Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo russo (parte 53)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

1 de fevereiro de 2017, 7h05

Spacca
Na sequência da série de colunas sobre a educação jurídica na Rússia (veja a coluna anterior), passa-se agora o exame da carreira docente.

A estrutura de carreira é muito parecida com a existente nas universidades ocidentais. Há uma figura que poderia ser denominada de auxiliar de ensino ou aspirante à docência, que é o nível inicial, composto por doutorandos. O segundo nível é o de docente, que equivaleria aos professores doutores (nas universidades estaduais paulistas), professores adjuntos (nas universidades federais) ou ao lecturer (nas universidades inglesas). O terceiro nível é formado pelo doktor nauk (доктор наук), equivalente ao professor associado (nas universidades estaduais paulistas, que apresentam tese de livre-docência) ou aos professores com habilitação ou agregação (nas universidades europeias, que devem produzir uma tese, um livro ou um relatório afim de ascender a essa posição). O último nível é o de catedrático, correspondente a professor titular no Brasil ou a professor catedrático na Europa (e full professor nos Estados Unidos)[1].

É interessante notar que se obtém o título de doutor muito cedo na Rússia. A média etária é de 25-27 anos, o que se aproxima da realidade  brasileira dos últimos 10 anos, mas é extremamente menor do que a equivalente europeia ou norte-americana. A fase de “habilitação” (o processo que antecede à chegada à posição de doktor nauk) em geral dá-se aos 50 anos, acima das médias europeia e da brasileira, ao passo em que a titularidade é alcançada aos 60 anos[2].

A evolução na carreira dá-se internamente ou externamente. Dentro de uma mesma instituição, o processo é de avaliação por um comitê da faculdade, que avalia o pedido do interessado a partir de requisitos como orientação de alunos, publicação de artigos e livros, tempo de atividade docente. É possível também prestar concurso público para ingresso em instituição diversa, o que permite a ascensão externa, que é bem mais rara. O ato final de nomeação passa pelo Ministério da Educação, sendo antecedido por parecer vinculante da Вища атестаційна комісія, traduzível, a partir de sua versão em inglês, por Comissão Superior de Verificação. Há referências a excesso de subjetivismo nesses processos, especialmente com favorecimento a candidatos. Não há, diferentemente dos Estados Unidos e do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, grande abertura para estrangeiros ingressarem no sistema universitário russo[3].

A remuneração docente nas universidades públicas russas é baixa em comparação com os padrões europeus e até mesmo os brasileiros. Vejam-se os valores mensais, convertidos em euros, com dados de 2007: a) aspirante à docência – 250 euros; b) professor doutor – 600 euros; c) professor associado – 900 euros; d) professor catedrático – 1.100 euros[4].

As baixas remunerações e as condições pouco estimulantes para desenvolvimento de pesquisa chocam-se com um corpo de estudantes, professores e pesquisadores de alto nível. Chegou-se a dizer que as universidades russas são como uma supernova: estrelas que ainda brilham, mas cuja força motriz já desapareceu há muitos anos[5]. No Direito, esse problema é relativizado pelo acúmulo eventual ou não de atividades docentes com funções públicas (burocráticas ou políticas) ou com o exercício da advocacia, especialmente em atividades consultivas.

Todo esse quadro tem gerado preocupações no governo russo, que, em 2012, lançou o Projeto Rússia 5-100, que objetiva colocar ao menos cinco universidades da Federação Russa de entre as 100 melhores do mundo, segundo os principais rankings universitários internacionais[6] .

As profissões jurídicas russas
A admissão nos quadros da advocacia dá-se por meio de uma licença, que é deferível a pessoas graduadas em Direito, por cursos reconhecidos pelo Governo russo, ou portadoras de um diploma de pós-graduação em Direito. Para a obtenção da licença, exige-se a comprovação de dois anos de prática profissional ou a conclusão de um curso de prática forense. Os bacharéis em Direito podem realizar esse curso durante a graduação. O processo é conduzido perante a seccional estadual do conselho de advogados e também compreende a aprovação no Exame de Ordem. O exercício profissional da advocacia dá-se em toda a Federação Russa, sem limitações ou autorizações adicionais[7].

O Exame de Ordem é de competência da Câmara Federal de Advogados da Federação Russa, equivalente ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil[8]. Essa Câmara Federal tem atribuições de autorregulação profissional, de defesa de prerrogativas e de controle deontológico dos advogados[9].

A magistratura russa passou por significativas mudanças após a eleição de Putin para a presidência da República. Uma delas foi um amplo programa de melhoria remuneratória. Os juízes passaram de uma média remuneratória mensal de 300 dólares norte-americanos para 1.100 dólares norte-americanos, segundo dados de 2005[10]. Dados mais atualizados de 2016, informam que a remuneração mensal de um juiz passou para 140.000 rublos (equivalentes a 2.156,00 dólares norte-americanos), ao passo em que a remuneração mensal de um juiz do Supremo Tribunal da Rússia é de até 300.000 rublos (equivalentes a 4.620,00 dólares norte-americanos)[11].

O recrutamento judicial dá-se da seguinte forma: a) para o Tribunal Constitucional: nomeação pela Câmara Alta da Duma (parlamento russo), por indicação do presidente da República; b) para tribunais regionais, nomeação pelo presidente da República, a partir de uma lista formada pelo presidente do Supremo Tribunal da Federação Russa ou do presidente do Tribunal de Conflitos, com parecer do órgão legislativo respectivo. Aqui se exige a idade mínima de 30 anos; c) juízes de primeiro grau, nomeados dentre cidadãos russos maiores de 25 anos de idade, graduados em Direito, com atuação profissional comprovada não inferior a 5 anos. Exige-se uma seleção pública para o provimento inicial na jurisdição ordinária[12].

A evolução na carreira dá-se por requisitos subjetivos, segundo indicações dos tribunais regionais ou superiores. O limite máximo de exercício das funções judiciais é a idade de 70 anos. Os titulares dos cargos da magistratura são vitalícios e inamovíveis[13]. Na Rússia, há 2,5 mais mulheres na magistratura do que a média mundial[14].

O Ministério da Justiça é o órgão central das atividades penitenciária, de execução penal, advocacia pública, notariado e registro civil, estrangeiros, imigração e naturalização, organização judiciária e nomeações e combate à corrupção. Subordinam-se a este ministério, criado em 1549 e que já foi denominado de Comissariado do Povo para a Justiça (1917-1946), o Serviço Penitenciário Federal e o Serviço Federal dos Correios.

Quanto a este último, vale uma nota histórica das mais curiosas: tanto no Império Russo quanto no Império Austro-Húngaro, o cargo de diretor-geral dos Correios era uma posição-chave na estrutura de poder. Quando não acumulado pelo próprio ministro da Justiça, o cargo era ocupado por alguém de sua estrita confiança, que também administrava os serviços de polícia secreta. A razão era óbvia: quando não havia escutas telefônicas, a violação do sigilo de correspondências era uma arma utilíssima no combate ao crime, ao terrorismo e aos inimigos do regime. Essa tradição manteve-se na Rússia Soviética e, (talvez) por uma reminiscência histórica, na Rússia contemporânea.

O Procurador-Geral da Federação Russa é o titular de outro órgão muito importante na estrutura jurídica do país, que possui responsabilidade de mover ações em nome do Estado, do controle interno da Administração Pública e da defesa de interesses individuais, da sociedade e do Estado russo. É um órgão independente dos três poderes do Estado e seu titular é nomeado pelo presidente da República, com aprovação da Câmara Alta do Parlamento Russo, por um mandato de cinco anos[15].

A estrutura da Procuradoria-Geral é hierarquizada e seus membros são considerados magistrados. Há divisões internas como a Procuradoria Militar, as Procuradorias Regionais, um Colégio de Procuradores, além de institutos de pesquisa e de formação. O ingresso na carreira é privativo de cidadãos russos, bacharéis em Direito, maiores de 25 anos, com três anos de experiência profissional[16].

Conclusões
Como um imenso império intercontinental, a Rússia iniciou e terminou o século XX. Em seu alvorecer, uma monarquia multiétnica, unida pelo culto ortodoxo, pela devoção ao czar e pela força do Exército Imperial. Em seu crepúsculo, uma federação de repúblicas socialistas soviéticas, unida pelo ideário comunista, pela devoção ao Partido Comunista e seus líderes, mantida coesa pela força do Exército Vermelho.  Com o fim da União Soviética e a secessão de mais de uma dezena de repúblicas, a Rússia lutou 20 anos para recuperar-se e encontrar um lugar na cena política internacional. Os governos Putin-Medvedev-Putin conseguiram estabilizar o país e dar início a uma reconquista gradual de seu prestígio externo.

Democracia, direitos humanos, pluralismo político, combate à corrupção e transparência seguem como temas mal resolvidos no país. A grande questão que sempre ressurge está na viabilidade da introdução plena de tais valores em um país que, na essência, manteve a estrutura imperial, com territórios intercontinentais, lutando contra separatismos e a paralisia do período posterior ao fim do comunismo. Tais questões interessam a quem se interesse por estudar o sistema russo de educação jurídica, que guarda muitas semelhanças com o Brasil: grande número de faculdades, cursos jurídicos privados de baixa qualidade, professores com remunerações baixas, o caráter insólito do idioma e as deficiências do sistema jurídico em um território gigantesco.

A literatura jurídica produzida na Rússia teve pouca influência no Brasil. Há duas notáveis exceções. O primeiro foi o teórico bolchevique Evgeni Bronislávovich Pachukanis (1891-1937), autor da Teoria geral do Direito e Marxismo, muito usada pelos estudiosos da teoria crítica do Direito, embora seja largamente desconhecido o fato de ele ter caído em desgraça na própria União Soviética. O segundo escreveu em alemão e é geralmente acreditado como autor alemão ou suíço, quando era súdito do Império Russo. Trata-se Andreas von Tuhr, nascido em São Petersburgo, em uma família russa de ascendência báltico-alemã.  Seu tratado de Direito Civil é considerado “um exemplo perfeito do Direito Civil de vocação europeísta. Seus ensinamentos, em qualquer idioma ou ordenamento jurídico, são facilmente adaptáveis, porque dotados de caráter de universalidade e de rigor metodológico. Ele é apontado como um dos últimos pandectistas”[17].

Pelo que se viu nas quatro colunas dedicadas à formação de um jurista russo, a despeito das diferenças históricas e linguísticas, conhecer o modelo da Federação Russa é uma interessante oportunidade de refletir sobre as qualidades e os defeitos de nosso sistema, tão próximo e tão distante de seu homólogo russo.

***

A série de colunas sobre a educação jurídica no mundo terminará com o estudo do modelo japonês, cujas publicações terão início em fevereiro. Após as colunas sobre o Japão, far-se-á uma síntese das principais conclusões dessa longa e interessante jornada, que já atravessa 53 semanas não contínuas.   

[1] Disponível em: http://www.eui.eu/ProgrammesAndFellowships/AcademicCareersObservatory/AcademicCareersbyCountry/Russia.aspx. Acesso em 28/1/2017.
[2] Disponível em: http://www.eui.eu/ProgrammesAndFellowships/AcademicCareersObservatory/AcademicCareersbyCountry/Russia.aspx. Acesso em 28/1/2017.
[3] Disponível em: http://www.eui.eu/ProgrammesAndFellowships/AcademicCareersObservatory/AcademicCareersbyCountry/Russia.aspx. Acesso em 28/1/2017.
[4] Disponível em: http://www.eui.eu/ProgrammesAndFellowships/AcademicCareersObservatory/AcademicCareersbyCountry/Russia.aspx. Acesso em 28/1/2017.
[5] Essa expressão é de Jack Grove, em seu artigo intitulado Russia’s universities: rebuilding "collapsed stars", disponível em: https://www.timeshighereducation.com/features/russias-universities-rebuilding-collapsed-stars/2018006.article. Acesso em 27/1/2017.   
[6] YUDKEVICH, Maria. The pros and cons of Russia's Project 5-100. Disponível em: https://www.timeshighereducation.com/world-university-rankings/the-pros-and-cons-of-russias-project-5-100. Acesso em 28/1/2017.
[7] Art. 9º, Lei Federal 63-FZ, de 31/5/2002, dispõe sobre a prática e a profissão de advogado na Federação Russa.
[8] Art. 11, Lei Federal 63-FZ, de 31/5/2002, dispõe sobre a prática e a profissão de advogado na Federação Russa.
[9] Art.11, Lei Federal 63-FZ, de 31/5/2002, dispõe sobre a prática e a profissão de advogado na Federação Russa.
[10] Disponível em: http://www.intelros.org/pdf/2_Independence.pdf. Acesso em 27/1/2017.
[11] Disponível em http://rbth.com/politics_and_society/2016/06/10/why-are-the-majority-of-russian-judges-female_601799. Acesso em 29/1/2017.
[12] Disponível em: https://www.icj.org/cijlcountryprofiles/russian-federation/russian-federation-judges/russian-federation-appointment-and-promotion-of-judges-security-of-tenure/#footnote-12. Acesso em 28/1/2017.
[13] Disponível em: https://www.icj.org/cijlcountryprofiles/russian-federation/russian-federation-judges/russian-federation-appointment-and-promotion-of-judges-security-of-tenure/#footnote-12. Acesso em 28/1/2017.
[14] Disponível em http://rbth.com/politics_and_society/2016/06/10/why-are-the-majority-of-russian-judges-female_601799. Acesso em 29/1/2017.
[15] Disponível em: http://eng.genproc.gov.ru/legal_basis_of_the_activities/. Acesso e 29/1/2017.
[16] Disponível em: http://eng.genproc.gov.ru/history/. Acesso em 29/1/2017.
[17] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. A influência do BGB e da doutrina alemã no Direito Civil brasileiro do século XX. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, v. 938, p. 79-155, dez. 2013.

Autores

  • é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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