Confiança na direção

Embriaguez, por si só, não caracteriza dolo eventual em acidente com morte

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8 de dezembro de 2017, 10h52

A embriaguez do motorista, por si só, não caracteriza que ele agiu com dolo eventual em acidente com morte. Nesses casos, em geral, há mera ausência do dever de cuidado objetivo. Afinal, o condutor não crê que irá bater o carro nem releva essa possibilidade.

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Para Schietti Cruz, é preciso provar que motorista bêbado previu o resultado e ignorou a possibilidade de ele ocorrer.

Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria, não considerou crime culposo a conduta de uma motorista que foi mandada ao Tribunal do Júri após acidente de trânsito que resultou em morte.

A sentença de pronúncia (que submeteu a ré ao júri popular, onde responderia por homicídio com dolo eventual) foi confirmada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, mas o julgamento não chegou a acontecer.

Ao analisar recurso especial da defesa, a 6ª Turma reformou o acórdão do TJ-SC e remeteu o processo para a primeira instância julgar o caso com base no artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro, que trata de homicídio culposo.

De acordo com o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, nos casos de acidente de trânsito com morte, é possível o reconhecimento de dolo eventual desde que justificado por circunstâncias que, implícitas ao comportamento delitivo, indiquem que o motorista previu e anuiu ao possível resultado.

“Conquanto tal circunstância contribua para a análise do elemento anímico que move o agente, não se ajusta ao melhor direito presumir o consentimento do agente com o resultado danoso apenas porque, sem outra peculiaridade excedente ao seu agir ilícito, estaria sob efeito de bebida alcoólica ao colidir seu veículo contra o automóvel conduzido pela vítima”, frisou o relator.

Presunção impossível
Na concepção do ministro, quando o próprio motorista é uma das pessoas afetadas pelo crime praticado na condução de veículo, a tendência natural é concluir-se pela mera ausência do dever de cuidado objetivo.

Para Schietti, salvo exceções, “normalmente as pessoas não se utilizam desse meio para cometer homicídios e, mesmo quando embriagadas, na maioria das vezes, agem sob a sincera crença de que têm capacidade de conduzir o seu veículo sem provocar acidentes”.

O relator destacou que somente com a análise do contexto em que ocorreu o acidente, apreciação das provas e indicadores objetivos apurados no inquérito e no curso do processo seria possível aferir o elemento subjetivo do motorista.

No caso em análise, o ministro destacou que, apesar de a primeira instância e o TJ-SC apontarem, em tese, para o dolo eventual, devido ao possível estado de embriaguez da recorrente, não é admissível a presunção — quando não existem outros elementos delineados nos autos — de que ela estivesse dirigindo de forma a assumir o risco de provocar acidente sem se importar com eventual resultado fatal de seu comportamento.

Segundo o relator, as instâncias ordinárias partiram da premissa de que a embriaguez ao volante, por si só, já justificaria considerar a existência de dolo eventual.

“Equivale isso a admitir que todo e qualquer indivíduo que venha a conduzir veículo automotor em via pública com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool responderá por homicídio doloso ao causar, por violação a regra de trânsito, a morte de alguém”, disse o ministro.

Tendência perigosa
Rogerio Schietti lembrou que o procedimento do Tribunal do Júri tem duas etapas, a primeira destinada a “avaliar a suficiência ou não de razões (justa causa) para levar o acusado ao seu juízo natural”. O juízo da acusação, afirmou o ministro, “funciona como um filtro pelo qual somente passam as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa”.

Por outro lado, segundo Schietti, vê-se nos tribunais “uma profusão de processos relativos a delitos ocorridos no trânsito em que, trivialmente, se imputa o crime de homicídio doloso ao causador do acidente, quando se tem constatada a ingestão de bebida alcoólica, em qualquer quantidade, associada ao excesso de velocidade” — algo que, disse ele, nem mesmo ocorreu no caso em julgamento.

“Aparentemente em razão da insuficiência da resposta punitiva para os crimes de trânsito, que, invariavelmente, não importam em supressão da liberdade de seus autores, tem-se notado perigosa tendência de, mediante insólita interpretação de institutos que compõem a teoria do crime, forçar uma conclusão desajustada à realidade dos fatos”, alertou o ministro.

“Seguramente”, acrescentou, “é possível identificar hipóteses em que as circunstâncias do caso analisado permitem concluir pela ocorrência de dolo eventual em delitos viários. Entretanto, não se há de aceitar a matematização do direito penal, sugerindo a presença de excepcional elemento subjetivo do tipo pela simples verificação de um fato isolado, qual seja, a embriaguez do agente causador do resultado”.

Schietti concluiu afirmando que “a jurisdição criminal não pode, ante a deficiência legislativa na tipificação das condutas humanas, impor responsabilidade penal além da que esteja em conformidade com os dados constantes dos autos e com a teoria do crime, sob pena de render-se ao punitivismo inconsequente, de cariz meramente simbólico, contrário à racionalidade pós-iluminista que inaugurou o Direito Penal moderno”. Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

Clique aqui para ler a íntegra da decisão.
REsp 1.689.173

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