Limite Penal

Qual é a proposta indecente que torna viável a delação premiada?

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

3 de fevereiro de 2017, 7h00

Spacca
A partir de uma perspectiva estratégica, a pergunta que se faz é a seguinte: em que ponto o investigado/acusado toma a decisão de participar da colaboração/delação premiada? Quais são as condições que criam uma ambiência ideal para que o imputado resolva assumir o ônus e o bônus de colaborar (e também ser punido)? Para compreender a temática, cabe a ilustração do filme Proposta Indecente (Adrian Lyne, 1993), descrita por Raul Marinho:

“No filme, a personagem vivida por Demi Moore é uma mulher jovem e atraente, recém-casada com o personagem representado por Woody. Em decorrência de uma crise financeira, o casal decide tentar a sorte em um cassino em Las Vegas, onde conhecem o personagem interpretado por Redford: um arquimilionário que se encanta com a beleza de Demi. Redford se aproxima de Woody e o convida para um jogo de sinuca em sua suíte. Durante o jogo, o milionário pergunta o que o rapaz faria se ele se propusesse a pagar um milhão de dólares por uma noite com sua esposa. Woody se mostra indignado e ofendido com a proposta, mas Redford diz que a proposta não é senão uma hipótese. Na manhã seguinte, o jovem casal decide aceitar a proposta, e Demi vai até o iate de Redford, onde passa a noite. A mensagem por trás do enredo é o velho ‘todo indivíduo tem seu preço’, que é o que se verifica na prática na grande maioria das vezes”[1].

A metáfora pode nos servir para compreender a tomada de decisão, especialmente no regime da colaboração/delação premiada, justamente para desnudar o momento em que as recompensas encontram o ponto de virada, a saber, a proposta, que era dominada, passa a ser dominante. A tomada de decisão de cooperação com os demais investigados/acusados, ou com o Estado (polícia e/ou Ministério Público), se observada do ponto de vista da maximização de ganhos, ainda que se levando em conta aspectos morais, econômicos, familiares, religiosos, e de reputação, aproxima-se da noção de preço. E existe uma bilateralidade nesse raciocínio, pois acusador e acusado entram numa relação de ônus/bônus, de ponderação na lógica custo-benefício.

Até que ponto vale a pena sustentar o silêncio em face dos benefícios. Abre-se o Mercado da Justiça Negociada, no qual as práticas do blefe, do trunfo, da ameaça e das táticas de convencimento (real, simbólico, midiático etc.) ganham nova dimensão. Daí que a cooperação entre os investigados/acusados se torna tensa e suscetível a deserções/traições inspiradas na maximização de ganhos[2]. Quando o primeiro começa a delatar, surge a corrida pela colaboração premiada, com ofertas crescentes de informações capazes de se comprar e vender no mercado da informação/prova penal. O valor de face das informações flutua conforme o interesse do comprador em apurar/aparelhar uma investigação específica. Esse é um mercado sensível para negociar a informação, sendo que o timing deve ser muito bem avaliado e ponderado na própria estratégia negocial.

Em investigação ou processo de crime com pluralidade de investigados/acusados, se todos ficarem em silêncio, a atividade probatória do Estado (polícia e/ou Ministério Público) será mais custosa e, caso comprovada a culpa, ninguém receberá benefícios (redução da pena pela confissão ou delação). A decisão sobre colaborar depende de acreditar que ninguém irá “abrir a boca” (confessar e/ou delatar). Mas aí entra em cena o fato de que não se tem (nunca) informação suficiente sobre o comportamento dos demais investigados/acusados. Essa é uma variável com alto grau de incerteza. Cria-se ambiente de corte/cessação da comunicação, como é o exemplo das prisões cautelares, medo de interceptações telefônicas e gravações clandestinas, além de propostas sedutoras de redução/exclusão da pena e regime de cumprimento, via colaboração/delação premiada. A questão é saber se todos sustentarão o silêncio ou algum dos investigados/acusados aceitará a proposta em primeiro lugar. A confiança será o fator decisivo na decisão, reeditando o Dilema do Prisioneiro[3].

Consciente disso, o Estado-acusador também lança mão de suas ferramentas legalmente instituídas, ainda que não com esse propósito assumido. É o caso da prisão preventiva, largamente utilizada para criar um ambiente propenso à delação e também pautar o próprio preço da informação. A lógica do "passarinho preso canta melhor" já foi inclusive assumida, basta recordar a seguinte manifestação de um membro do MPF: “A conveniência da instrução criminal mostra-se presente não só na cautela de impedir que investigados destruam provas, o que é bastante provável no caso do paciente, mas também na possibilidade de a segregação influenciá-lo na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos” (http://www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes).

Portanto, quando dizem (http://www.conjur.com.br/2017-jan-25/terco-acusados-operacao-lava-jato-foram-presos) que "apenas" 30% dos delatores da operação "lava jato" estavam presos quando fizeram o acordo, há que se considerar o outro lado desses números: dos 70% que fizeram o acordo em liberdade, quantos o fizeram para não serem presos ou foram soltos para fechar o acordo? Essa é a questão. Não se pode desconsiderar, ainda, um outro fator importante em casos assim: a aplicação de penas altíssimas, exemplares, para réus que não quiseram colaborar, cumprindo uma função que se poderia denominar de "prevenção negocial". É um recado claro para o "mercado": faça seu acordo ou se submeta a uma pena altíssima. É pegar ou largar.

No campo da delação premiada, uma informação tem seu valor de face potencializado quando nova e relevante. Depois de descoberta, até pode ser interessante para compra por parte do Estado, mas já não valerá a mesma coisa do que a informação nova. Por isso, a "proposta indecente" que envolva a compra e venda de informação nova seja tão difícil de resistir. Quem demora muito a "fechar negócio" pode ter a informação que valia cem e perder preço no mercado da delação. O fator time[4] será decisivo e, por isso, jogadores profissionais e com habilidade de negociação saem-se melhor. O custo/benefício da utilidade futura é sempre avaliado na tomada de decisões. É de outro processo penal que se trata. Os amadores/ingênuos continuam querendo jogar com regras obsoletas e ultrapassadas, incapazes de compreender a dinâmica de jogo que funciona com regras próprias, típicas do funcionamento dos mercados.

A questão básica gira em torno de qual o ponto em que a estratégia cooperar deixa de ser dominada e passa a ser dominante. Em outras palavras: qual o ponto de virada em que a análise dos benefícios supera a dos custos. As variáveis que entrarão na conta são as mais particulares, não se podendo, totalmente, prever o que fará a diferença. Mas se sabe que ameaças a familiares (reais ou simbólicas), a reputações, à destruição moral, patrimonial e midiática são importantes incentivos à postura de cooperação (traição, no caso de delação). Diz Raul Marinho: “Alguém pode não se predispor a cometer um ato ilícito por cem dólares e talvez não o faça nem por um milhão. Mas uma mãe assaltaria um banco se coagissem por meio de ameaças à vida de seu filho”[5].

Depende-se dos contextos e do que, efetivamente, está em jogo no mercado, tanto direta como indiretamente. E, no jogo da delação, quem não aproveita as oportunidades táticas pode perder as chances de melhorar sua situação. Daí que o ultimato — pegar ou largar, com tempo para decisão — é tática amplamente utilizada.

Diz um provérbio árabe: eu contra meu irmão. Eu e meu irmão contra meu primo. Eu, meu irmão e meu primo contra meu vizinho. Eu, meu irmão, meu primo e meu vizinho contra todos os outros, e, adicionamos: salvo se houve premiação substancial pela traição. O modelo de proteção instintivo e parental desfaz-se no momento em que se apresentam melhores alternativas fundadas no custo/benefício em ambiente de escassez, com ameaças perceptíveis, críveis e reais, de desmantelamento social/psicológico do investigado/acusado. O ponto de virada em que a recompensa deixa de ser dominada e passa a ser dominante depende da função de utilidade[6]. E sempre há um preço? Uma proposta indecente a ser aceita? Disso se faz processo penal?


[1] MARINHO, Raul. Prática na Teoria: aplicações da Teoria dos Jogos e da evolução aos negócios. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 158.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017 (no prelo).
[3] PIMENTEL, Elson. L. A. Dilema do Prisioneiro: da Teoria dos Jogos à ética. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2007.
[4] MARINHO, Raul. Prática na Teoria: aplicações da Teoria dos Jogos e da evolução aos negócios. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 135.
[5] MARINHO, Raul. Prática na Teoria: aplicações da Teoria dos Jogos e da evolução aos negócios. São Paulo: Saraiva, 2011, p 148.
[6] DAVIS, Morton David. Teoria dos Jogos: uma introdução não técnica. Trad. Leonidas Hegenberg e Otanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1973, p. 76-77: “Se as preferências de um jogador vão ser expressas por uma função de utilidade, essas preferências devem ser coerentes, ou seja, devem satisfazer certas condições. (…) 1. Tudo é suscetível de comparação. (…) 2. Preferência e indiferença são transitivos. (…) 3. Um jogador é indiferente diante de prêmios equivalentes. (…) 4. O jogador sempre se arriscará, se as possibilidades forem suficientemente boas. (…) 5. Um sorteio será tanto melhor quando mais ampla a possibilidade de conseguir o prêmio. (…) 6. Os jogadores são indiferentes ao tipo de jogo”.

Autores

  • é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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