Opinião

Miscelânea jurídica a que os ex-sócios se submetem causa insegurança

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29 de agosto de 2017, 6h05

No Brasil, a discussão sobre a responsabilidade dos sócios pelas dívidas das respectivas sociedades é tema dos mais complexos e com desfechos variáveis a depender do ramo do Direito que se esteja analisando a questão. No que se refere ao sócio que se retira da sociedade, o tema é ainda mais atordoante, pois há um sentimento público de que, ao se retirar de uma sociedade, não se leva consigo quaisquer ônus.

Motivado, pois, pela forma como o tema foi recentemente tratado pela já sancionada Reforma Trabalhista, bem como consciente — e entristecido — das indesejáveis contradições existentes nas análises feitas, faço um alerta: senhores sócios (e ex-sócios), infelizmente, os atores do ordenamento jurídico estão deixando os senhores ao relento de uma delicada insegurança jurídica, já que há, em nosso ordenamento jurídico, uma miscelânea de formas de se prever, interpretar e aplicar o tema. Vejam.

A pedra matriz da questão, ao menos no que se refere ao sócio que cede suas quotas a terceiro, tem previsão no artigo 1.003, parágrafo único, do Código Civil, que prescreve que “até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio”.

Grande parte dos interpretes de tal dispositivo, no entanto, se desatenta quanto a pontos extremamente relevantes. O primeiro deles é de que, pela própria redação do dispositivo, o cedente responde solidariamente com o cessionário “pelas obrigações que o primeiro tinha como sócio”[1] e não necessariamente pelas dívidas da sociedade. Os contornos, portanto, dessa responsabilidade são delimitados pelo tipo societário analisado e, por via de consequência, as obrigações e responsabilidades de cada espécie de sócio.

Nesse ponto, é preciso ter em mente que o dispositivo em questão está previsto nas disposições relativas às sociedade simples, nas quais, é bem verdade, os sócios respondem, em regra, subsidiariamente pelas obrigações da sociedade, nos termos dos artigos 1.023 e 1.024 do Código Civil.

Há, no entanto, sociedades em que os sócios possuem responsabilidade limitada, nas quais não há, portanto, tal responsabilidade subsidiária pelas obrigações sociais. Nesses casos, o fato do sócio ceder suas quotas a terceiro não transmuta sua responsabilidade limitada em subsidiária, porquanto já não tivesse esta última como obrigação quando era sócio e, outrossim, o próprio cessionário, com quem responderá solidariamente, também terá limitação de sua responsabilidade, enquanto sócio de tais espécies de sociedade.

Mas qual seria, então, a correta aplicação do artigo 1.003, parágrafo único, do Código Civil aos sócios cedentes com responsabilidade limitada? O sócio com responsabilidade limitada que cede suas quotas a terceiro, responde, por algum motivo, pelas dívidas da sociedade? São essas as respostas que não podem ser concedidas com a desejável segurança, dadas as várias interpretações e discrepantes regulamentações do assunto.

A regra geral, por força justamente da limitação de responsabilidade, é de que tais sócios não responderão, em situações regulares, por quaisquer dívidas da sociedade. O fato de ceder suas quotas a terceiro não altera tal limitação legal, já que, como visto acima, ele continua responsável pelas obrigações que tinha como sócio e, nesses modelos de sociedade analisados, o sócio não tem, a princípio, responsabilidade pelas dívidas sociais.

Em regra, portanto, um sócio com responsabilidade limitada somente responderá por dívidas da sociedade após ser desconsiderada a personalidade jurídica desta, em casos, dessarte, em que se constate abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial.

Poderia, então, o sócio que cedeu suas quotas a terceiro ser atingido pela desconsideração da personalidade jurídica ou estaria ele livre de qualquer responsabilização após transcorridos os dois anos acima mencionados?

Aqui, de fato, inicia-se a miscelânea.

Inicialmente, a inegável maioria dos interpretes do direito aplicava o prazo do parágrafo único do artigo 1.003 do Código Civil justamente ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica, como no caso da Apelação Cível 9093672-65.2007.8.26.0000 do TJ-SP, julgada em agosto de 2011, na qual se destacou, tendo por marco a averbação da retirada do sócio cedente, ser “irrelevante ter o ilícito ocorrido um ano antes”, não sendo possível aplicar ao ex-sócio a teoria da desconsideração da personalidade jurídica “dez anos depois, quando outros eram os sócios da devedora”.

Sobreveio, então, no ano de 2013, o afamado REsp 1.312.591/RS no qual se entendeu que não seria possível “trazer para a desconsideração da personalidade jurídica os prazos prescricionais previstos para os casos de retirada de sócio da sociedade (artigos 1003, 1.032 e 1.057 do Código Civil), uma vez que institutos diversos.” Em outras palavras, segundo esse entendimento o prazo de dois anos se aplica exclusivamente às obrigações que o sócio tinha como sócio (como a integralização do capital social), não havendo prazo para que responda por dívidas da sociedade pela aplicação da teoria da desconsideração, quando presente abuso da personalidade jurídica.

Desde então, os ex-sócios coexistem com decisões judiciais que intercalam-se entre duas possibilidades interpretativas: (i) uma segundo a qual transcorrido o prazo de dois anos não seria possível aplicar ao ex-sócio a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e (ii) outra, mais recente, segundo a qual isso seria, sim, possível.

Como se não bastasse, não para por aí, entrementes, a miscelânea jurídica a que se submetem os ex-sócios.

Com a recentíssima Reforma Trabalhista sancionada neste ano de 2017, surge, então, um terceiro entendimento ao qual o ex-sócio poderá ser submetido, quando o tema estiver sendo discutido na Justiça do Trabalho: se a Reclamação Trabalhista for ajuizada dentro do prazo de 02 (dois) anos, poderá ele ser atingido pela desconsideração da personalidade jurídica, mesmo que tal desconsideração ocorra após o interregno bienal, em qualquer fase que se encontre o processo judicial.

Há, ainda, outra diferença de regulamentação: se pelo Código Civil o ex-sócio responde solidariamente com o cessionário, pela legislação trabalhista ele responderá subsidiariamente, só respondendo solidariamente se houver fraude na alteração societária relativa à sua saída (artigo 10-A da CLT).

A grande vantagem, ao menos, dessa nova Regulamentação Trabalhista é que agora há previsão legal expressa tornando necessária a instauração de um incidente para a desconsideração da personalidade jurídica, pois, nada obstante a CLT prever a responsabilidade subsidiaria do ex-sócio “pelas obrigações trabalhistas da sociedade”, ela condiciona a responsabilidade dos sócios (que é, como visto, anterior à do ex-sócio) à instauração de incidente de desconsideração de personalidade jurídica (novo artigo 855-A da CLT).

Por mais louvável que seja a reforma nesse ponto, não há como deixar de se destacar o tratamento distinto trazido no que se refere ao tema central deste artigo, que colocou como marco final para a possibilidade de responsabilizar o sócio cedente o ajuizamento da ação trabalhista, podendo a desconsideração da personalidade acontecer anos depois da saída, caso o ajuizamento seja tempestivo.

O que, de certa forma, pode até ser criticável do ponto de vista técnico, pois “o prazo de 2 anos, fixados no parágrafo único, integra o próprio direito de crédito e tem natureza decadencial, não sendo, por isso, suscetível de suspensão ou interrupção.”[2]

Pois bem. Poderia, ainda, adentrar ao tratamento dado ao tema no Direito Tributário, do Consumidor, Ambiental e Internacional, que também regulamentam e interpretam o assunto de modo diferente. Todavia, por limitação de espaço e por acreditar já serem de conhecimento médio, não o farei.

Me restrinjo, desse modo, a condensar, resumidamente, a miscelânea jurídica a que os ex-sócios se submetem, hoje, em nosso país, destacando o quão desestimulante isso pode ser para atrair investimentos e fomentar a exploração comercial. Se estamos tão preocupados com nossa economia, é hora de dialogarmos sobre as inconsistências que temos em nosso ordenamento jurídico e, ao menos, auferir segurança jurídica para que as pessoas possam pelo menos antever as consequências de suas escolhas.


[1] VERÇOSA, Haroldo Malheiros Durlec. Direito Comercial: volume 2. 3. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 295.

[2] GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de Empresa: comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 4. ed., rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 212.

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