Interesse Público

Parceria com poder público, mesmo sem custo, requer cuidado e transparência

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9 de fevereiro de 2017, 9h42

Spacca
Há mais de dez anos, não sei precisar a data, eclodia um dos muitos escândalos ligados aos programas de transferências de renda do Estado. Naquela oportunidade, uma auditoria demonstrara a existência de inconsistências que permitiam a uma mesma pessoa receber mais de um benefício, afrontando a lógica do programa e também a ética que se espera de um cidadão de bem.

Um amigo, grande empresário, me contou de sua revolta com a situação e de sua disposição em contribuir. Contou-me que um dos muitos serviços que sua empresa de tecnologia prestava era justamente identificar, de forma rápida e segura, essas inconsistências ligadas à existência de muitos cadastros de uma só pessoa. Disse-me que queria prestar esse serviço gratuitamente para o governo, disponibilizando as ferramentas de sua empresa. A disposição foi desaparecendo na medida em que eu lhe explicava os meandros da licitação, as diferenças entre gestão privada e gestão pública e, especificamente, a dificuldade em implementar sua boa ação para o interesse público.

Esse fato me veio à mente ao tomar conhecimento das “parcerias a custo zero” implementadas pelo prefeito de São Paulo no primeiro mês de sua gestão[1]. Recuperação de monumentos, limpeza de espaços públicos e manutenção de equipamentos estão sendo feitos, segundo as notícias, por meio de empresas que não exigem qualquer contrapartida além de um agradecimento público. A reportagem citada expressa preocupação com os eventuais conflitos de interesses — públicos e privados — latentes nesses processos.

Em um cenário de crise econômica e excesso de demandas, a busca por modelos jurídicos advindos do setor privado é sempre uma alternativa buscada para reforçar os combalidos cofres públicos e atender às questões urgentes. Não custa destacar que não se trata de parcerias público-privadas (as conhecidas PPPs) regidas pela Lei 11.079/2004.

É preciso relembrar que as relações jurídicas regidas pelo direito público sofrem efeitos jurídicos da incidência de princípios distintos. Nesse particular, os princípios da isonomia, interesse público, moralidade e eficiência demonstram força ao delinearem as “feições” da relação jurídica. Esses princípios espraiam seus efeitos, em graus variados, nos diversos institutos jurídicos manejados pelo Estado-Administração.

Na clássica lição de Cirne Lima, relação de Administração Pública é aquela que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente. Arremata o mestre, em conhecida e repetida citação: “Na Administração, o dever e a finalidade são predominantes; no domínio, a vontade”. O regime jurídico dos bens públicos não admite autonomia de vontade, predominante nas relações jurídicas privadas. Por essa razão, é importante asseverar que os bens do Estado devem servir à proteção e promoção de diversos fins públicos, socialmente relevantes. Para além da mera titularidade, avulta a importância da funcionalização da propriedade, como bem explica Floriano de Azevedo Marques Neto[2]. Ao tratar de questão específica, cessão onerosa do direito à denominação de bens públicos (namins rights), anota Marçal Justen Filho:

“O Estado necessita de recursos vultosos para assegurar a pro­mo­ção dos direitos fundamentais. Isso conduz à exacerbação da tributação, à ampliação dos serviços públicos e à utilização de todas as oportuni­ dades econômicas para aumentar a arrecadação estatal.Nesse contexto, torna-se evidente a necessidade de o Estado dar aproveitamento mais adequado para um conjunto de bens públicos que permanecem ociosos. Não se trata de promover a pura e simples alie­nação dos bens públicos não utilizados formalmente para satisfação de necessidades coletivas. O que se reconhece é o dever de o Estado buscar soluções racionais para o seu patrimônio, extraindo dele as receitas possíveis. Essa concepção não equivale a desnaturar o patrimônio público, mas a aproveitar oportunidades propiciadas pela ampliação da comple­xidade do sistema econômico”[3].

A exploração econômica dos bens públicos, desta forma, passa a se constituir um imperativo decorrente da identificação e atendimento de suas finalidades públicas. A busca de parceiros para causas socialmente relevante é prática disseminada no ambiente privado. A filantropia, por meio da destinação de bens e recursos particulares para entidades sem finalidades econômicas, beneficia instituições como hospitais, museus e universidades que, geralmente, identificam publicamente seus benfeitores como forma de agradecimento. No que nos interessa mais diretamente, a doação de bens e serviços voltados à preservação e melhora do espaço público deve obedecer às regras e princípios do direito público.

A doação sem qualquer tipo de encargo ao poder público é livre.  Desta forma, quando não há qualquer tipo de contraprestação que se reverta em vantagem (sobretudo econômica) para o doador ou terceiro não há necessidade de qualquer tipo de procedimento seletivo em razão da inviabilidade de competição.

O mesmo não ocorre quando se trata de doações com cláusulas ou encargos. De acordo com o artigo 17, parágrafo 4º da Lei 8.666/1993, “a doação com encargo será licitada e de seu instrumento constarão, obrigatoriamente os encargos, o prazo de seu cumprimento e cláusula de reversão, sob pena de nulidade do ato, sendo dispensada a licitação no caso de interesse público devidamente justificado”. A regra se destina primeiramente às situações nas quais a Administração é doadora, mas devem ser aplicadas também quando o particular doa algo para o Estado. Quando há algum tipo de encargo, a Administração deve buscar o menor encargo possível como contrapartida para a doação. Trata-se de decorrência direta do princípio da isonomia: em havendo alguma contrapartida, todos os eventuais interessados têm o direito de concorrer a ela.

Essa a razão de não se admitir, por exemplo, doação mediante contrapartida em publicidade no bem ou espaço público. Se há alguma vantagem econômica a ser auferida como contrapartida, é necessário licitar. Diversas empresas podem ter interesse em expor suas marcas em espaços públicos, por exemplo, em troca da manutenção desses mesmos espaços ou doação de serviços para tanto. O formalismo em defesa da finalidade pública não pode chegar ao ponto de impedir, por exemplo, a entrega de uma placa de agradecimento ou mesmo a exposição de lista com os nomes dos benfeitores. Isso ocorre não só pelo fato de que a contrapartida que deve ser objeto de competição é sobretudo economicamente mensurável como também pela ausência de restrição a outros doadores interessados.

Admitindo-se a possibilidade de que o Estado receba doações, inclusive com encargo, é importante que se crie um procedimento transparente, finalisticamente motivado e isonômico. É possível imaginar diversas formas (chamamento público, por exemplo) de permitir e incentivar as doações de particulares, respeitando as normas aplicáveis. É essencial que sejam investigados com cautela os bens e espaços públicos que possam ser atingidos, suas vocações essencial e acessória e como o particular pode contribuir. O estabelecimento, por norma, de um programa para o estímulo de parcerias, com regras claras e adequadas, é uma possibilidade que não pode ser desperdiçada no atual cenário.


[1]http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/27/politica/1485535431_463009.html?id_externo_rsoc=TW_CC
[2] MARQUES NETO, Floriano de Azevedo. Bens públicos: função social e exploração econômica: o regime jurídico das utilidades públicas. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
[3] JUSTEN FILHO, Marçal. A exploração econômica de bens públicos: cessão do direito à denominação. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 8, n. 30, abr./jun. 2010. A respeito do tema, consulte-se também a dissertação de mestrado de Ana Lúcia Ikenaga, intitulada “A atribuição de nome como modo de exploração de bens públicos”(USP, 2012)

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