Senso Incomum

No Brasil, de onde menos se espera... dali mesmo é que não sai nada

Autor

2 de fevereiro de 2017, 7h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]A coluna tem um subtítulo que ajuda a resumir o conteúdo, esclarecendo a frase do título (que vem de uma máxima do Barão do Itararé): O ensino jurídico, as práticas jurídico-judiciárias, a fantasia de herói e os fanqueiros literários de Machado de Assis.

Pois lendo uma porção de livros nestes dias — acabo de concluir e entregar na editora o meu Dicionário de Hermenêutica Quarenta Temas Fundamentais da Teoria do Direito —, deparei-me novamente com Machado de Assis, com um conto, não muito lembrado, chamado Fanqueiros Literários (o estagiário levanta a placa para avisar que “fanqueiros”, neste caso, vem de fancaria e não de funk). Do século XIX para o século XXI, os fanqueiros literários se multiplica(ra)m.

Machado sabia das coisas. No seu tempo. E sabia que isso só pioraria. Oiçamo-lo: “Querendo imitar os espíritos sérios, lembra-se o fanqueiro de colecionar os seus disparates, e ei-lo que vai de carrinho e almanaques na mão — em busca de notabilidades sociais. (…) O livrinho é prontificado e sai a lume. A teoria do embarcamento dos tolos é então posta em execução; os nomes das vítimas subscritoras vêm sempre em ar de escárnio no pelourinho de uma lista-epílogo”.

E completa, sarcasticamente, o nosso Flaubert: “Mas tudo isso é causado pela falta sensível de uma inquisição literária! Que espetáculo não seria ver evaporar-se em uma fogueira inquisitorial tanto ópio encadernado que por aí anda enchendo as livrarias! ” Bingo.

Ainda: “Até aqui as massas tinham o talento como uma faculdade caprichosa, operando ao impulso da inspiração, santa sobretudo em todo o seu poder moral. Mas cá as espera o fanqueiro. Nada! O talento é uma simples máquina em que não falta o menor parafuso, e que se move ao impulso de uma válvula onipotente. É de desesperar de todas as ilusões!”

Claro que não quero index ou fogueiras. Nem Machado queria. Falava em sentido figurado. Como eu. Por que estou escrevendo isso? Para dizer — voltando ao nosso cotidiano do que se transformou o Direito (ensino, doutrina e aplicação) — que por aqui se aplicaria bem a tese machadiana do fanquerismo. Direito standard. Prêt-à-porter. Machado coraria de vergonha. Ele, por certo, como eu faço, estocaria comida.

Sigo. Nestes tempos de crise, cresce o solipsismo. Sobe a temperatura do individualismo. É o que vem sendo vendido. Cada um por si. Você é um self made man. Você consegue. Pode até ser ministro. E do Supremo Tribunal Federal. Não importa a estrutura. Importa é você. Você pode ser um herói(na). Como Zorro ou Batman. Nas histórias do oeste americano, o cavaleiro solitário chega e coloca ordem nas coisas. Para que a lei (claro, o status quo) volte a prevalecer, o herói não precisa… de lei. Só da lei… dele mesmo. Batman é um bom (ou mau) exemplo disso. Ele acusa, julga e condena. Sem direito à defesa.

A fantasia-do-self-made-man-of-justice é o nirvana de quem acha que o país necessita de heróis. Necessitar de heróis quer dizer que podemos colocar na fantasia a nossa incapacidade de superar a burocracia e a ignorância. Em vez de pesquisar, estudar a fundo o direito, por exemplo, pegamos um atalho. Vamos pelo caminho do resumo. Atalho é sempre um caminho facilitado para chegar antes dos outros. Você pode pegar esse atalho, eis a mensagem. Fantasie-se de herói. Mas, lembremos que os heróis ou super-heróis tem dupla identidade. Normalmente a sua vida é medíocre, como a de Clark Kent, que é um repórter de meia tigela. Entretanto, na sua vida dupla, transforma-se.

No século XIX Machado era um crítico feroz do alpinismo social e da mediocridade que isso representava. Há um conto para cada “ocasião”. Veja-se o “Suje-se gordo”. Machado de Assis era um visionário. Escreveu, por exemplo, além dos Fanqueiros Literários e Teoria do Medalhão, o conto Ideias de Canário,[1] um texto que antecipa a discussão sobre solipsismo que somente seria feita décadas depois por Wittgenstein, Heidegger, Gadamer e outros. Se Machado lesse a literatura jurídica utilizada em concursos, salas de aulas e em cursinhos, por certo teria escrito outro conto antológico sobre eles. E aplicaria a Teoria do Medalhão. Janjão (o filho a quem o pai ensina a teoria de como ser “medalhão”) se encaixa como uma luva. Ou as Memórias Póstumas de Brás Cubas (ele também cursou direito e não aprendeu nada…).

De todo modo, nestes tempos de pós-verdade (tudo virou narrativa; já não existem fatos, apenas versões e camuflações), o Comissário Gordon não mais precisa chamar o Batman. Basta acessar o Facebook. Bingo.

Nas redes, lê-se o oferecimento de coachings tipo planeje-e-passe, com certificação em inglês: Certified Professsional Coach. Com direito a propaganda de autoajuda em que aparece uma foto de sapatos e bolsas caras (expensive) e o indicativo do twitter @projetojuizadiva.

Vejam o jeito em que está a coisa toda: Tem um curso de preparação para concursos — vi isso nas redes — que faz propaganda dizendo que lá tem pessoais reais que ensinam Direito (professores que “só são professores” ou “só são advogados” — sic — devem ser ficções, certo?). “Pessoas reais”, segundo a publicidade, são aquelas que passaram em concurso e… ensinam aos outros como se faz. Aqui, há até uma ambiguidade: pessoais “reais” — em um país de alpinismo social elevado baseado nas carreiras públicas — parece querer dizer “realeza”. Se não foi intencional a expressão “pessoas reais”, então foi ato falho. Traduzindo: “— plebeus: venham estudar com a realeza”.

Pois é. Ensino jurídico, concursos, coaching. De fato, o Brasil não é para principiantes. Pindorama não é para amadores. Pindorama exige uma doutrina coaching. Tudo o que está aí é fruto de muitíssimo esforço. Uma observação lateral: já estão discutindo a figura do “advogado robô”, [2] segundo li na ConJur. A temática envolveu a AGU (não fui eu quem disse, foi um membro da AGU). Peço desculpas, mas não resisto a um trocadilho infame: “advogado robô”? De quem?

Sigo. Para expor meu receio de que, logo, logo, alguém vai ter a ideia de abrir uma faculdade de direito chamada “Liga da Justiça”. Que terá curso sobre advogado-robô. Uma das disciplinas será: “coaching jurídico”; outra: “do pamprincipiologismo ao superprincipialismo — os princípios como heróis do direito”. No último ano, a disciplina “do princípio da rotatividade ao princípio da amorosidade — um olhar intermediário entre os princípios da afetividade e da felicidade como modo de derrotar o direito civil posto indevidamente pelo legislador”. Ainda: “Batman e o direito penal”. Tema para TCC: “Com heróis na Justiça, você não precisa de advogado” (o herói faz tudo por você, além de que você pode ser o próprio herói). Os alunos usarão fantasias.

Aliás, neste mundo jurídico de ficções, o que não é fantasia? Basta ver no que se transformou a indicação para o STF (invocando de novo Machado, eis a Sereníssima República esculpida em carrara). Bom, pensando bem, com o nosso passado aprisionando o nosso futuro, poderia ser diferente? Como dizia o velho Barão de Itararé (o nosso Aparicio Torelli), “de onde menos se espera, dali mesmo é que não sai nada”! Bingo! Ah: ele também disse que tudo seria fácil…se não fossem as dificuldades. Esse “Barão”…

Post scriptum: Tenho de falar sobre o corte do cabelo do Eike (e do Cabral). Meus brilhantes ex-alunos e ex-orientandos, ambos juízes, Rosivaldo Toscano e Orlando Fachini Neto, postaram no Facebook textos magníficos criticando esse tipo de humilhação (de réus ricos e pobres). Bingo para os dois! Também criticaram a homologação “de urgência” feita pela presidente do STF. Desconfiança com os demais ministros? Concordo com as críticas.

Ainda com relação ao “carecamento” forçado do Eike, minha esposa Rosane disse: “— parafraseando o que disse certa vez Contardo Calligaris, que você [eu] citou tantas vezes sobre não bastar, para o criminoso, os corpos, porque querem a alma, este caso apenas mostra o seguinte: No Brasil, cada um quer mais do que seria suficiente — no caso Eike, não basta sua prisão; é preciso raspar sua cabeça e humilhá-lo; já os bandidos também não se contentam em matar; cortam a cabeça; querem as almas das vítimas”. Bingo Rosane.

E, o pior: a Defensoria do Rio de Janeiro tentou acabar com o corte do cabelo zero, em 2011. A juíza negou a liminar da ação, fazendo uma ponderação entre “a suposta [aqui vai o meu sic para a palavra “suposta”] violação do direito a identidade e o direito individual e coletivo de manter as condições de higiene e saúde da população carcerária, não resta dúvida que deve ser prestigiado este". Mas não explicou o porque dessa “ponderação”. Claro, isso só vale para a população masculina. Mulheres não precisam cortar cabelo. Sobre isso, disse a juíza (ACP 0315505-67.2011.8.19.0001):

"Ora, é sabido que o corte de cabelo e barba previne determinadas pragas transmissoras de doenças, assim, como não se pode negar a realidade de que as mulheres são mais asseadas que os homens, além de representar efetivo carcerário infinitamente menor que o efetivo masculino, pelo que não se pode pretender comparar situações tão díspares para fundamentar a pretensão”. (grifei)

Sem comentários maiores. Tudo é autoexplicativo. E, sem trocadilho, trata-se de uma “ponderação careca”, é claro. De todo modo, há notícia de que a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro concedera, em 10/11/2011, liminar para impedir o corte compulsório. Até o fechamento desta coluna, não consegui saber mais detalhes sobre a permanência da liminar ou se foi revogada. Se não foi, estão descumprindo? Peço que a Defensoria nos informe sobre o estado da arte da ação de 2011 e se a liminar da 5ª Câmara tem relação com a liminar negada pela juíza da 4ª Vara da Fazenda Pública.


1 Sobre todos esses contos de Machado fizemos programas Direito & Literatura, disponíveis no Youtube (www.unisinos.br/direitoeliteratura).

2 Os leitores da ConJur, Daniel (outros) e Incredulidade (assessor técnico) esgotaram o assunto com maestria.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!