Opinião

Não pode haver emprego das Forças Armadas sem intervenção federal

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23 de agosto de 2017, 6h45

Por meio de Decreto de 28 de julho, a Presidência da República autorizou o emprego das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem no Estado do Rio de Janeiro. Tal medida reflete a situação catastrófica dos serviços públicos, em particular a segurança pública. Os índices de criminalidade alarmantes e a matança indiscriminada são motivos preponderantes para tal medida.

No entanto, a atuação das Forças Armadas para garantia da lei e da ordem merece uma reflexão sob a perspectiva jurídica e uma leitura a luz da Constituição, que está sendo violada. O modelo federativo impõe, a todos os entes, competências na consecussão de suas políticas públicas. No tocante à segurança pública, os Estados da federação são protagonistas de primeira ordem na operacionalização de políticas de segurança pública. A atuação das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem deve ser medida a ser utilizada com respaldo jurídico e não mediante os apelos da população em geral.

O emprego das Forças Armadas deve estar fundado na sua missão constitucional, tratada no artigo 142 da Constituição: “As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.”

Percebe-se que a missão precípua das Forças Armadas está relacionada à manutenção de poder dissuasório voltado para a defesa externa. É bem verdade que há previsão do emprego para garantia da lei e da ordem, mas que deve ser tratado com cuidado dado o caráter sensível do emprego. O próprio constituinte estabeleceu que normas gerais sobre organização, preparo e emprego das Forças Armadas seriam estabelecidas por lei complementar. Neste rumo, o legislador complementar editou as Leis Complementares 97, 117 e 136. O artigo 15, § 2º, da Lei Complementar 97 assim estabelece:

A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no artigo 144 da Constituição Federal.

Nunca é demais destacar que as polícias militares e polícias civis estão subordinadas aos respectivos governadores dos estados, o que impõe responsabilidade para a condução de políticas de segurança pública. Há, portanto, um aspecto relevante a ser considerado: a atuação das Forças Armadas em ações de responsabilidade dos estados. Faz-se necessária a abordagem sobre alguns pontos relevantes acerca do federalismo.

O federalismo tem sua origem nos artigos publicados por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay no Jornal Daily Advertiser. Foram chamados de The Federalist Papers.[1] Porém, Montesquieu já havia traçado as bases teóricas para o federalismo e cita como exemplo a federação holandesa, a alemã e os cananeus. [2]

No federalismo, é essencial a existência de dois níveis de governo constitucionalmente instituídos com responsabilidades e competências próprias e autonomia perante os seus cidadãos. Num primeiro nível, encontra-se o governo da União, que engloba o país como um todo. Já num segundo nível encontra-se o governo regional, autônomo para condução de políticas que sejam da sua competência constitucional. Neste viés, nos arranjos institucionais das federações é comum a existência de um legislativo bicameral, cuja câmara alta é composta das representações dos diferentes entes federados, com o fito de maior participação nas decisões do governo central.[3]

A partir deste entendimento, o Supremo assim assentou a respeito da competência dos estados-membros em matéria de segurança pública:

“O Pleno desta Corte pacificou jurisprudência no sentido de que os Estados-membros devem obediência às regras de iniciativa legislativa reservada, fixadas constitucionalmente. A gestão da segurança pública, como parte integrante da administração pública, é atribuição privativa do governador de Estado.” (ADI 2.819, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 6-4-2005, Plenário, DJ de 2-12-2005.) [4]

Para o professor José Afonso da Silva, aos órgãos de segurança pública da União compete a apuração e repressão de infrações penais contra a ordem política e social. Às polícias estaduais (polícias civis e polícias militares) cabe a responsabilidade pelo exercício de atribuições de segurança pública e de polícia judiciária. [5] Logo, qualquer interferência da União nos estados deve seguir o fiel acatamento das normas que a própria Constituição estabelece diante da incapacidade para a gestão num determinado aspecto de sua competência.

Quando um dos entes da federação demonstra incapacidade na consecução de suas competências, poderá ocorrer, nos termos do artigo 34 da Constituição, a adoção da intervenção federal. Segundo José Afonso da Silva, a intervenção federal constitui “ato político que consiste na incursão da entidade interventora nos negócios da entidade que a suporta”.[6]

Como exemplo, pode-se citar falência da segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, com um quadro de matança generalizada de delinquentes e de policiais, o que evidencia o grave comprometimento da ordem pública, o que configura uma das hipóteses de intervenção federal. A tropa na rua é uma clara sinalização de falência do sistema de segurança pública gerido pelo Estado do Rio de Janeiro, por intermédio de sua Secretaria de Segurança Pública.

Se a lei define que o uso das Forças Armadas se dará após serem considerados esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, logo, as polícias militar e civil não possuem mais condições de cumprir as suas missões de polícia ostensiva.

É importante revisitar o artigo 144, §§ 5º e 6º, da Constituição da República, nos quais são estabelecidas as competências e subordinação das Polícias Militares e das Polícias Civis. Havendo incapacidade de cumprir as suas atribuições, vislumbra-se, no plano constitucional, um grave comprometimento da ordem pública, nos termos do artigo 34, inciso III, da Constituição, hipótese que levaria a uma situação de intervenção federal.

A realidade catastrófica da segurança pública não aflinge somente o Estado do Rio de Janeiro. Outras unidades da federação sofrem com problemas semelhantes de aumento significativo da criminalidade. Mas certamente do caso do Rio é emblemático em razão do recorrente emprego de tropas federais em operações de garantia da lei e da ordem. A Lei Complementar 97, de modo particular o artigo 15, § 2º, merece uma leitura a luz da Constituição da República.

Se a federação é o modelo adotado pelo constituinte, não pode haver uma interferência desenfreada da União nas competências estaduais. Para que se dê concretude ao texto constitucional, é preciso que a realidade histórica deva ser levada em consideração. [7] Em primeiro lugar, a Constituição deve ter a devida força normativa, como bem salientou Konrad Hesse. A norma jurídica, segundo Peter Häberle, só ganha esta qualidade mediante a sua intepretação (Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen). [8]

O texto da legislação complementar deve ser interpretado em conformidade com a Constituição. Não se pode adotar o emprego de tropa federal em uma situação de garantia da lei e da ordem (que por si só se mostra grave diante da incapacidade do Estado-membro) sem realizá-la dentro de balizas normativas que definam amplitude, prazo e espaço físico.

Este é um típico caso de adoção da chamada técnica da “interpretação conforme a constituição”, muito comum na doutrina e na jurisprudência constitucional alemãs. Busca-se dar sentido às normas infraconstitucionais para que estas empreendam maior efetividade aos princípios constitucionais; para preservar a validade de determinadas normas suspeitas de inconstitucionalidade. Realiza-se, simultaneamente, a interpretação da norma e o seu controle de constitucionalidade. [9]

A sociedade brasileira assiste atônita a escalada da criminalidade e o estado de flagrante beligerância entre agentes do Estado e criminosos. É inegável a incapacidade dos órgãos de segurança pública em cumprir suas atribuições a contento. Porém, o uso indiscriminado de tropas federais na garantia da lei e da ordem não pode ser feita sem a fiel observância da Constituição.

É certo que a questão abordada envolve consequências políticas importantes, mas que devem buscar, sobretudo, a manutenção do Estado Democrático de Direito. A Lei Complementar 97, no seu artigo 15, § 2º, deve ser objeto de uma interpretação conforme a Constituição. Ou seja, não pode haver emprego das Forças Armadas sem intervenção federal. Esta é condição essencial para conferir legalidade à atuação das tropas federais.


1 REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O federalismo numa visão tridimensional do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 85.

2 MONTESQUIEU, Barão de. Do espírito das leis. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 142-143.

3 ANDERSON, George. Federalismo: uma introdução. Trad. Ewandro Magalhães Jr, Fátima Guerreiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p. 19-20.

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição e o Supremo. 4. ed. Brasília: Secretaria de Documentação, 2011, p. 1622.

5 SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 745-746.

6 SILVA, José Afonso da. Direito constitucional positivo. 15. ed. rev. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 483.

7 HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, p. 24.

8 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional – a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997, p. 9.

9 BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 325.

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