Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo japonês (parte 54)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

8 de fevereiro de 2017, 17h06

Spacca
1. A ilha do sol nascente
Quando Portugal iniciou seu século de ouro em meados do século XV, com as grandes navegações, a Índia e o extremo Oriente foram atingidos por uma tempestade. Nada mais foi igual para milhões de habitantes daqueles territórios longínquos e que negociavam com o Ocidente por intermédios dos chineses e dos otomanos. O acesso direto à Rota das Índias trouxe para os portugueses uma riqueza imensa, que, como Luís Vaz de Camões advertira n’Os Lusíadas, pela boca do velho do Restelo, traria a decadência e a corrupção, o que realmente ocorreu no final do século XVI e início do século XVII. Na sequência dos portugueses e de seus intrépidos navegadores, como Vasco da Gama, Fernão de Magalhães e Bartolomeu Dias, os espanhóis e os holandeses também se interessaram pela conquista do Oriente, disputando com os pioneiros lusitanos aqueles territórios fantásticos.

Para além da Índia, a grande conquista dos portugueses, que viria a ser dividida ou perdida para holandeses, franceses e ingleses nos séculos seguintes, havia arquipélagos de maior ou menor extensão. Ceilão (hoje Sri Lanka), Formosa, Java (depois a sede da Índias Orientais Holandesas), Cingapura e outras ilhas tornaram-se objeto de conquista, navegação e comércio naqueles anos de “descoberta” da Ásia. Um desses arquipélagos, o mais extremo de todos, é denominado de Nippon-koku, ou terra do sol nascente.

Os primeiros europeus a aportarem nas ilhas de Nippon-koku foram os portugueses, com seus marujos e padres. Não é sem causa que, ao menos na maior parte dos idiomas ocidentais, a palavra designativa desse arquipélago é derivada da transliteração feita por jesuítas portugueses, Japão. O ano de 1543 foi um marco na história japonesa, pois foi quando se deu o primeiro contato com europeus, dois náufragos portugueses na costa de Tanegashima, no sul do país. Um senhor feudal adquiriu dois mosquetões trazidos pelos marinheiros e conseguiu reproduzi-los em oficinas de armeiros locais. Em um prenúncio muito curioso do que ocorreria na segunda metade do século XX com os produtos eletrônicos ocidentais no Japão, essa apropriação de tecnologia alterou, em 50 anos, o curso da história japonesa. As armas de fogo alteraram o equilíbrio de forças e o modo de fazer a guerra nas ilhas[1].

Além do fogo, os ocidentais, em particular uma ordem missionária multinacional fundada por um nobre e militar espanhol (Ignacio de Loyola), trouxeram a cruz para o Japão do século XVI. Os soldados de Cristo, como se tornaram conhecidos em todo o mundo os membros da Companhia de Jesus, discípulos de Ignacio de Loyola, posteriormente canonizado como Santo Inácio de Loiola, engajaram-se em uma campanha de conversão dos japoneses. Os métodos empregados na América luso-espanhola foram reproduzidos com sucesso no Japão: aprendizado da língua local, publicação de léxicos e dicionários, foco no ensino de crianças, uso da música e da pintura para evangelizar, aproximação das elites, disciplina e coragem ante as ameaças de perseguição. Ao lado dos jesuítas estavam os comerciantes, que desenvolveram um fluxo lucrativo de trocas com os japoneses, mas sem necessidade de entrepostos militares como se deu nas outras ilhas da Ásia.

Em 1549, Francisco Xavier, um dos fundadores da Companhia de Jesus, aristocrata navarro que se tornou um soldado de Cristo, chegou ao Japão. Ele aprendeu o idioma local, adotou os costumes alimentares, a etiqueta de saudação e de reverência japoneses e se tornou uma pessoa respeitada nas ilhas, tendo liderado a fundação das primeiras igrejas no país. Seu trabalho foi tão frutífero quanto perigoso para os propósitos católicos. A rapidez da propagação dos Evangelhos, que conquistou os pobres e parte da pequena nobreza, incomodou a alta aristocracia e deu início à perseguição e ao martírio de milhares de cristãos japoneses e missionários europeus.

Diversas razões, que não cabem nesta coluna, podem explicar o porquê de o Japão ter escapado ao processo de colonização e imperialismo europeu na Ásia nos séculos XVI-XIX. Pouca atratividade de seus recursos naturais, baixa densidade do comércio (apesar da grande população) e a existência de áreas vizinhas mais interessantes (como a China, a Índia e as demais ilhas da região dos oceanos Índico e Pacífico) aos europeus, eis algumas explicações plausíveis. Podem-se somar a essas, porém, a existência de um governo organizado desde o século VIII, uma estrutura jurídica relativamente sólida, a capacidade militar e a reação violenta aos missionários cristãos. O Japão, antes de ser invadido ou colonizado, fechou-se por três séculos em torno de seus valores religiosos e da ética de sua sociedade feudal e guerreira. Os rarefeitos contatos com a Europa deram-se por intermédio de navegadores e comerciantes holandeses, que mantiveram um enclave sino-holandês perto de Nagasaki[2].

No século XVII, o Japão atingiu o ápice do processo de feudalização e de ruptura das antigas hierarquias e de extinção dos resquícios do poder central. Um senhor da guerra, Tokugawa Ieyasu, conseguiu fundar o “Estado Tokugawa”, que viria a ser, por 250 anos, o núcleo do poder no Japão, após derrotar outros clãs e terratenentes. O xogunato Tokugawa estabilizou o Japão, mas não rompeu com o feudalismo, embora tenha fechado o país às influências estrangeiras até a Revolução Industrial[3].

2. A ocidentalização forçada 
No século XIX, a estabilidade e a paralisia da era Tokugawa faziam-se sentir por rebeliões populares, pelo enfraquecimento do aparato militar, marcado pela obsolescência de armas e de táticas, e pela debilitação dos laços entre os clãs. Um elemento externo veio a desencadear a ruína da Casa Tokugawa: o imperialismo ocidental, simbolizado pela abertura forçada dos portos em razão da chegada dos navios do Comodoro Matthew Perry, dos Estados Unidos, em 1853. A diplomacia dos canhoneiros americanos forçou o governo Tokugawa a celebrar um tratado de amizade nipo-americano, sem o placet do imperador (que governava nominalmente o país)[4].

O impacto da abertura comercial sobre a economia, especialmente sobre camponeses e comerciantes, foi imenso. A fragilidade do xogunato e de suas forças militares anacrônicas ante as forças ocidentais evidenciava-se a cada nova concessão diplomática. A ratio do feudalismo desaparecia rapidamente, na medida em que não mais assegurava previsibilidade econômica e segurança militar. O imperador assumiu acentuadamente um papel místico sobre o povo e liderou um processo de contestação ao xogunato e à Casa Tokugawa, que culminou com sua derrubada e a instauração de um estado unitário, sob a liderança do imperador Meiji, que deu nome a uma nova era[5].

Mutsuhito, o imperador Meiji (1852-1912), assumiu o trono com 14 anos, em 1867, tendo liderado a chamada Restauração Meiji, a guerra civil que pôs fim ao xogunato Tokugawa e iniciou o processo de ocidentalização do país. Nesse processo, deu-se a mudança do vestuário, da estrutura das Forças Armadas, da educação superior e a adoção do sistema romano-germânico no Direito Constitucional e no Direito Civil. À semelhança do que fizera Pedro, o Grande, no Império Russo, o soberano Meiji estimulou a vinda de engenheiros, professores de Direito e Medicina, militares e economistas ocidentais para modernizar as instituições japonesas. Em um tênue equilíbrio, o novo regime procurou manter a essência da cultura nacional, mas copiando o que havia de mais útil e avançado no Ocidente.

Como consequência de tantas mudanças, houve o aniquilamento de parte da aristocracia feudal, que se opôs em guerras civis à Restauração Meiji, ao tempo em que o Japão converteu-se rapidamente em uma potência militar. Duas expressivas vitórias na Guerra Sino-Japonesa de 1894-1895 e na Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) demonstram os resultados exitosos desse processo de refundação nacional. Contra os chineses, o Japão conseguiu impor-se e tornar-se um parceiro das nações ocidentais na exploração imperialista da China. A vitória contra a Rússia, que perdeu territórios na Coreia e foi derrotada em Porto Arthur, foi a mais avassaladora: era a primeira vez na história moderna que uma nação asiática derrotava uma potência ocidental. Sob todos os aspectos, a Guerra Russo-Japonesa foi um divisor de águas e é considerada a causa remota da Revolução Russa de 1917 e da queda da dinastia Romanov.

Outro símbolo dessa mudança está na velocidade com que o Japão adotou a cultura ocidental nas Forças Armadas, que passaram a se organizar nos moldes prussianos e franceses, e nas universidades, que importaram professores de todo o mundo. No Direito, “foram contratados 32 juristas de diferentes nacionalidades. Havia franceses, alemães, americanos, italianos e outros. Todos eles deram contribuições importantes para o progresso do Direito japonês no início da era Meiji. Sem desmerecer os demais, os mais conhecidos entre os japoneses são o francês Gustave Boissonade e o alemão Hermann Roesler, que influenciaram os governantes a adotar no Direito japonês, o sistema herdado do Direito Romano, ao invés de Direito Anglo Americano”[6].

Na segunda metade do século XIX, foi a Alemanha o principal agente influenciador do Direito japonês. O conhecimento do alemão passou a ser interessante para as elites jurídico-acadêmicas. O governo imperial adotou o “modelo prussiano na Constituição, Códigos Civil e Penal e muitos outros”[7]. Um dos responsáveis por essa relação teuto-japonesa foi Hermann Roesler (1834-1894), que foi contratado como consultor do Ministério Imperial de Negócios Estrangeiros e auxiliou nos trabalhos de “elaboração do Código Comercial promulgada em 1890”. No entanto, “a mais importante de suas contribuições foi a da Constituição Meiji, promulgada em 1889”[8].

3. Apogeu, declínio e reconstrução
Após a vitória contra o Império Russo em 1905, o Japão manteve seu processo de industrialização e de estímulo às Forças Armadas. Nos anos 1920-1930, a crise econômica e a militarização andaram de mãos dadas, em um cenário muito similar ao que se deu no restante do mundo. A doutrinação militar, patriótica e de divinização da autoridade do imperador, iniciada com o objetivo de fundamentar a Restauração Meiji, ganhou autonomia e passou a servir à legitimação de um governo centralizador, autoritário, militarizado e expansionista.

Sob o jovem imperador Hiroito, o Japão completou seus planos de invasão da Coreia e da China. Internamente, havia uma divisão nas Forças Armadas sobre a participação japonesa no esforço militar do Eixo Roma-Berlim, que resultou na Segunda Guerra Mundial. As obras de Adolf Hitler tornaram-se populares no país, especialmente o livro-manifesto Minha Luta, cujos trechos nos quais o ditador alemão tratava com desprezo os japoneses, considerando que os “macacos amarelos” seriam úteis ao esforço militar alemão por perturbar a paz colonial europeia na Ásia, foram suprimidos na edição japonesa.

Antigas lutas de clãs feudais, cujos membros mais ativos se transferiram para as Forças Armadas, refletiam-se no embate interno sobre entrar ou não na Segunda Guerra Mundial. A Marinha Imperial resistiu o quanto pôde, até mesmo com ameaças do Exército, até que uma troca no alto comando fez com que os oponentes à guerra fossem removidos.

O Japão foi destruído pelas forças aliadas na Ásia. O ápice de sua ruína foi o emprego da bomba atômica pelos norte-americanos. Ocupado militarmente, o Japão manteve a monarquia, embora destituída de funções efetivas de poder, graças à preocupação do general Douglas McArthur com a perda de estabilidade interna decorrente do fim do Trono do Crisântemo. Em 1947, entrou em vigor a Constituição japonesa, que permanece intacta, com a supressão das instituições autocráticas, militarizadas e a abolição dos títulos de nobreza. Elaborada pelos norte-americanos, a nova Constituição foi um marco na refundação nacional.

O desenvolvimento industrial japonês no pós-guerra foi assombroso, tendo o país superado economicamente, durante algumas décadas, alguns dos países que o derrotaram na Segunda Guerra Mundial, como a Holanda, a França e o Reino Unido. Nos anos 1980, parecia que o Japão se encaminhava para ser a segunda potência econômica  mundial, o que terminou por não ocorrer. Nos anos 1990, o país iniciou um processo de estagflação e recessão, do qual ainda não se recuperou totalmente.

Apesar de tantas mudanças, antigos valores sociais e morais permanecem no Japão contemporâneo, que revelam um papel do Direito e das instituições jurídicas muito mais tímido do que o encontrado em vários países ocidentais. É esse modelo que começamos a examinar.


[1] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Sistema jurídico japonês. In. HARADA, Kiyoshi (Coord). Intercâmbio Cultural Brasil-Japão. São Paulo: Sociedade Brasileira de Cultura e Assistência Social Bunkyo, 2016.
[2] ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. Tradução de Renato Prelorentzou. São Paulo: Unesp, 2016. p.497.
[3] ANDERSON, Perry. Op. cit. p.481-484.
[4] ANDERSON, Perry. Op. cit. p.502-503.
[5] ANDERSON, Perry. Op. cit. p.504-505.
[6] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Op. cit., loc. cit.
[7] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Op. cit., loc. cit.
[8] NINOMIYA, Masato; NAGAI, Yasuyuki. Op. cit., loc. cit.

Autores

  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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