Segunda Leitura

Brasil passa por processo de "falência múltipla de órgãos", mas...

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

27 de agosto de 2017, 8h00

Spacca
Quando se lê a notícia de quem faleceu por “falência múltipla de órgãos”, vem-nos à mente alguém com o coração, pulmão, rins e outras tantas partes de seu corpo irremediavelmente comprometidas. Segundo Salvador Nogueira, “a doença costuma ser fatal, afetando múltiplos órgãos e levando-os à exaustão em pouco tempo”.[i]

Passando de seres humanos para o Brasil, é inevitável a pergunta: está o Brasil passando por semelhante processo, falindo, continuamente, seus órgãos públicos e a caminho da morte? Vale a pena fazer a análise, porque isto afetará a vida nossa e de nossos descendentes.

Vejamos:

Poder Legislativo
Nunca este Poder de Estado, que é o verdadeiro representante da sociedade, passou por desgaste semelhante ao atual. O ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, passa involuntária temporada em presídio em Curitiba, por ordem do juiz federal Sérgio Moro. O ex-presidente do Senado, Renan Calheiros, responde a inúmeras denúncias, mas sobrevive por responder perante o Supremo Tribunal Federal, onde o andamento é burocrático e não há especialização. As eleições de 2018 terão por mote não votar em maus representantes. Os resultados são imprevisíveis.

Poder Executivo
Na esfera federal, equilibra-se em meio a crises seguidas, sem conseguir dar rumo a projetos, com baixa popularidade e eficiência. O presidente Michel Temer, denunciado pela Procuradoria Geral da República, tem dificuldades em liderar. Políticas públicas e a economia ficam à mercê das incertezas políticas, prejudicando o país.

Já nos estados, o que se vê é uma grande quantidade de estados endividados, dos quais o Rio de Janeiro é o exemplo máximo, mas não o único. O ex-governador Sérgio Cabral está preso preventivamente desde novembro, possivelmente saudoso dos hotéis sofisticados de Paris. Os servidores públicos, que estão sem receber vencimentos ou aposentadoria, pelo menos têm o consolo de saber que o causador principal de sua desdita está preso. Já é alguma coisa para um país onde autores de crimes recebem mais consideração do que as vítimas.

Poder Judiciário
O Judiciário, que sempre foi a salvaguarda da ética e da moralidade, passa pela sua pior fase. Quase diariamente chegam à mídia notícias desabonadoras. Por vezes, acusações graves, como a feita pelo advogado catarinense Felisberto Córdova contra o desembargador Eduardo Gallo, de ter solicitado R$ 700 mil para votar favoravelmente em uma apelação.[ii] Outras, de uma insensibilidade surpreendente, como a do juiz Mirko Giannotte, da 6ª Vara de Sinop, MT, que, ao ser questionado pelo recebimento de mais de meio milhão de reais do Tribunal de Justiça, respondeu “não estar nem aí”, desprezando 13 milhões de desempregados.[iii]

No Superior Tribunal de Justiça, a mídia hoje noticia que o ex-ministro Antonio Palloci acusa o ex-presidente da Corte, ministro Cesar Rocha, de ter recebido 5 milhões de reais em troca de uma decisão liminar na Operação “Castelo de Areia”. O Supremo Tribunal Federal, onde pela primeira vez entrei em 1978, andando na ponta dos pés, tal o respeito que nutria pela Corte e seus ministros, hoje é achincalhado pela população e pela mídia.

Caos administrativo e insegurança jurídica
Decisões infelizes, oriundas dos três Poderes de Estado, por vezes entrelaçadas, fazem emergir um caos jurídico que cresce a cada dia. Impossível falar de todos. Fiquemos em alguns exemplos.

Corrupção: Ela sempre existiu e sempre existirá em todos os países, mas em níveis diferentes, como atestam os índices da ONG Transparência Internacional.[iv] No Brasil ela cresceu nos últimos anos e espalhou-se como uma metástase. Se retroagirmos ao tempo de Getúlio Vargas, acusado de corrupção, veremos que ele teve uma vida modesta e não acumulou riqueza. No regime militar, que conheço porque nele vivi como estudante, advogado, promotor e juiz federal, o nível de corrupção não chegava a 10% do atual.

Segurança Pública: O Estado perde, a cada dia, o controle da situação. O Executivo não tem verbas e o Judiciário perde-se em discussões teórico-abstratas. Para ficar em um só problema, aponta-se a absoluta indefinição existente sobre as atribuições dos diferentes órgãos, não havendo quem se disponha a definir as linhas divisórias entre o que cabe às Polícias, às Guardas Municipais e ao Ministério Público. O Legislativo não legisla e o Judiciário não fixa jurisprudência firme e muito menos súmulas sobre as questões polêmicas. Enquanto isto, o crime organizado ocupa o espaço, pois dá solução aos casos e em breve tempo.

Educação: Os orçamentos dos Estados, obrigatoriamente, preveem um elevado percentual para as Secretarias da Educação. No entanto, não funciona, seja porque em alguns ela é consumida quase em 90% com vencimentos e pensões, seja porque a máquina não é eficiente, seja porque a cada dia surgem ordens judiciais com medidas de quase impossível execução, como fazer rampas para deficientes em prédios dos anos 1930 ou ministrar aulas em diferentes idiomas indígenas. Sem contar o descrédito e risco que sofrem professores e diretores em escolas públicas. Recentemente, na pequena cidade de Indaial, SC, a professora Márcia Friggi foi agredida por um aluno de 16 anos.[v] Resultado: professores aprovam todos, diretores abrem mão de sua autoridade e ninguém se incomoda com nada. Só tem um problema, estes alunos despreparados serão o futuro do Brasil.

Inversão de valores: Um exemplo entre mil: em Cubatão, SP, dia 21 de fevereiro deste ano, um comerciante foi assaltado. Para defender-se e à sua família, porque os meliantes já chegaram atirando, conforme prova vídeo posto na mídia, reagiu e matou um deles, ferindo o outro. Mas foi autuado em flagrante por não ter porte de arma! É dizer, o Estado, que não controla a criminalidade, impõe, a quem se defende, o ônus de ir para o presídio exatamente porque se defendeu.

A execução da pena: Único país do mundo em que a execução da pena começava depois do trânsito em julgado, com passagem, por quatro instâncias, o Brasil assistiu, por anos, a impunidade total prevalecer. Mas depois o STF, em decisão sensata, determinou que a execução tivesse início após o julgamento em segunda instância. Agora, cogita o Supremo em voltar ao trânsito em julgado ou em fixar a execução no STJ. Se isto vier a ocorrer, teremos a curiosa situação do maior Tribunal do país decidir o mesmo assunto de forma diversa três vezes, além da absoluta impunidade. Insegurança jurídica.

Mas não me cabe o papel de profeta do apocalipse. É preciso lutar para melhorar. Algumas ideias, sem prejuízo de outras que surjam:

Participação da sociedade: Absoluta e totalmente necessária. As redes sociais são poderosas fontes de opinião. Controlar os que exercem função pública é um direito da cidadania. Em ação meramente preventiva, uma rede de ONGs chamada Observatório Social do Brasil, já presente em 14 estados, está auxiliando as autoridades. Segundo Daniel Gelim, “o ponto de partida é a constatação de que boa parte das fraudes pode ser adivinhada nas entrelinhas das licitações”.[vi] Bom seria que este e outros tipos de controle se alastrassem, com os estatutos proibindo os participantes de filiar-se a partido político.

Prestigiar os que lutam: Os profissionais do Direito que enfrentam operações complexas, pondo em risco às vezes a própria vida, precisam ser prestigiados. Os serviços que o “Mensalão”, a Lava Jato e outras operações prestam e prestaram ao país é incalculável. Pela primeira vez em 500 anos de história temos poderosos políticos e empresários atrás das grades. Cadeia deixou de ser lugar para pobres mal defendidos. Por isso é necessário o reconhecimento a todos os que se envolvem em tais ações, a começar pelo precursor, ministro Joaquim Barbosa.

União de forças: A corrupção não tem partido político, alcança, ora mais, ora menos, os principais partidos. Seria importante se os movimentos de direita e de esquerda se unissem contra a corrupção, mesmo divergindo totalmente nas suas concepções de estado. É difícil, mas não impossível.

Em conclusão, a falência múltipla dos órgãos está avançada, mas ainda pode ser estancada. Para isto é preciso lutar para mudar o país. Ainda há tempo, vamos em frente.


[i] http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/08/22/quando-o-organismo-se-destr%C3%B3i/, acesso em 22/8/2016.

[ii] http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/08/1907135-durante-julgamento-advogado-acusa-desembargador-de-sc-de-pedir-propina.shtml, acesso em 23/8/2017.

[iii] http://veja.abril.com.br/brasil/nao-estou-nem-ai-diz-juiz-que-recebeu-r-503-mil-em-julho/, acesso em 24/8/2017.

[iv] https://www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2016#table, acesso em 24/8/2017.

[v] http://www.em.com.br/app/noticia/politica/2017/08/24/interna_politica,894715/marco-feliciano-culpa-professora-de-sc-pelos-socos-que-levou-de-aluno.shtml, acesso em 25/8/2017.

[vi] http://veja.abril.com.br/brasil/rede-de-ongs-ensina-a-deter-corrupcao-enquanto-e-tempo/, acesso em 26/8/2017.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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