Consultor Tributário

O Beps em debate no 71º Congresso da International Fiscal Association (IFA)

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

30 de agosto de 2017, 8h00

Spacca
O 71º Congresso da International Fiscal Association (IFA), que acontece no Rio de Janeiro ao longo desta semana, organizado pela Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), tem sido um sucesso. Estamos muito orgulhosos da qualidade dos debates e do grande entusiasmo de todos os estrangeiros presentes. Com 1.987 participantes, já é o segundo maior congresso da história da IFA em países fora da Europa e o maior de todos os tempos em número de participantes locais (são 600 brasileiros).

Coube-nos a tarefa de escrever o relatório nacional do Tema 1, relativo ao Beps. Por isso, nesta semana, vale a pena fazermos aqui um breve resumo, especialmente para aqueles que não puderam vir ao congresso.

Como se sabe, o Brasil ainda não é membro oficial da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mas, desde o início dos anos 1990, tem atuado com ativa cooperação em matéria tributária, o que justifica seu empenho em integrar-se às ações do Beps, com presença em praticamente todos os painéis, foros e grupos de trabalho para sua implementação, além dos trabalhos sobre a Convenção Automatic Exchange of Financial Information in Tax Matters (Aeoi), que se encontra ratificada e em vigor, para trocas de informações a partir de 2018.

Dentre outras autoridades estrangeiras importantes que vieram ao Congresso da IFA, encontra-se no Brasil o diretor do Centro para Política Fiscal e Administração da OCDE, Pascal Saint-Amans, que tem participado de diversas reuniões valiosas sobre os mais variados temas, o que sinaliza a preparação para ingresso do país na OCDE em breve. Estima-se que o pedido brasileiro possa ser debatido na assembleia de novembro.

O Programa Base Erosion and Profit Shifting (Beps) tem recebido forte apoio dos órgãos da administração tributária, como a Secretaria da Receita Federal do Brasil, do Ministério da Fazenda, bem como do Ministério das Relações Exteriores e do próprio Congresso Nacional. De fato, algumas das ações do Beps já se encontram em vigor no nosso sistema, passíveis de simples ajustes. Após 2014, as principais ações discutidas no Brasil foram as 5, 12 e 13 (Responses to Transfer Pricing Measures), que se inserem nas Mainly Domestic Measures, e a 14, das Mainly Treaty-Based Measures.

O artigo 5º da Lei 12.649, de 17 de maio de 2012, ao autorizar o Poder Executivo a contribuir, dentre outros, para a manutenção de foros, grupos e iniciativas internacionais, como o Projeto Beps, o Comitê de Assuntos Fiscais (Committee on Fiscal Affairs – CFA) da OCDE, o Fórum sobre Administração Tributária vinculado (Forum on Tax Administration) e o Grupo de Coordenação e Administração da Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Assuntos Tributários (Convention on Mutual Administrative Assistance in Tax Matters), de fato, bem evidencia o entusiasmo do Brasil com todas essas medidas.

A Receita Federal do Brasil é responsável pelos grupos de trabalho sobre cada uma das ações do Beps. Assim, a Receita tem efetuado consultas públicas sobre distintos temas, como ocorreu com (i) o programa de regularização cambial (Consulta Pública 4/2016); (ii) a definição de atividade econômica substantiva para fins de identificação de regimes fiscais privilegiados (Consulta Pública 6/2016); (iii) o procedimento amigável no âmbito das Convenções e dos Acordos Internacionais Destinados a Evitar a Dupla Tributação (Consulta Pública 8/2016) e (iv) Declaração País-a-País (Country-by-Country Report – CBC Report), em andamento (Consulta Pública 11/2016).

Dentre as prioridades do momento estão as medidas tendentes a ampliar a transparência entre Fisco e contribuinte, pelo Decreto 8.842, de 29 de agosto de 2016, entrou em vigor a Convenção Automatic Exchange of Financial Information in Tax Matters (Aeoi), pela qual o Brasil obriga-se a promover a troca de informações a partir de setembro de 2018, o que poderá até mesmo alcançar dados financeiros de 2016 e 2017, caso sejam firmados acordos específicos.

O Brasil mantém seu compromisso de colocar em vigor as ações 5, 13, 14 e 15 como padrão mínimo até 2018. Preponderam no momento a atualização e melhoria dos atos normativos. As convenções internacionais, porém, começam a receber as primeiras ações para atualização e conformidade com os novos padrões do Beps. Tuco conforme os três pilares de substância, transparência e certeza.

Os desafios que devem ser enfrentados pelo Brasil para se adequar ao cenário de transparência fiscal internacional são diversos. O relatório elaborado pela OCDE[1] para os países em desenvolvimento indica a necessidade de adequação do sistema interno, a fim de melhorar o cumprimento fiscal internacional, com as informações que se farão necessárias para o atingimento da transparência global e integridade do sistema financeiro e tributário internacional[2].

No dia 21 de outubro do ano passado, o Brasil assinou o Acordo Multilateral de Autoridades Competentes – Multilateral Competent Authority Agreement (MCAA), para cumprimento das trocas de dados do Common Reporting Standard (CRS), que visa atender ao padrão global do intercâmbio automático de informações financeiras para fins tributários. Assim, a partir de 1º de janeiro de 2017, o Brasil poderá iniciar o intercâmbio de informações com as administrações tributárias dos países que também tiverem concluído o processo de internalização da convenção. O CRS trata exclusivamente do intercâmbio automático de informações financeiras para fins tributários e o Brasil deveria adotar o CRS até setembro de 2018.

De fato, diversas alterações já atendem a muitos dos critérios propostos pelas ações do Beps, como os de tributação das controladas no exterior, inclusive com harsh controlled foreign corporation (CFC), por meio do qual se tributa toda a renda auferida por controladas no exterior, independentemente da localização em paraísos fiscais ou de a renda ser ativa ou passiva (artigos 76 a 92 da Lei 12.973, de 13 de maio de 2014, e no artigo 96 da Lei 13.043, de 13 de novembro de 2014); adaptações das transfer princing (TP) rules, segundo critérios objetivos de apuração de preços, margens de lucros ou de custos e outros, os quais podem ser objeto de ajustes a pedido dos contribuintes, quando provado que as margens deveriam ser outras (artigo 48 da Lei 12.715, de 2012); regras para ampliar a determinação dos tax heavens and preferential tax regimes, com exigência de substância sobre forma, e introdução de critérios de thin captalization rules baseados na prevalência de substância sobre a forma (artigo 22 a 25 da Lei 11.727, de 26 de junho de 2008).

O marco regulatório contábil também foi amplamente melhorado, como se verificou com a Lei 11.941/2009 e a Lei 12.973/2014, mediante a adequação das normas contábeis brasileiras para o International Finantial Reporting Standards (IFRS), a obrigatoriedade de as empresas adotares nova Escrituração Contábil Fiscal (EFC), que obriga os contribuintes a transmitirem diversos elementos de sua contabilidade às autoridades fiscais, por via eletrônica, e oferece melhor compatibilidade de apuração de dados em relação aos demais países.

Em atenção às recomendações da OCDE e para melhor eficiência das regras antiabusos, o Brasil tem utilizado nas suas convenções regras que limitam os benefícios (Limitation on Benefits “LOB Clause”), desde o ano 2000, nas suas distintas possibilidades.

Para assegurar um ambiente de segurança jurídica para as trocas automáticas de informações, o Supremo Tribunal Federal já decidiu pela constitucionalidade da legislação tributária[3], e especialmente o artigo 6º, da Lei Complementar 105/2000, que determinava a obrigatoriedade de os bancos fornecerem dados bancários de contribuintes, segundo os procedimentos definidos pela Receita Federal do Brasil, independente de autorização judicial. Essa decisão é um importante marco na mudança de orientação do Supremo Tribunal Federal do Brasil, quanto ao sigilo de dados e de informações bancárias. Diante disso, foi reconhecida a constitucionalidade da declaração e-Financeira, a ser prestada pelas instituições financeiras e outros contribuintes indicados, que reúne informações sobre operações financeiras, nos termos da Instrução Normativa RFB 1.571, de 2 de julho, de 2015, com base no artigo 5º da Lei Complementar 105, de 10 de janeiro de 2001.

Como declara a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, nenhum direito fundamental pode ser restringido, limitado ou alterado por lei, tratado ou ato infraconstitucional, sob pena de se ter a negação dos limites da própria noção de rigidez constitucional[4]. Diante disso, a aplicação de convenções internacionais deve observar todo o arquétipo constitucional de direitos fundamentais.

Desse modo, todas as disposições da Convenção da Aeoi ou dos planos de ação do Beps devem passar por uma rigorosa análise de compatibilidade com a Constituição, diante da multiplicidade de direitos fundamentais e limitações ao poder de tributar existentes. Pontualmente, poderá haver, em certos casos, impossibilidade de internalização de alguma das propostas de cada plano de ação, como ocorreu com a primeira tentativa de introdução do Plano de Ação 12 — Mandatory Disclosure Rules, que foi rejeitado pela Câmara de Deputados.

Em conclusão, os novos tempos de Fisco global definem um renovado modelo de fiscalização, na forma de controle das atividades dos contribuintes, coerente com a complexidade dos negócios, crescente aumento da economia digital e fortalecimento da mútua assistência e trocas de informações. Contudo, não pode se converter em obstáculo ao planejamento tributário legítimo, organizado com o devido propósito negocial, em substância e forma. E igualmente não pode ser um entrave ao desenvolvimento econômico ou mesmo à competitividade das empresas no cenário internacional.

O Beps contribui fortemente, mediante notável rede de cooperação internacional entre as nações, com o mesmo propósito de salvaguardar o patrimônio público e sua capacidade de arrecadação de tributos, para seguir na construção de uma administração pública eficiente, com serviços de qualidade para seus cidadãos, sem necessitar de aumentos de tributos, ao manter-se uma carga tributária igual para todos.

O Brasil, por meio da Secretaria da Receita Federal, está empenhado em cumprir as ações do Beps, com a realização de consultas públicas, edições de textos normativos, participação nas atividades dos grupos de trabalho (working groups) da OECD e compromisso em atender às demandas dos países parceiros do Forum Global.

Trata-se de momento histórico para a doutrina do Direito Tributário Internacional, no combate à evasão fiscal e práticas de planejamentos tributários agressivos. Um passo notável da humanidade para romper os limites estreitos das soberanias com o legítimo propósito de afirmar o dever de todos ao pagamento dos tributos, sem qualquer distinção, como propugnado desde a Magna Carta, de 1215. Doravante, a internacionalização do Direito Tributário será cada vez mais intensa e complexa, a exigir profissionais altamente qualificados para os seus novos desafios.


[1] OCDE. Automatic Exchange of Information: A Roadmap for Developing Country Participation (Paris: OCDE, 2014), Disponível em www.OCDE.org/tax/transparency/global-forum-AEOI-roadmap-for-developing-countries.pdf. Acesso em 4/10/2015.
[2] De acordo com o Relatório de Comprometimentos, o Brasil deve adotar as primeiras mudanças em sua jurisdição até 2018. AEOI: Status of commitments, publicado em 23/7/2015 pela OCDE, disponível em <www.OCDE.org/tax/transparency/AEOI-commitments.pdf>.
[3] Recurso Extraordinário 601.314; ações diretas de inconstitucionalidade 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859. Haviam 353 processos sobrestados em todo o país à espera do entendimento do STF sobre o tema.
[4] Cf. TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

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