Ademais, mesmo para aqueles créditos sob execução judicial, a verba sucumbencial possui traços distintivos claramente delineados: de percentual variável (não podendo ultrapassar 20%), a fixação do seu quantum compete exclusivamente ao Judiciário, ao cabo do processo litigioso, de acordo com os critérios elencados no art. 85 do Novo Código de Processo Civil. Encargos legais, a seu turno, possuem alíquota estipulada a priori e à revelia de ato judicial, não se subordinando à disciplina do codex.

Para testar a natureza sucumbencial e privada da verba, bem como sua compatibilidade com a lei processual civil, uma única pergunta é suficiente: pode o particular que litiga contra a União estabelecer previamente o percentual que seu patrono perceberá a título de sucumbência, em caso de êxito? A resposta negativa nos dá um indício de que, a exemplo das multas moratórias, os encargos legais possuem natureza orçamentária de receita pública. Aliás, isso está explicitamente reconhecido no Decreto-Lei 1.025/1969.

Tudo isto pesado e sopesado, como então condenar o bônus de eficiência da Receita Federal com uma mão e, com a outra, abençoar a destinação de encargos legais para fins de remuneração? Se há, no primeiro caso, destinação de receita tributária para fins privados, afetação de impostos a gastos pré-determinados e vinculação da remuneração de servidores públicos, todas condutas vedadas pela Constituição, o mesmo não se aplica ao segundo? A crítica de um, aliada à defesa de outro, é o que a doutrina jurídica costuma chamar de venire contra factum proprium – situação na qual o agente, diante de fatos semelhantes, comporta-se de maneira não coerente.

Também não se pode compreender o fato de a citada comissão da OAB divisar o risco de auditores se conduzirem parcialmente no julgamento de um lançamento tributário, atentando assim contra a moralidade administrativa, e, apesar disso, não considerar a hipótese, igualmente verossímil, de procuradores públicos deliberadamente descurarem da cobrança administrativa que precede a execução, com o intuito de garantir o ajuizamento do crédito e assim um volume dobrado de encargos legais. Ou apenas um dos lados estaria propenso a ofender os primados da moralidade e da imparcialidade?

Os fermiers généraux, contratadores de impostos à época do absolutismo francês, que detinham os direitos de cobrar as exações em nome do Estado e se apropriavam de parte substancial da arrecadação, possuíam uma competência ampla: eram a um só tempo coletores e executores da dívida fiscal. Acumulavam em si funções que hoje se encontram segregadas. Para fazer valer a execução das dívidas, podiam buscar e expropriar os ativos dos devedores da Coroa. Associá-los exclusivamente à autuação e cobrança do crédito tributário, desprezando a sua competência executiva, é contar a história pela metade.

No dispositivo do Estatuto da OAB em que são listadas as finalidades da instituição, defender a Constituição e a ordem jurídica vem antes de promover, com exclusividade, a representação e a defesa dos advogados. Tal ordem não é aleatória nem desprovida de causalidade. Ela implica que a agenda corporativa da entidade não pode sobrepujar o seu compromisso com as diretrizes constitucionais e o estado de Direito.

Ao colocar em duas balanças diferentes a gratificação de eficiência da Receita Federal e os honorários sobre encargos legais da Advocacia Geral da União, ambos provenientes de recursos de natureza indiscutivelmente pública, a Comissão de Direito Tributário da OAB inverte o estatuto da entidade, deixando transparecer em sua conduta a mesma parcialidade que agora procura combater.

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